Beneval de Oliveira: Em busca da verdade do Ser

Como reinterpretação da filosofia existencial na antiga filosofia grega não vemos como dissociada do sentido de finitude e temporalidade, na revelação da physis (ser), não só na poesia pindárica, como nos fragmentos anaximândrico, parmenídicos e heraclitianos. Estes discursos estão sempre contidos na temática do velho professor de Freiburg, o Ser, o Vir-a-ser, o Ser e a aparência, bem como o Ser e pensar inspirado no platonismo e o Ser e Dever Ser inspirado na filosofia moderna.

Antes de mais nada é preciso explicitar, embora em rápidos traços, o pensamento desvelante, apofântico do “Ser-Ai” heideggeriano.

No “Ser e Tempo”, Heidegger inicia o seu discurso, assinalando que a questão do ser caiu no esquecimento, ainda que em nossa época tenha por um progresso aceitar de novo a metafísica.

Mas assinalamos, uma metafísica de pura entificação, que a partir de Platão e Aristóteles vai achar supérflua a questão de se encontrar o sentido do ser. Assim, ela pensa o ente enquanto ente, diz Heidegger “pois em toda parte, onde se pergunta o que é o ente, tem-se em mira o ente enquanto tal. A representação metafísica deve esta visão à luz do ser. A luz, isto é, aquilo que tal pensamento experimenta como luz, não e em si mesmo objeto de análise; pois este pensamento analisa e representa continuamente e apenas o ente sob o ponto de vista do ente”. 1

Por sua vez, na “Introdução à Metafísica 2 Heidegger começa esta pergunta, “Porque há simplesmente o ente e não antes o Nada? Eis a questão. Certamente não se trata de uma questão qualquer, essa é evidentemente a primeira de todas as questões. A primeira, sem dúvida, não na ordem da sequência cronológica das questões. Em sua caminhada histórica através do tempo o homem e os povos investigam muito. Pesquisam, procuram e examinam muitas coisas antes de se depararem com a questão, “Porque há simplesmente o ente e não antes o Nada”. Muitos nunca a . encontram, não no sentido de a lerem e ouvirem formulada, mas no sentido de investigarem a questão, isto é, de a levantarem, de a colocarem, de se porem no estado de questão. E não obstante todos são atingidos uma vez por outra, talvez mesmo de quando em vez, por sua força secreta, sem saberem ao certo o que lhes acontece. Assim, num grande desespero, quando todo peso parece desaparecer das coisas e se obscurece todo sentido, surge a questão. Talvez apenas insinuada, como uma badalada surda, que ecoa na existência e aos poucos de novo se esboroa”.

Respondendo à questão, Heidegger ele mesmo assegura que “no sentido correto de sua investigação, devemos eliminar a preferência de qualquer ente em particular, inclusive a referência ao homem. 3

Sim, porque até agora, a metafísica entificava o ser. Ela não levava o ser mesmo a falar, porque não considerava o ser em sua verdade e a verdade como o seu desvelamento. A essência da verdade para a metafísica clássica sempre apareceu apenas na forma derivada da verdade do conhecimento. Jamais respondeu a verdade do ser porque nem a suscitou como questão, ela não o problematizou, porque sempre pensou que o ser representava o ente enquanto ente. Isto é o que nos diz, muito bem, Heidegger no seu Que é metafísica, na p. 66.

Mas já é tempo de se perguntar o que é o Ser, como se diferencia do ente? Preferimos aqui dar a palavra a Emmanuel Lévinas, quando no seu “En decouvrant L’existence avec Husserl et Heidegger”, escreve : “Heidegger distingue inicialmente entre isto que é l’étant (das Seiende) et “l’être de l’étant” (das Sein des Seienden). Isto que é o ente recobre todos os objetos, todas as pessoas em um certo sentido, Deus ele mesmo. O ser do ente é o fato que todos estes objetos são. Ele não se identifica com nenhum destes entes, nem mesmo com a ideia do ente em geral. Em certo sentido ele não é; se fosse seria ente a seu turno, ainda que ele seja de qualquer maneira o acontecimento mesmo do ser de todos os entes. A originalidade de Heidegger, prossegue Lévinas, consiste precisamente a manter com uma nitidez precisa esta distinção. O ser do ente é objeto da ontologia. Ao passo que os entes representam o domínio da investigação das ciências ônticas”. 4

