Beaini (1981:46-52) – homem e ser

Nosso título refere-se à essência (o que constitui uma coisa enquanto tal, o que a define de modo mais próprio) humana. Mas em que consiste a essência do homem? Já mostramos que o homem não é alguém que se fecha em si, ele constitui-se pelo fato de sair de si, de abrir-se.

Heidegger fala da essência do homem nos seguintes termos:

“A ‘essência’ do ser-aí em sua existência.” 1

Mas, o que é a existência? É deste tema, e de outros nele implicados, que passaremos a tratar. Ec-sistir é manter-se no horizonte referencial do ser. Mas, como o homem nem sempre está próximo ao ser, ele in-siste, enquanto apega-se ao ente. Isto acontece porque o homem é livre, isto é, pode optar pelo ser ou pela aparência. Enquanto liga-se ao des-velamento do ser, o homem está na verdade, mas como o ser também se esconde, isto é, permanece velado, encoberto, surge a não-verdade.

Após estas breves linhas introdutórias, analisaremos mais detalhadamente estes temas.

A — A ec-sistência e a in-sistência

A existência tem um sentido comum, enquanto é geralmente sinônimo de vida. Para nós, o termo ec-sistência significa que o homem não se fecha em sua autopresença, mas é para fora de si, saindo de si para o mundo e para o ser. O homem é projetando-se sempre para a frente, importando-se com o que vai ser e relacionando-se com o ser — esta é a característica de seu ser-no-mundo. Por isso, Heidegger designa o homem como “Dasein”, ou seja, lugar de manifestação do ser.

Por ec-sistir, ou seja, por ultrapassar-se continuamente rumo ao ser, por transcender-se, o homem tem experiência de si como ligado, vinculado essencialmente ao ser, próximo de seu mostrar-se, que requer o homem e dele necessita.

“Diferente de toda existentia e existence, a ec-sistência é o morar ec-stático na proximidade do Ser. É a vigília, isto é, o cuidado com (Sorge für) o Ser.” 2

O comportamento humano de abertura, isto é, a ec-sistência, é reveladora do sentido do ser, enquanto relacionamento entre ser e homem. Este é o fundamento que possibilita a Linguagem que se identifica com o ato de revelação do ser.

O homem ec-sistindo está junto do ser e redimensiona, assim, o sentido de seu ser-no-mundo. Pois, o mundo significa agora, para o homem ec-sistente, a clareira do ser que o convida a uma proximidade.

Neste contexto, o homem atento manifesta-se como o ente privilegiado que pode estabelecer um contato com o ser, penetrar no âmbito de sua abertura, tornando-se seu portador.

Contudo, o fato do homem ser ec-sistente não lhe assegura um contato permanente com o ser, pois o homem enquanto tal corre o risco de afastar-se do ser. Ele apega-se àquilo que lhe é mais acessível a um contato físico, ele vive em meio aos entes. Isto é o que aqui será denominado IN-SISTÊNCIA.

“Esta persistência encontra seu apoio, apoio que ela mesma desconhece, na relação pela qual o homem não somente ek-siste, mas ao mesmo tempo in-siste, isto é, petrifica-se apoiando-se sobre aquilo que o ente, manifesto como que por si e em si mesmo, oferece” (…) “Insistente, o homem está voltado para o que é o mais corrente em meio ao ente. (…) Ek-sistente, o ser-aí é in-sistente.” 3

O comportamento humano de abertura está voltado para o ente, mas enquanto o ente particular se manifesta, o homem não percebe que o fundamento desta manifestação está no des-velamento do ser. Por outro lado, o des-velamento do ser não é total nem contínuo: o velamento está nele contido. Assim, se identificarmos des-velamento com verdade, veremos que o velamento pertence ao des-velamento, ou seja, à essência mesma da verdade.

Verdade e não verdade implicam-se mutuamente e só são acessíveis a um ente livre (isto é, que pode colocar-se de acordo com sua vontade diante da clareira do ser, do des-velamento), que é o homem. Estes temas serão analisados por nós a seguir.

B — Liberdade, não-verdade e verdade

Qual a ligação entre não-verdade e liberdade? Estes dois termos podem parecer-nos, inicialmente, opostos. Nosso tema refere-se à não-verdade e esta não aparecerá como o oposto da verdade, pois refere-se a um aspecto constituinte da verdade: a ocultação. Dai, podemos concluir que a verdade é a abertura do homem ao aberto do ser. E a liberdade? A liberdade significa a resposta humana ao apelo do ser efetuada na entrega em que estas duas aberturas se interpenetram. Só o homem livre, ou seja, aquele que se decide pelo ser, tem acesso a ele ou afasta-se dele — assim surge a ligação entre a liberdade, a não-verdade e a verdade. Heidegger diz precisamente:

“A essência da verdade é a liberdade.”4

A liberdade é o reconhecimento humano de que o ser nos aparece em sua essência, e que é dele somente que depende seu manifestar-se. Em reciprocidade, o homem livre não busca impor-se ao ser, mas disponível dá-se a ele, permitindo que o ser se mostre enquanto tal, reaprendendo a encontrar sua relação com o ser.

