A primeira pergunta que precisamos fazer é a seguinte: Qual é a natureza do mundo, visto como o fim para o qual a transcendência é realizada? Quando tivermos respondido esta pergunta, poderemos analisar a transcendência não apenas do ponto de vista de seu fim último, mas por si mesma, de forma integral.
Assim que o Dasein existe, o ente lhe é revelado em um todo. “A natureza do todo não precisa ser expressamente compreendida, seu pertencimento ao Dasein pode permanecer oculto, e sua extensão é variável. O todo é compreendido, de forma implícita, sem que a totalidade do ente que é revelada tenha sido explicitamente apreendida em suas conexões, regiões e estratificações específicas, ou mesmo ‘totalmente’ explorada (GA9).” É nessa e por meio dessa compreensão do todo que o Dasein realiza a superação do ente. É necessário especificar o sentido que a palavra “superação” assume aqui; seu sentido atual, que se refere a um movimento espacial, torna-se inadequado neste caso. Na ultrapassagem no sentido espacial, o que é superado é deixado para trás e abandonado. Aqui, por outro lado, a superação do ente não significa seu abandono, muito pelo contrário; nós o compreendemos de tal forma que esta compreensão o torna manifesto precisamente como ente. Mas, nessas condições, ainda temos o direito de falar em ir além, uma vez que permanecemos próximos ao ente? Vamos examinar em que consiste exatamente este ato.
A superação é realizada na apreensão do todo. Heidegger caracteriza esta apreensão como uma compreensão antecipativa global. De certa forma, precede a apreensão do ente particular; é essencialmente projetiva. O ente particular se manifesta ao Dasein de acordo com seu projeto de antecipação. Esse projeto é uma compreensão global, porque não se limita a este ou àquele ente particular, mas inclui todo o ente antecipadamente ou, mais precisamente, o conjunto de todos os entes.
O termo “todo” é muito importante. Lembre-se de que não é a soma dos entes, mas o caráter essencial que pertence a cada ente como tal; de modo que podemos dizer que o todo aparece à luz de uma certa compreensão do ente como tal. Heidegger resolve o problema do sentido do todo respondendo a duas perguntas:
“1. Qual é o caráter fundamental do todo?”
“ 2. Como essa qualificação do mundo esclarece a essência da relação do Dasein com o mundo, ou seja, esclarece a possibilidade intrínseca de ser-no-mundo (transcendência) (GA9)?”
A compreensão do todo vai além do ente particular. Graças a ela, o Dasein pode perceber que tipo de ente é com o qual pode entrar em relação e que tipo de relação será essa. Por sua vez, o todo (o mundo) não é um ente, não tem a modalidade de ser de um ente. Ao contrário dos entes particulares, não existe, não é um ente particular. Ao contrário dos entes particulares, não existe independentemente do Dasein; é um puro projeto de revelação. Esse projeto-“todo” dá ao Dasein a possibilidade de desvelar o ente particular, de retornar do todo ao ente particular, tanto para o ente do tipo “Dasein” quanto para o ente não-humano. Para que o Dasein se realize como ser-si-mesmo (Selbstsein), deve ter ido além do ente. Nessa superação, compreende que sua ipseidade está ligada a um poder-ser. Este poder-ser é dado a ele como uma tarefa da qual não pode escapar. Assim que o Dasein existe, é obrigado a realizar seu ser, devir o que é. Esta ideia, apresentada no início deste trabalho, é retomada por Heidegger na seguinte fórmula: “Das Dasein ist so, dass es umwillen seiner existiert”. O Dasein é tal que existe em vista de si mesmo. Essa necessidade não prejudica de forma alguma seu egoísmo ou altruísmo. Dizer que o Dasein existe em vista de si mesmo não significa, de forma alguma, que todas as suas ações são comandadas por uma preocupação egocêntrica, mas sim que seu ser é determinado por seu poder-ser e que todas as suas ações, todos os seus pensamentos, etc., representam, portanto, uma certa realização de seu ser-si-mesmo (de sua ipsidade). O Dasein revela isto que é por isto que pode devir.
O Dasein não pode realizar sua ipseidade sem operar uma superação do ente para o mundo, pois o mundo necessariamente pertence à sua ipseidade. Não haveria ipseidade se não houvesse mundo. Portanto, o mundo não é algo separado do Dasein; existe em função da ipseidade (umwillen). Por meio de sua relação com o mundo, o Dasein realiza seu próprio fim, ou seja, seu ser-si-mesmo, que é a ipseidade. Assim, o mundo possui o caráter fundamental do “para-que-final”. E é esse caráter que torna possível as relações efetivas do Dasein dentro do “mundo”, que são conhecidas por nós na forma de “para ti”, “para ele”, ou “para aquilo”, e assim por diante. O mundo é essencialmente relativo ao Dasein (GA9).