Carneiro Leão em capítulo de seu livro já referido, 5 observava, “O Ser nunca é diretamente acessível. Como diferença ontológica, inclui sempre uma irredutibilidade ao ente. Nunca poderá ser objetivado. Nunca poderá ser encontrado nem como ente, nem cone o ente, nem dentro do ente. Nunca poderá ser constatado a modo de um dado, fato ou valor objetivo. O Ser só se dá obliquamente, enquanto, retraindo-se e escondendo-se em si mesmo, ilumina o ente, seguindo determinada figura de sua Verdade. Esse jogo híbrido de retraimento e mesmo manifestação, de luz e sombra, de velar e re-velar, de ocultar e desocultar constitui a essencialização de sua Verdade, tal como os gregos a pensaram originariamente na a-létheia. Dessa dinâmica surge a constituição dos períodos de sua fulguração, como épocas de Vontade do Ser.

Mas deixemos os comentadores e passemos diretamente ao autor de “Sein und Zeit”, que explica a constituição do Ser do Ser Aí, isto que quer dizer a seu turno : “O Ser aí” se compreende sempre de qualquer maneira e mais ou menos explicitamente em seu ser. Ele é característico deste ente que com seu ser e por seu ser lhe seja revelado. A compreensão do ser é ele mesmo uma determinação de ser do -”ser ai”. O caráter ôntico próprio ao “ser aí” assegura isto é que o “ser aí” é ontológico.

Chamamos existência o ser mesmo a respeito do qual o ser se comporta de tal ou de tal maneira e sempre de qualquer maneira. Compreende-se, portanto, a partir de sua existência, isto é, a partir de sua possibilidade de ser ele mesmo ou não. A questão da existência não pode ser resolvida senão no existir. 6 Ela, a existência é posta no mundo, “como condição de possibilidade ou de inautenticidade, ligada à condição de ser aí existente. Mas estas determinações do “Ser aí” devem ser compreendidas a priori sobre a base da constituição do ser que designamos sob o título de “Ser no mundo”. In-der-Welt-Sein. 7 O ser da humani­dade se caracteriza pelo feito de que sua essência ’é absolutamente inseparável de sua existência, sua essência é existir.

Após assinalar, em várias considerações o problema da ambigüidade da palavra “mundo” do qual o “Ser Aí” é inseparável em vista da pluralidade de entes, e da condição do ente ser um “Ser com Outro” Mitsein, Heidegger observa o seguinte no Ser e Tempo, na página 88:
-* 1) O mundo pode ser tomado como um conceito ôntico. Ele significa então a totalidade dos entes que podem subsistir no interior do mundo;
-* 2) O mundo pode fazer função do termo ontológico. Ele significa, neste caso, o ser dos entes visados. O “mundo” pode ser então o título de uma região englobando uma pluralidade de entes. É o sentido visado pela expressão : o “mundo” do matemático, que designa a região dos objetos possíveis de matemática;
-* 3) O mundo pode ser ainda uma vez, tomado em um sentido ôntico. Ele não designa mais, ao presente, o ente que o “Ser Aí” não é essencialmente visto em que vive um “Ser aí” existente de fato. O mundo tem aqui. uma significação existencial e pré-ontológica. Esta última significação comporta novamente diversas possibilidades que ela designa o mundo onde vivemos, seja que designa um mundo privado e imediato, um mundo ambiente.
-* 4) O mundo designa, enfim, o conceito ontológico e existencial da mundanidade, sendo que este pode se diversificar segundo as estruturas de conjunto dos mundos particulares, mas cada um destes implicando a priori a mundanidade em geral.

Prosseguindo, Heidegger observa quanto ao adjetivo mundano, que ele visa um modo de ser do “ser-aí” e não apenas um modo de ser do ente subsistente no mundo. Chamamos este último ente “inerente ao mundo”, passa-se necessariamente à parte do fenômeno da mundanidade. Em seu lugar, procura-se interpretar o mundo desde o ser do ente que subsiste no interior do mundo, sem que seja o ente também e que é descoberto primeiramente desde a natureza. 8

Vejamos, agora, os resultados das análises existenciais de Heidegger que vão mostrar a existência humana como uma existência finita, limitada e humilhada. A preocupação, Sorge, é uma marca irrecusável da existência humana, esta se mostra como uma existência abandonada no mundo como “dereliction”, isto é, a existência em abandono, largada ao desamparo, manifestando-se como angústia Angst.

O sentimento de situação tão bem conhecida como Befindlichkeit, embora de conotação afetiva, tem uma visão universal, esquivando-se de toda concepção psicologista.