“A liberdade é o que nos faz ‘entregarmo-nos ao aberto e à sua abertura’. Pelo deixar-ser, o homem ex-põe-se ao ente, como expõe-se ao calor do sol ou aos rigores das intempéries, ou, mais exatamente, é capaz de expor-se a estes porque é exposição àquele. Ex-por-se é ser de tal maneira que se é-encontrando-se-fora-de-si-perto-de …, em um termo, é ek-sistir. ‘A essência da liberdade vista à luz da essência da verdade aparece como ex-posição ao ente, enquanto tem o caráter de ser desvelado’. Desta mesma perspectiva, um ser não-livre seria, pois, um ser tão absolutamente recolhido sobre si que afirmar-se-ia constitucionalmente incapaz de ser perto de outro (e portanto em um sentido perto dele mesmo), sendo ele próprio. O ser não livre não se expõe, não ek-siste.” 5

O homem, diferentemente dos demais entes, é livre. Isto significa que tem a capacidade de escolha, de decisão entre suas possibilidades de ser, opta por seu futuro. A liberdade permite ao homem sua autodeterminação, seu crescimento e a ultrapassagem daquilo que já se é hoje.

A liberdade é, assim, abertura àquilo que há de vir (possibilidades) e ao ser. Neste contexto, a liberdade foi colocada como exposição ao ser: o homem livre não busca impor-se ao ser, dominá-lo, pois relaciona-se com ele, atende ao seu apelo. Do mesmo modo o homem livre pode não expor-se ao ser e, com isto, não deixá-lo ser.

Entregar-se ao aberto, ao ser, significa estar na verdade — por este motivo, verdade e liberdade estão intrinsecamente implicadas. Contudo, a essência da verdade mescla-se da não-verdade: pois no des-velamento o ser epocalmente se manifesta e o homem, esperando esta manifestação, pode dissimulá-lo ao tomar o oculto, o não-des-velado, a aparência, pelo real. Está, assim, no domínio da não-essência da verdade.

“Porque a verdade é liberdade em sua essência, o homem historial pode também, deixando que o ente seja, não deixá-lo ser naquilo que ele é e assim como é. O ente, então, é encoberto e dissimulado. A aparência passa assim a dominar. Sob seu dominio surge a não-essência da verdade.” 6

A não-verdade aparece-nos assim como a dissimulação do ser, como o velamento (essencial ao des-velamento), pois é a ausência que propicia a presença. O ser é o revelar-se que se oculta, a presença que se retrai: este é o mistério do ser, no qual não-verdade e verdade encontram-se no mesmo plano e no qual está inserido o homem.

“Esta aparição da dissimulação não é sem lugar no Dasein. O Dasein enquanto ek-siste, engendra o primeiro e o mais extenso não-desvelamento, a não-verdade original.” 7

Por que iniciamos falando da não-verdade para, através dela, chegarmos à verdade? Não estaríamos fazendo uma inversão de termos? Respondemos que não e justificamos mostrando que a verdade, o des-velamento nunca é total. Em cada des-velamento está contido também o velamento, enquanto revelando um domínio do ente encobrimos outro. Assim, a verdade mescla-se continuamente de não-verdade.

“Contrariamente à opinião comum, é, pois, para Heidegger, a verdade que se funda sobre a não-verdade. A não-verdade enquanto não essência da verdade refere-se à essência pré-existente. Se, portanto, o homem se reporta constantemente ao velamento, é necessário dizer que está também sempre na não-verdade e que só pode desvelar por estar na não-verdade.” 8

Assim, a não-verdade visa um limite originário (e não apenas referido ao conhecimento humano, que é parcial) que pertence ao homem e, fundamentalmente, ao próprio des-velamento do ser.

<poesie> “O que preserva o deixar-ser nesta relação com a dissimulação? Nada menos que a dissimulação do ente como tal, velado em sua totalidade, isto é, o mistério. Não se trata absolutamente de um mistério particular referente a isto ou àquilo, mas deste fato único que o mistério (a dissimulação do que está velado) como tal domina o ser-aí do homem. (…) A não-essência original da verdade é o mistério.”(. . .)

