Atos e funções, pessoa e psique

(RMAP:151-155)

Todas as manifestações de uma pessoa, como dissemos, não são “pessoais”: várias manifestações exibem uma identidade qualitativa substancial de pessoa para pessoa. Essa é mais uma dessas distinções que saltam aos olhos assim que nos ocorre procurá-las. Os efeitos de uma má memória, por exemplo, ou de uma audição ruim, são idênticos em todos os lugares. A ansiedade não tem efeitos bastante uniformes, ou uma maneira bastante regular de recuar com base em fatores causais bem definidos (tranquilizantes, exercícios de relaxamento, carícias)? O mesmo vale para a gagueira, a rapidez de cálculo, a boa ou má imaginação…

Se decidíssemos chamar de “psique” o suporte de todas essas funções e das disposições que lhes são relativas, estaríamos então autorizados a afirmar que o funcionamento da psique é bastante regular, assim como, consequentemente, seus malfuncionamentos. Observe que essa é uma constatação válida independentemente de uma investigação posterior sobre a natureza desse “suporte”: seja ele simplesmente identificável com o aspecto funcional do organismo humano, o que nos parece mais provável, ou não 1.

[153] Por outro lado, notam-se diferenças espetaculares de um indivíduo para outro quanto à maneira como cada um responde à sua má memória, à sua boa ou má audição, à ansiedade. Os atos pelos quais cada um toma posição em relação a esses dados, a maneira como cada um lida com eles ou os assume. Aqui, por excelência, si duo faciunt, non est unum. E mesmo onde há semelhanças, elas não se deixam organizar bem com base estatística, mas sim com base típica. Existem tipos de pessoas, que se “compreendem” melhor com base na visão eidética ou exemplar do que em qualquer outra base.

Intuitivamente, a distinção entre atos e funções é bastante clara, embora seja difícil de aplicar em alguns casos. Uma coisa é o funcionamento, por exemplo, dos órgãos sensoriais — a visão, a audição, etc.; outra é o exercício de cada função — o ato de olhar, de ouvir. Consideremos algumas funções “superiores”: uma coisa é, por exemplo, a memória como uma disposição dada, que pode ser aprimorada pela prática, e da qual alguns são mais dotados do que outros; outra é a maneira como nos deixamos influenciar pelas lembranças, independentemente de sua extensão, e o peso relativo que lhes atribuímos em cada situação dada. Uma coisa é a competência linguística normal (mais ou menos refinada), outra é o uso que fazemos dela. Consideremos, finalmente, o domínio afetivo. Uma coisa, por exemplo, é uma dor física; outra é a maneira como a vivemos, seja nos opondo a ela, suportando-a, nos abandonando completamente a ela ou mesmo desfrutando dela, como no caso do masoquismo.

É precisamente no domínio dos atos que o velho ditado se aplica: si duo idem faciunt, non est unum. De fato, se chamarmos de “psique” o suporte das funções, podemos chamar de “pessoa” a fonte dos atos. Essa definição reconhece na [154] individualidade essencial o aspecto ontológico fundamental das pessoas.

Do ponto de vista fenomenológico, a distinção é a que acabamos de ver. Não acreditamos que o fenomenólogo tenha, em qualquer caso, o direito de supor a realidade pessoal ontologicamente independente da psique e de seu fundamento orgânico. Chega-se a essa conclusão se, como fizemos implicitamente, definirmos o ato como o exercício de uma função. Por exemplo, Galileu — fundador de uma nova ciência — não poderia ter apontado sua luneta para o céu estrelado, realizando um ato destinado a revolucionar nossa visão do cosmos, se não possuísse a visão, além de sua inteligência. Ele não teria sido um fundador, um criador, um inovador (como todos somos, em um grau mais modesto, se somos indivíduos no sentido essencial), se não fosse dotado de um organismo que funciona mais ou menos bem.

Mas essa condição necessária não pode ser entendida como base para a redução da realidade pessoal a uma realidade impessoal. Como alcançar esse resultado sem postular um dualismo ontológico, onde a pessoa, de um lado, e o psiquismo-organismo, de outro, constituiriam dois tipos irredutíveis de realidades?

O fenomenólogo encontra uma sugestão valiosa no que pode ser chamado de “preliminares analíticos” de sua tradição. A relação entre psique e pessoa, entre o suporte das funções e o sujeito dos atos, poderia ser concebida de acordo com a teoria husserliana do todo e das partes 2, onde o todo relevante é naturalmente a pessoa. A pessoa, cuja “fisionomia” já é “percebida” como uma [155] “totalidade perceptiva”, um pouco como uma Gestalt ou uma melodia. Essa sugestão tem duas consequências tão justas que nos parece ter boas probabilidades de ser igualmente correta. A primeira consequência é que a realidade da pessoa não pode ser reduzida a uma de suas bases impessoais (suas “partes”). De fato, as propriedades ontológicas da pessoa são as do todo, não as das partes. Assim, por exemplo, não se negará a um organismo as propriedades típicas de um organismo, sob o pretexto de que suas partes não são organismos. A segunda consequência é que o todo da pessoa não poderia subsistir sem suas partes. A relação a ser estudada particularmente seria, nesse caso, aquela que subsistiria entre o todo da pessoa e seu psiquismo-organismo, considerado como uma “parte não independente” 3.

  1. Pessoalmente, portanto, estaríamos inclinados, no que diz respeito à “parte” da realidade pessoal que é a psique (e esse aspecto da vida pessoal que é o psiquismo), a uma hipótese funcional tranquila, “naturalista”, sem grandes agitações: fomos principalmente convencidos pelos livros de Di Francesco (1996) e (1998). Quinze anos de discussões amigáveis não terão passado em vão… É verdade que não poderemos conceder tanto no que diz respeito ao todo da pessoa, ou seja, sua realidade mais propriamente pessoal.[↩]
  2. Husserl (1901). A teoria ocupa toda a Terceira Investigação. Sua grande utilidade como ferramenta de pensamento ontológico foi subestimada pela maioria dos comentadores: com exceção dos pesquisadores em ontologia formal husserliana, especialmente K. Mulligan, B. Smith e P. Simons.[↩]
  3. Pelo menos as pessoas que todos nós temos em mente. O fenomenólogo interessado deveria ver quando e como essa noção de pessoa deveria ser modificada para poder ser aplicada a Deus. Essa é parte do trabalho de E. Stein em (1935-1936).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress