Bergson (EDMC:114-116) – o eu toca a superfície do mundo

Silva Gama

Respiro o odor de uma rosa, e logo lembranças confusas da infância me vêm à memória. Em boa verdade, estas lembranças não foram evocadas pelo perfume da rosa: respiro-as no próprio odor; ela é tudo isso para mim. Outros cheirá-la-ão de modo diferente. — E sempre o mesmo odor, direis, mas associado a ideias diferentes. — Gostaria que vos exprimísseis assim; mas não vos esqueçais que, primeiro, eliminastes das diversas impressões, que a rosa causa em cada um de nós, o que elas têm de pessoal; delas apenas conservastes o aspecto objectivo, o que, no odor da rosa, pertence ao domínio comum e, para dizer tudo, ao espaço. Aliás, só com esta condição se pôde dar um nome à rosa e ao seu perfume. Foi necessário, então, para distinguir as nossas impressões pessoais umas das outras, acrescentar à ideia geral do odor de rosa caracteres específicos. E dizeis agora que as nossas diversas impressões, as nossas impressões pessoais, resultam de associarmos ao odor de rosa lembranças diferentes. Mas a associação de que falais só existe para vós, e como processo de explicação. E assim que, ao justaporem—se certas letras de um alfabeto comum a muitas línguas, se imitará, melhor ou pior, determinado som característico, próprio de uma certa língua; mas nenhuma destas letras teria servido para compor o próprio som.

Chegámos assim à distinção que acima estabelecemos entre a multiplicidade da justaposição e a multiplicidade de fusão ou de penetração mútua, tal sentimento, tal ideia encerra uma pluralidade indefinida de factos de consciência; mas a pluralidade só aparecerá por uma espécie de desdobramento no meio homogêneo que alguns chamam duração e que, na realidade, é espaço. Perceberemos então termos exteriores uns aos outros, e estes termos já não serão os próprios factos de consciência mas os seus símbolos ou, para falar com precisão, as palavras que os exprimem. Há, como demonstrámos, uma correlação íntima entre a faculdade de conceber um meio homogêneo, tal como o espaço, e a de pensar por ideias gerais. A partir do momento em que se procura cair na conta de um estado de consciência, analisá-lo, tal estado eminentemente pessoal decompor-se-á em elementos impessoais, exteriores uns aos outros, em que cada um evoca a ideia de um gênero e se exprime por uma palavra. Mas por que a nossa razão, equipada com a ideia de espaço e com ο poder criar símbolos, separa estes elementos múltiplos do todo, não se segue que nele estivessem todos contidos. Pois no seio do todo não ocupavam espaço e não procuravam expressar-se por símbolos; penetravam-se, fundiam-se uns nos outros. O associacionismo comete, portanto, um erro ao substituir continuamente o fenômeno concreto, que ocorre no espírito, pela reconstituição artificial que a filosofia lhe fornece, confundindo assim a explicação do facto com o próprio facto. Aliás, é disto que nos aperceberemos mais claramente à medida que considerarmos os estados mais profundos e mais compreensivos da alma.

O eu toca de facto, no mundo exterior pela sua superfície; e como esta superfície conserva a marca das coisas, associará por contiguidade termos que percepcionará justapostos: é a conexões deste gênero, conexões de sensações totalmente simples e, por assim dizer, impessoais, que a teoria associacionista convém. Mas, à medida que se escava abaixo desta superfície, à medida que o eu volta a si mesmo, também os seus estados de consciência cessam de se justapor para se penetrarem, fundirem conjuntamente, e cada qual se colorir com a cor de todos os outros. Assim, cada um de nós tem a sua maneira de amar e de odiar, e este amor, este ódio, reflectem a sua personalidade inteira. Contudo a linguagem designa estes estados com as mesmas palavras em todos os homens; por isso, só pôde fixar o aspecto objectivo e impessoal do amor, do ódio, dos inúmeros sentimentos que agitam a alma. Avaliamos o talento de um romancista pelo poder com que retira do domínio público, a que a linguagem assim os fizera descer, sentimentos e ideias a que procura restituir, por uma multiplicidade de pormenores que se justapõem, a sua primitiva e viva individualidade. Mas assim como se poderão intercalar infinitamente pontos entre duas posições de um móvel, sem nunca preencher o espaço percorrido, assim também, só porque falamos, só porque associamos ideias umas às outras e essas ideias se justapõem em vez de se (115) penetrarem, não conseguimos traduzir completamente o que a nossa alma experimenta; o pensamento permanece incomensurável com a linguagem.

[BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados mediatos da consciência. Tr. João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 114-116]

Original

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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