Resumindo, a analítica fenomenológica da existência humana começa por uma descrição da existência cotidiana 9 Alltag, donde reina “todo o mundo”. O homem existe no mundo In der Welt Sein. Encontra-se nele, observa Georges Gurvitch, antes de conhecê-lo; percebe o ser sem ter uma noção dele. Este mundo se oferece a ele, não diretamente como uma presença Vorhandenes que pode contemplar de uma maneira passiva, senão como uma matéria de preocupação Zuhandenes que o inquieta. Toda presença se insere nesta preocupação. Enfim, tudo o que o mundo sugere, tudo o que o mundo apresenta de inesperado, de imprevisível, de oscilante, de incerto, de ambiguidade redunda na preocupação, que Gurvitch acentua como caráter essencial da existência.

Gurvitch um dos primeiros filósofos que comentaram Heidegger e os demais filósofos alemães de seu tempo, como Husserl, Scheler, Lask, Hartman, distingue na preocupação dois aspectos diferentes, 1) na existência banal se identifica com a preocupação de todo o mundo e este procura acalmá-la e tranquilizá-la, transformando-a numa moléstia cotidiana e niveladora; 2) na existência que se encontra a si mesma, a preocupação resulta numa angústia ante o abismo que a rodeia por toda a parte a humanidade desamparada, Geworfenheit; a consciência moral, a visão da morte e a resolução resignada levam da moléstia à angústia.

O sentimento de situação ainda que a despeito da compreensão não escapa à visão perdida do mundo, que a anuncia como uma existência degradada Verfallen, não há nesta concepção heideggeriana nenhum pressuposto de que o homem começa a degradar-se pelo pecado, ela é simplesmente compreensível pela tomada de consciência de que o homem é um “ser para a morte”, isto é, um ser finito, destinado a perecer, ir remediavelmente.

A morte é assim encarada como característica essencial da existência” que é a existência, como assinala Heidegger, em si mesma, que chega à sua totalidade pela morte e por isso mesmo se suprime. Assim ser para a morte Sein zum Tode é um elemento insuperável da existência.

Passando-se da finitude para a temporalidade Zeitlichkeit vê-se que, em Heidegger, uma e continuação da outra, já que o ser da existência humana é essencialmente histórico.

A posição do homem no mundo é a de temporalizar-se como resultado de seus ex-tases e de sua condição de “ser no mundo”.

O ser da existência humana é essencialmente histórico, mas a história não é um objeto da ciência histórica formado por um método particular, pois a história é um setor do ser mesmo e esse setor é idêntico à existência humana.

Nas Questões I, Heidegger salienta que “o desvelamento -inicial do ente em sua totalidade, a interrogação sobre o ente como tal, e o começo da história ocidental, são uma só e mesmo coisa, elas se efetuam ao mesmo “tempo”, mas este tempo ele mesmo não mensurável abre a possibilidade de toda medida”. 10

Em Holzwege, ao cuidar do problema estético, Heidegger salienta que o desvelamento do ser, a desocultação do ente ao temporalizar-se, encaminha-se para as soluções da verdade, já que o que brota do ser do ente inspira-se e formaliza-se na obra. Esta desocultação é o que se abre, é o “aberto”, que fundamenta os valores autênticos da Arte.

  1. NA: Heidegger, m. – O que é Metafísica, Duas Cidades, pp. 61/62. Tradução de Ernildo Stein.[↩]
  2. NA: Introdução à Metafísica. Tradução de E. Carneiro Leão. T. B. p. 33.[↩]
  3. NA: Ibid. p. 35.[↩]
  4. NA: Lévinas, Emmanuel – En découvrant l’existence avec Husserl e Heidegger. Vrin Paris, p. 56.[↩]
  5. NA: Carneiro Leão, Em. op. cit. p. 114.[↩]
  6. NA: Heidegger, M. – L’Être et le Temps. p. 28. Gallimard. Paris – Tradução de Rudolf Boehms e Alphonse de Walhens.[↩]
  7. NA: Op. Cit. P. 88.[↩]
  8. NA: Ibid. p. 88/89.[↩]
  9. NA: Gurvitch, Georges – Las Tendencias actuales de la Filosofia Alemana – pp. 20/21 – Aguilar, Editor – Madrid, 1932[↩]
  10. NA: Heidegger, M. – Questions I – Gallimard — Paris p. 178.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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