- Rosaura Einchenberg
- Original
Rosaura Einchenberg
Existe em nossa sociedade um medo bem difundido de julgar que não tem nada a ver com a frase bíblica “Não julgues, para que não sejas julgado”, e se esse medo fala em termos de “atirar a primeira pedra”, invoca essa frase em vão. Pois, por trás da não-vontade de julgar, oculta-se a suspeita de que ninguém é um agente livre, e com isso a dúvida de que alguém seja responsável pelo que fez ou de que se poderia esperar que respondesse pelos seus atos. No momento em que se propõem questões morais, mesmo de passagem, aquele que as propõe será confrontado com essa assustadora falta de autoconfiança e consequentemente de orgulho, e também com uma espécie de falsa modéstia que ao dizer: “Quem sou eu para julgar?”, que realmente significa: “Somos todos parecidos, igualmente ruins, e aqueles que tentam (ou fingem) permanecer parcialmente decentes são santos ou hipócritas, e em qualquer dos casos deveriam nos deixar em paz”. Daí o enorme alarido assim que alguém atribui uma culpa específica a uma pessoa em particular, em vez de pôr a culpa de todos os atos ou acontecimentos em tendências históricas e movimentos dialéticos; em suma, em alguma necessidade misteriosa que funciona pelas costas dos homens e confere a tudo o que fazem algum tipo de significado mais profundo. Desde que se tracem as raízes dos atos de Hitler até Platão, Joaquim di Fiore ou Nietzsche, até a ciência e tecnologia moderna, ou até o niilismo ou a Revolução Francesa, tudo está bem. Mas assim que se chama Hitler de assassino de massas — admitindo, claro, que esse assassino de massas específico era politicamente muito talentoso e também que todo o fenômeno do Terceiro Reich não pode ser explicado unicamente pelo que Hitler foi e como ele influenciou as pessoas — há um consenso geral de que esse julgamento da pessoa é vulgar, carece de sofisticação, e não se deveria permitir que interferisse na interpretação da história. (…) A ideia que gostaria de propor neste momento vai além da falácia bem conhecida do conceito de culpa coletiva, como ele foi aplicado pela primeira vez ao povo alemão e ao seu passado coletivo — toda a Alemanha é acusada, bem como toda a história alemã desde Lutero a Hitler —, o que, na prática, se transformou numa caiação altamente eficaz para todos aqueles que realmente tinham feito alguma coisa, pois quando todos são culpados ninguém o é. Basta colocar a cristandade ou toda a raça humana no lugar originalmente reservado à Alemanha para perceber, ou assim poderia parecer, o absurdo do conceito, pois agora até mesmo os alemães deixaram de ser culpados: a culpa não é de ninguém individualmente, mas do conceito de culpa coletiva. Além dessas considerações, o que gostaria de apontar é como deve estar profundamente arraigado o medo de julgar, dar nomes e atribuir culpa—especialmente, no que diz respeito àqueles no exercício do poder ou em alta posição, mortos ou vivos —, se essas manobras intelectuais desesperadas estão sendo invocadas como ajuda. (…) E o que se deve dizer daqueles que preferem jogar toda a humanidade pela janela, por assim dizer, para salvar um homem de alta posição, e para salvá-lo da acusação que não é nem de ter cometido um crime, mas apenas uma falha reconhecidamente grave de omissão?
Original
“Personal Responsihility Under Dictatorship”, in ARENDT, Hannah. Responsability and Judgement. New York: Schocken, 2003 (ebook) (RJ)