“Para o bom entendedor certamente o ‘não’ da não-essência original da verdade como não-verdade aponta para o âmbito ainda não-experimentado e inexplorado da verdade do ser e não apenas o ente.” 9

Já foi dito que a essência da verdade é, segundo Heidegger, a liberdade e que esta consiste em deixar-ser o ente, no ato humano de abrir-se ao ser. Daí, podemos concluir que a verdade pertence ao homem, enquanto seu modo de ser é a ec-sistência, a exposição ao ser; e fundamentalmente ao ser — pois é este que, abrindo-se, permite ao homem experimentá-lo.

“Verdade significa o velar iluminador enquanto traço essencial do ser (Seyn). (…) Porque ao ser pertence o velar iluminador, aparece ele originariamente à luz da retração que dissimula. O nome desta clareira é aletheia.” 10

Se a verdade é o des-velamento do ser, não é o homem quem a estabelece, mas é a verdade do ser que retém a ec-sistência.

“É a partir desta verdade (e desta não-verdade) do ser que pode ser colocada a questão da essência do homem, e não o inverso. ‘Neste caminho, ao serviço da procura da verdade do ser, levanta-se a questão da essência do homem. Pois pertence à verdade do ser ligar a ela de uma maneira privilegiada a essência do homem (Remontée . . . 893)” 11

Cabe ao homem ec-sistente revelar a verdade do ser e conhecer-se de tal modo a estabelecer a verdade de si mesmo, pois somente quem tem acesso à sua essência real pode saber do mundo que o cerca, sem fantasiá-lo.

“Compreende-se, pois, que a capacidade de instaurar a verdade, de colocar-se fora de si e perto do ente enquanto tal e em totalidade, é ao mesmo tempo assegurar a verdade de nosso ser próprio, que é precisamente a ek-sistência. Heidegger pode doravante afirmar sem equívoco que há uma verdade porque eu sou verdadeiramente o que sou.” 12

O tema de nossa pesquisa é a Linguagem. A problemática fundamental a ser desenvolvida pela Linguagem é a de co-pertença entre ser e verdade, pois a verdade é o mostrar-se do ser, o ser que em seu “é” dá-se a nós, homens. É isto que deve ser transmitido em nossas palavras, pois o homem, enquanto lugar de manifestação do ser, é também o lugar da verdade do ser.

E a verdade colocada neste prisma como pertencente ao ser superará os equívocos tão comuns que a enfocam como uma produção do sujeito. Pois a verdade consiste na relação do homem com o ser.

Concluindo este terceiro item, podemos dizer que o homem enquanto ec-sistente, ou seja, fora de si e aberto ao ser, refere-se a ele, está na verdade. E que a verdade está ligada à liberdade, enquanto não interferimos na manifestação do ser, tornando-nos disponíveis (cf.: liberdade, neste item). Contudo, enquanto seres-no-mundo estamos na verdade e, por conseguinte, também na não-verdade, enquanto ambas se implicam, isto consiste em tomarmos o ente pelo ser e nossa Linguagem, que busca exprimir o ser, na maioria das vezes, fala sobre outras coisas, do que parece ser, da aparência do ser que julgamos captar na abertura.

  1. M. Heidegger, L’Être et le Temps, p. 62.[]
  2. M. Heidegger, Sobre o Humanismo, p. 69.[]
  3. M. Heidegger, Sobre a Essência da Verdade e A Tese de Kant sobre o Ser (Vom Wesen der Warheit — Kants these über das sein), tradução de Ernildo, Stein e revisão de José G. N. Moutinho, São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 42.[]
  4. M. Heidegger, Sobre a Essência da Verdade e a Tese de Kant sobre o Ser, p. 30.[]
  5. De Waelhens, Introduction à Ia traduction française de l’opuscule de M. Heidegger De l’essence de Ia vérité, p. 35-36.[]
  6. M. Heidegger, Sobre a Essência da Verdade, p. 36.[]
  7. De Waelhens, Introduction à la traduction française de l’opuscule de Martin Heidegger De L’essence de la verité, p. 49.[]
  8. Ibidem, p. 45.[]
  9. M. Heidegger, Sobre a Essência da Verdade, p. 39 e 40.[]
  10. Ibidem, p. 48 e 49.[]
  11. Paul Ricoeur et E. Bréhier, Apêndice à 3.a ed. de Histoire de la Philosophie allemande, Bibliothèque d’Histoire de la Philosophie, Paris, Vrin, 1954, p. 255.[]
  12. De Waelhens, Introduction à Ia traduction française de l’opuscule de M. Heidegger, De l’essence de la verité, p. 14.[]