Respiro o odor de uma rosa, e logo lembranças confusas da infância me vêm à memória. Em boa verdade, estas lembranças não foram evocadas pelo perfume da rosa: respiro-as no próprio odor; ela é tudo isso para mim. Outros cheirá-la-ão de modo diferente. — E sempre o mesmo odor, direis, mas associado a ideias diferentes. — Gostaria que vos exprimísseis assim; mas não vos esqueçais que, primeiro, eliminastes das diversas impressões, que a rosa causa em cada um de nós, o que elas têm de pessoal; delas apenas conservastes o aspecto objectivo, o que, no odor da rosa, pertence ao domínio comum e, para dizer tudo, ao espaço. Aliás, só com esta condição se pôde dar um nome à rosa e ao seu perfume. Foi necessário, então, para distinguir as nossas impressões pessoais umas das outras, acrescentar à ideia geral do odor de rosa caracteres específicos. E dizeis agora que as nossas diversas impressões, as nossas impressões pessoais, resultam de associarmos ao odor de rosa lembranças diferentes. Mas a associação de que falais só existe para vós, e como processo de explicação. E assim que, ao justaporem—se certas letras de um alfabeto comum a muitas línguas, se imitará, melhor ou pior, determinado som característico, próprio de uma certa língua; mas nenhuma destas letras teria servido para compor o próprio som.
Chegámos assim à distinção que acima estabelecemos entre a multiplicidade da justaposição e a multiplicidade de fusão ou de penetração mútua, tal sentimento, tal ideia encerra uma pluralidade indefinida de factos de consciência; mas a pluralidade só aparecerá por uma espécie de desdobramento no meio homogêneo que alguns chamam duração e que, na realidade, é espaço. Perceberemos então termos exteriores uns aos outros, e estes termos já não serão os próprios factos de consciência mas os seus símbolos ou, para falar com precisão, as palavras que os exprimem. Há, como demonstrámos, uma correlação íntima entre a faculdade de conceber um meio homogêneo, tal como o espaço, e a de pensar por ideias gerais. A partir do momento em que se procura cair na conta de um estado de consciência, analisá-lo, tal estado eminentemente pessoal decompor-se-á em elementos impessoais, exteriores uns aos outros, em que cada um evoca a ideia de um gênero e se exprime por uma palavra. Mas por que a nossa razão, equipada com a ideia de espaço e com ο poder criar símbolos, separa estes elementos múltiplos do todo, não se segue que nele estivessem todos contidos. Pois no seio do todo não ocupavam espaço e não procuravam expressar-se por símbolos; penetravam-se, fundiam-se uns nos outros. O associacionismo comete, portanto, um erro ao substituir continuamente o fenômeno concreto, que ocorre no espírito, pela reconstituição artificial que a filosofia lhe fornece, confundindo assim a explicação do facto com o próprio facto. Aliás, é disto que nos aperceberemos mais claramente à medida que considerarmos os estados mais profundos e mais compreensivos da alma.
O eu toca de facto, no mundo exterior pela sua superfície; e como esta superfície conserva a marca das coisas, associará por contiguidade termos que percepcionará justapostos: é a conexões deste gênero, conexões de sensações totalmente simples e, por assim dizer, impessoais, que a teoria associacionista convém. Mas, à medida que se escava abaixo desta superfície, à medida que o eu volta a si mesmo, também os seus estados de consciência cessam de se justapor para se penetrarem, fundirem conjuntamente, e cada qual se colorir com a cor de todos os outros. Assim, cada um de nós tem a sua maneira de amar e de odiar, e este amor, este ódio, reflectem a sua personalidade inteira. Contudo a linguagem designa estes estados com as mesmas palavras em todos os homens; por isso, só pôde fixar o aspecto objectivo e impessoal do amor, do ódio, dos inúmeros sentimentos que agitam a alma. Avaliamos o talento de um romancista pelo poder com que retira do domínio público, a que a linguagem assim os fizera descer, sentimentos e ideias a que procura restituir, por uma multiplicidade de pormenores que se justapõem, a sua primitiva e viva individualidade. Mas assim como se poderão intercalar infinitamente pontos entre duas posições de um móvel, sem nunca preencher o espaço percorrido, assim também, só porque falamos, só porque associamos ideias umas às outras e essas ideias se justapõem em vez de se (115) penetrarem, não conseguimos traduzir completamente o que a nossa alma experimenta; o pensamento permanece incomensurável com a linguagem.
