O homem é um ser-no-mundo e, enquanto tal, encontra-se cercado pelos entes diferentes dele e por outros homens, aos quais se assemelha fisicamente. A identidade do homem consigo mesmo é dada pelo termo “eu”, que o diferencia dos entes e dos outros homens. O “Dasein”, ao qual nos referimos aqui, tem um parentesco comigo: sou eu mesmo.
“O ser-aí é o ente que sou eu mesmo, seu ser é meu. Esta determinação visa a uma constituição ontológica, mas somente a indica. Ela sustenta ao mesmo tempo a afirmação ôntica — não desenvolvida — de que este ente sou eu, eu e não outro.”1
Contudo, ao mesmo tempo que o termo “eu” individualiza e determina o homem, possui ele a possibilidade de compartilhar seu ser, pois inerentemente é um ser-no-mundo-com-os-outros com os quais co-existe, e co-existir pertence ao próprio constituir-se do homem enquanto tal.
“O caráter de ser-meu próprio ao ente que tem o tipo do ser-aí comporta que qualquer discurso relativo a ele implique, sempre e necessariamente, o pronome pessoal: ‘eu sou’, ‘tu és’.” 2
O fato de que eu sou implica a presença do outro, que é “igual” a mim: assemelha-se fisicamente, fala e, sobretudo, compartilhamos no cotidiano das mesmas preocupações. Contudo, o conhecimento que tenho do outro, que é o meu próximo, ao invés de me levar a atingi-lo em profundidade, fica apenas no supérfluo, justamente pelo dado da proximidade. Assim, o outro, ao invés de mostrar-se a mim, aparece dissimulado em suas possibilidades de ser-ele-mesmo. O mesmo ocorre ao outro em relação ao meu eu.
Ademais, a dissimulação do outro implica uma dissimulação do “eu”: o homem não se conhece. Neste contexto, o homem cotidianamente, por não saber quem é, busca desenvolver suas possibilidades de ser a partir dos outros, ou seja, fundamentando-se naquilo que ele não é. Isto porque o homem de inicio participa de um ser-em-comum-com-os-outros, dos quais não consegue distinguir-se. Perde-se em meio à massa, ao superficial, onde os outros escolhem de antemão aquilo a que ele deve aderir ou deixar de lado, ditando-lhe normas de agir, vestir-se, falar, divertir-se, interessar-se. E, mesmo sem o perceber, nesta busca de impor sua individualidade e ser diferente, o homem afasta-se cada vez mais de sua essência, mergulha num modo de ser impessoal.
“Os ‘outros’ que são assim nomeados para dissimular o fato de que se é essencialmente um deles, são os que, na existência comum cotidiana, ‘estão-aí’ primeira e mais frequentemente. O ‘quem’ não é este, nem aquele, nem si-mesmo, nem alguns, nem a soma de todos. O ‘quem’ é o neutro, é o ‘a-gente (das-Man)’.”3
Enquanto vive deste modo, o homem depende dos outros e aos poucos vai-se igualando mais e mais a eles, até o ponto em que, sem perceber, está sendo dominado. Está assim repetindo frases feitas, cujo conteúdo lhe escapa, vivendo em meio à banalidade, sem responsabilidade consigo mesmo. O “outro” que o domina, é um impessoal, ou seja, é o próprio homem em sua existência inautêntica — à qual acenaremos no item 2 do capítulo terceiro. Entretanto, este é um momento necessário no existir do homem, do qual ninguém consegue escapar.
“Preocupando-se com o que se empreendeu com, a favor ou contra os outros, a-gente se inspira constantemente na preocupação de se distinguir destes outros. Seja porque a-gente se esforce somente para apagar qualquer diferença com eles; seja porque o ser-aí, sentindo-se inferior, procure, em suas relações com eles, igualá-los, seja ainda porque o ser-aí, colocando-se acima dos outros, procura mantê-los abaixo de si. A coexistência — embora ela o dissimule — inquieta-se e preocupa-se com esta distância. O que se pode exprimir existencialmente, dizendo-se que o ser-em-comum existe sob o signo do distanciamento. Quanto mais esse modo de ser passa despercebido do ser-aí cotidiano, mais profunda e tenazmente age sobre ele.”4
Contudo, o ser-no-mundo-com-os-outros não está sempre condenado à banalidade, ao inautêntico ou ao impessoal. O sentido positivo do outro emerge juntamente com o do próprio “eu”: o homem, ao assumir-se, isto é, escolher-se, buscando suas possibilidades terminais de ser, torna-se responsável por si e pelo outro. Abertas estas possibilidades, o outro pode, assim, vir-a-ser a capacidade de revelação do homem a si mesmo; alguém que merece respeito, a tal ponto que é deixado livre para escolher-se e ser o que é. Assim, pertence às possibilidades do homem o relacionamento verdadeiro e positivo do “eu” com o outro que não busca a dominação mútua, mas contribui na edificação do ser mais homem de cada um.