No início de sua história, a filosofia isolou a techne e a episteme, que os tempos homéricos ainda não haviam distinguido. Essa mudança foi determinada por um contexto político no qual o filósofo acusava o sofista de usar o logos como retórica e logografia, um meio de poder e um não-lugar de conhecimento1. É sobre o legado desse conflito, no qual a episteme filosófica luta contra a techne sofística, desvalorizando assim todo o conhecimento técnico, que a essência dos entes técnicos em geral é estabelecida:
Todo ser natural (…) tem em si um princípio de movimento e fixidez, alguns quanto ao lugar, outros quanto ao aumento e diminuição, outros quanto à alteração (…) (enquanto) nenhuma coisa manufaturada tem em si o princípio de sua manufatura2.
Os entes técnicos não são inerentemente causais, e é a partir dessa ontologia que a técnica é analisada em termos de fins e meios, o que também significa que os entes técnicos não têm dinâmica própria.
Muito mais tarde, Lamarck dividiu os corpos em dois campos principais: de um lado, a físico-química dos entes inertes; de outro, a ciência dos entes orgânicos. Existem
duas classes de corpos. O inorgânico é o não vivo, o inanimado, o inerte. O orgânico é aquele que respira, se alimenta e se reproduz; é aquele que vive e está “necessariamente sujeito à morte” (Lamarck, Philosophie zoologique, t. 1, p. 106). O organizado é identificado com o vivo. Os entes são definitivamente separados das coisas3.
As duas regiões de entes correspondem a duas dinâmicas: a primeira é a mecânica; a segunda é a biologia — entre as quais o ente técnico não é mais do que um híbrido que não tem mais status ontológico do que na filosofia antiga. É porque a matéria recebe acidentalmente a marca de uma atividade vital que uma série de objetos feitos ao longo do tempo testemunha uma evolução, e o ente técnico pertence essencialmente à mecânica, testemunhando o comportamento vital do qual ele não é mais do que um traço desprovido de espessura.
Ao vislumbrar a possibilidade de uma tecnologia que seria a teoria da evolução das técnicas, Marx esboçou um novo ponto de vista. E Engels evocaria uma dialética entre a ferramenta e a mão que rompia a divisão entre o inerte e o orgânico. A arqueologia estava descobrindo objetos manufaturados muito antigos, e as origens do homem haviam se tornado uma questão real desde Darwin. Kapp desenvolveu sua teoria de projeção orgânica, que inspiraria Espinas no final do século XIX. Ao mesmo tempo em que os historiadores da Revolução Industrial começavam a levar em conta o papel desempenhado pelas novas técnicas, a etnologia logo acumularia uma riqueza tão grande de documentação sobre as indústrias primitivas que a questão de um futuro técnico, irredutível à sociologia, à antropologia, à história geral ou à psicologia, viria à tona. Gille, Leroi-Gourhan e Simondon criaram os conceitos de sistema técnico, tendência técnica e processo de concretização.
Entre a mecânica e a biologia, o ente técnico se torna um complexo de forças heterogêneas, enquanto o desenvolvimento industrial perturbou a ordem do conhecimento tanto quanto a organização social, e a tecnologia conquista um novo lugar no questionamento filosófico diante de tal expansão que a própria ciência se vê mobilizada, aproximada do domínio instrumental ao qual, finalizado pelos imperativos da luta econômica ou da guerra, seu status epistêmico parece cada vez mais sujeito. O poder resultante dessa nova relação foi liberado durante as duas guerras mundiais. Quando o nazismo tomou conta da Alemanha, Husserl analisou a tecnicização do pensamento matemático por meio da álgebra, como uma técnica de cálculo, que vinha ocorrendo desde Galileu: este procede a uma aritmização da geometria que
de certa forma, leva a uma extenuação de seu sentido. As idealidades espaço-temporais reais, como aparecem originalmente no pensamento geométrico sob o título usual de “intuições puras”, são transformadas, por assim dizer, em formas numéricas puras e simples, em estruturas algébricas4.
A digitalização é uma perda do sentido e da visão originais, da visada eidética que sustenta a cientificidade como tal:
No cálculo algébrico, nem é preciso dizer que o significado geométrico é colocado em segundo plano, e até mesmo abandonado por completo; calculamos, e somente no final nos lembramos de que os números foram feitos para significar magnitudes. Além disso, não calculamos “mecanicamente”, como no cálculo numérico usual; pensamos, inventamos, podemos até fazer descobertas — mas com uma mudança despercebida de sentido, o que o torna um sentido “simbólico”.
A tecnicização da ciência é sua cegueira eidética. Como um projeto de mathésis universalis, a mudança de sentido resultante dará origem a uma elaboração metafísica metódica. A aritmética algébrica pela qual a natureza é sistematicamente instruída e instrumentada,
é ela própria acorrentada (…) em uma mutação pela qual se torna pura e simplesmente (…) uma simples arte de obter resultados por meio de uma técnica de cálculo que segue regras técnicas. [O pensamento original, que dá sentido a esse comportamento técnico e verdade a esses resultados corretos (…), é aqui colocado fora de ação5.
A tecnicização é o que faz com que a memória se perca, como foi o caso no Fedro: no conflito entre sofistas e filósofos, a logografia hipomnésica ameaça a memória anamnésica do conhecimento, e a hipomnésia corre o risco de contaminar toda a memória e, assim, destruí-la; com o cálculo, que determinará a essência da modernidade, é a memória das intuições eidéticas originais, o fundamento de toda abordagem apodíctica e de todo significado, que se perde. A tecnicização por meio do cálculo coloca o conhecimento ocidental no caminho do esquecimento de suas origens, o que também significa o esquecimento de sua verdade. Essa é a “crise das ciências europeias”. Sem um repensar, a ciência levaria a uma tecnicização do mundo, tendo perdido o próprio propósito de toda ciência. Essa necessidade foi expressa em um contexto no qual os grandes
grandes humanistas (…), como Cassirer e Husserl, estavam tentando, na década de 1930, combater a ascensão da “barbárie” fascista com várias formas de “rejuvenescimento” da filosofia racional moderna6.
- Cf. François Châtelet, Platon, Gallimard, coll. « Idées », 1965, pp. 60-61.[↩]
- Aristote, Physique, livre II.[↩]
- François Jacob, La Logique du vivant, Gallimard, coll. « Tel », 1970, p. 101.[↩]
- Edmund Husserl, La Crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale, Gallimard, 1976, p. 52.[↩]
- Ibid., p. 54.[↩]
- Gérard Granel, « Préface » à E. Husserl, La Crise des sciences européennes
, op. cit., p. V.[↩]