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BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados mediatos da consciência. Tr. João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 114-116]
Je respire l’odeur d’une rose, et aussitôt des souvenirs confus d’enfance me reviennent à la mémoire. A vrai dire, ces souvenirs n’ont point été évoqués par le parfum de la rose : je les respire dans l’odeur même ; elle est tout cela pour moi. D’autres la sentiront différemment. – C’est toujours la même odeur, direz-vous, mais associée à des idées différentes. – Je veux bien que vous vous exprimiez ainsi ; mais n’oubliez pas que vous avez d’abord éliminé, des impressions diverses que la rose fait sur chacun de nous, ce qu’elles ont de personnel ; vous n’en avez conservé que l’aspect objectif, ce qui, dans l’odeur de rose, appartient au domaine commun et, pour tout dire, à l’espace. A cette condition seulement, d’ailleurs, on a pu donner un nom à la rose et à son parfum. Il a bien fallu alors, pour distinguer nos impressions personnelles les unes des autres, ajouter à l’idée générale d’odeur de rose des caractères spécifiques. Et vous dites maintenant que nos diverses impressions, nos impressions personnelles, résultent de ce que nous associons à l’odeur de rose des souvenirs différents. Mais l’association dont vous parlez n’existe guère que pour vous, et comme procédé, d’explication. C’est ainsi qu’en juxtaposant certaines lettres d’un alphabet commun à bien des langues on imitera tant bien que mal tel son caractéristique, propre à une langue déterminée ; mais aucune de ces lettres n’avait servi à composer le son lui-même.
Nous sommes ainsi ramenés à la distinction que nous avons établie plus haut entre la multiplicité de juxtaposition et la multiplicité de fusion ou de pénétration mutuelle. Tel sentiment, telle idée renferme une pluralité indéfinie de faits de conscience ; mais la pluralité n’apparaîtra que par une espèce de déroulement dans ce milieu homogène que quelques-uns appellent durée et qui est en réalité espace. Nous apercevrons alors des termes extérieurs les uns aux autres, et ces termes ne seront plus les faits de conscience eux-mêmes, mais leurs symboles, ou, pour parler avec plus de précision, les mots qui les expriment. Il y a, comme nous l’avons montré, une corrélation intime entre la faculté de concevoir un milieu homogène, tel que l’espace, et celle de penser par idées générales. Dès qu’on cherchera à se rendre compte d’un état de conscience, à l’analyser, cet état éminemment personnel se résoudra en éléments impersonnels, extérieurs les uns aux autres, dont chacun évoque l’idée d’un genre et s’exprime par un mot. Mais parce que notre raison, armée de l’idée d’espace et de la puissance de créer des symboles, dégage ces éléments multiples du tout, il ne s’ensuit pas qu’ils y fussent contenus. Car au sein du tout ils n’occupaient point d’espace et ne cherchaient point à s’expri¬mer par des symboles ; ils se pénétraient, et se fondaient les uns dans les autres. L’associationnisme a donc le tort de substituer sans cesse au phéno¬mène concret qui se passe dans l’esprit la reconstitution artificielle que la philosophie en donne, et de confondre ainsi l’explication du fait avec le fait lui-même. C’est d’ailleurs ce qu’on apercevra plus clairement à mesure que l’on considérera des états plus profonds et plus compréhensifs de l’âme.
Le moi touche en effet au monde extérieur par sa surface ; et comme cette surface conserve l’empreinte des choses, il associera par contiguïté des termes qu’il aura perçus juxtaposés : c’est à des liaisons de ce genre, liaisons de sensation,- tout à fait simples et pour ainsi dire impersonnelles, que la théorie associationniste convient. Mais à mesure que l’on creuse au-dessous de cette surface, à mesure que le moi redevient lui-même, à mesure aussi ses états de conscience cessent de se juxtaposer pour se pénétrer, se fondre ensemble, et se teindre chacun de la coloration de tous les autres. Ainsi chacun de nous a sa manière d’aimer et de haïr, et cet amour, cette haine, reflètent sa personnalité tout entière. Cependant le langage désigne ces états par les mêmes mots chez tous les hommes ; aussi n’a-t-il pu fixer que l’aspect objectif et impersonnel de l’amour, de la haine, et des mille sentiments qui agitent l’âme. Nous jugeons du talent d’un romancier à la puissance avec laquelle il tire du domaine public, où le langage les avait ainsi fait descendre, des sentiments et des idées auxquels il essaie de rendre, par une multiplicité de détails qui se juxtaposent, leur primitive et vivante individualité. Mais de même qu’on pourra intercaler indéfiniment des points entre deux positions d’un mobile sans jamais combler l’espace parcouru, ainsi, par cela seul que nous parlons, par cela seul que nous associons des idées les unes aux autres et que ces idées se juxtaposent au lieu de se pénétrer, nous échouons à traduire entièrement ce que notre âme ressent : la pensée demeure incommensurable avec le langage.
(BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience. Originalement publié en 1888. Paris: Les Presses universitaires de France, 1970)