Como o termo “decair” (Verfallen) se move na arquitetura de Heidegger, é melhor tratá-lo como um termo ambíguo e classificar os vários fenômenos aos quais ele se aplica de forma equívoca. A seção 41 (ET41) explicita a existencialidade do cuidado ao recaracterizar a existencialidade como “ser-adiante” e a facticidade como “ser-já-em”. Coordenado com o ser-adiante e o ser-já-em está o “ser-junto-a” (Sein bei). Heidegger descreve o Dasein como ser-entre a entidades que se mostram intramundanas. A decadência que pertence à estrutura de cuidado é, portanto, o ser-junto-a do Dasein. O que é ser-junto-a?
Ser-junto-a é o comércio essencial do Dasein com entidades que aparecem no mundo. Heidegger introduz o ser-amigo no [§12, p. 54, ET12] de S&Z, onde ele conota a familiaridade do Dasein com as coisas de seu ambiente. A linguagem específica de Heidegger no §12 sugere que ser-junto-a é a familiaridade do Dasein com o mundo. Mas é importante lembrar que no §12 Heidegger ainda não definiu seu termo técnico “mundo”. No §14 (ET14) (SZ:64-5), ele distingue o mundo como o meio concreto e social no qual o Dasein realiza suas atividades do “mundo” (sempre entre aspas) que é a totalidade de entidades que aparecem dentro do mundo no sentido técnico. O mundo é “aquilo ‘em que um Dasein fático ‘vive’” (SZ:65), enquanto o “mundo” é “a totalidade de entidades que podem ocorrer (ou estar presentes, vorhanden sein kann)1 dentro do mundo” (ibid.). (…) Portanto, a introdução de “ser-junto-a” na pág. 54 é ambígua entre os dois sentidos da palavra “mundo”. A especificação de Heidegger, na pág. 192, do “ser-junto-a (entes que aparecem no mundo)” do Dasein, entretanto, indica claramente que ser-junto-a é a familiaridade do Dasein com os entes que aparecem no mundo, ou seja, sua familiaridade com o “mundo”. A familiaridade básica do Dasein com o mundo é chamada de “ser-em”, pois, afinal, é no mundo que o Dasein é. O Dasein é/está em o mundo e junto-a o intramundano.
O que podemos dizer fenomenologicamente sobre esse ser-junto-a? Fica claro a partir da p. 54 e seguintes que o ser-junto-a não é apenas algum tipo de relação causal ou objetiva entre o Dasein e as entidades do mundo interior. No §12, Heidegger contrasta a maneira pela qual uma coisa pode estar dentro ou junto a outra, por estar localizada espacialmente dentro ou próxima de outra, e a maneira pela qual o Dasein está dentro ou junto ao intramundano. A distinção de Heidegger se aplica aqui tanto ao ser-no-mundo do Dasein quanto ao seu ser junto ao intramundano. O Dasein, ao contrário das coisas intramundanas, está familiarizado com seu mundo e com as coisas nele contidas:
A expressão “sou” se conecta com “junto-a”; “eu sou” diz assim: eu moro, eu habito em… o mundo, como aquilo com o qual estou assim e assim familiarizado. Ser como o infinitivo de “eu sou”, ou seja, existencialmente compreendido, significa morar em … , estar familiarizado com. (SZ, p. 54)2.
O Dasein sempre já conhece seu caminho em seu mundo. O mundo não é estranho nem desconhecido para ele. Tampouco o são as coisas dentro desse mundo. Elas também já são sempre (em sua maior parte) familiares ao Dasein. O que significa para as entidades do meio já serem familiares ao Dasein?
“Ser-junto-a o mundo, no sentido de ser/estar absorvido no mundo (des Aufgehens in der Welt), que ainda está para ser explicado em mais detalhes, é uma existência que é fundada no ser-em” (SZ:54). De fato, o ser-junto-a o intramundano é fundado no ser-no-mundo, como veremos]]. Heidegger reforça a sugestão de que esse é o sentido em que ele considera a decadência como pertencente à estrutura do cuidado, quando escreve no §41 (ET41),
E mais uma vez: a existência fática do Dasein não é apenas, em geral e indiferentemente, uma capacidade lançada de ser-no-mundo, mas, ao contrário, já está sempre também absorvida (aufgegangen) no mundo de sua preocupação. (SZ:192)
- Se tomarmos “vorhanden” para se referir à ocorrência, então “ocorrente” deve ser tomado no sentido amplo em que inclui qualquer coisa diferente do Dasein.[↩]
- Não é preciso dizer que essa passagem só funciona em alemão, onde “sou” é “bin” e “junto-a” é “bei”, que Heidegger afirma ter uma conexão etimológica[↩]