- nossa tradução
- Original
nossa tradução
Se a habilidade de distinguir o certo do errado deve ter algo a ver com a habilidade de pensar, devemos ser capazes de “demandar” seu exercício em todas as pessoas sãs, por mais eruditas ou ignorantes, por mais inteligentes ou estúpidas que sejam. Kant, a este respeito quase só entre os filósofos, ficou muito incomodado com a opinião comum de que a filosofia é apenas para poucos, precisamente por causa das implicações morais dessa opinião. Nesse sentido, ele observou certa vez: “A estupidez é causada por um coração perverso”, uma afirmação que, nesta forma, não é verdadeira. A inabilidade de pensar não é estupidez; pode ser encontrada em pessoas altamente inteligentes, e a maldade dificilmente é sua causa, nem que seja porque a falta de pensar e a estupidez são fenômenos muito mais frequentes do que a maldade. O problema é precisamente que nenhum coração perverso, um fenômeno relativamente raro, é necessário para causar um grande mal. Portanto, em termos kantianos, seria necessário a filosofia, o exercício da razão como faculdade do pensamento, para impedir o mal.
E isto exige muito, mesmo que assumamos e aceitemos o declínio daquelas disciplinas, filosofia e metafísica, que por tantos séculos monopolizaram esta faculdade. Pois a principal característica do pensamento é que ele interrompe todas as atividades, todas as atividades comuns, não importa o que sucedem ser. Quaisquer que tenham sido as falácias das teorias de dois mundos, elas surgiram de experiências genuínas. Pois é verdade que no momento em que começamos a pensar, não importa em que tema paramos tudo, e este tudo mais, novamente o que quer que suceda ser, interrompe o processo de pensamento; é como se nos mudássemos para um mundo diferente. Fazer e viver no sentido mais geral de inter homines esse, “ser entre meus semelhantes” — o equivalente latino a estar vivo — impede positivamente o pensamento. Como Valéry disse uma vez: “Tantôt je suis, tantôt je pense”, logo sou, logo penso.
Estreitamente ligado a esta situação está o fato de que o pensamento sempre lida com objetos que estão ausentes, afastados da percepção direta dos sentidos. Um objeto de pensamento é sempre uma re-apresentação, isto é, algo ou alguém que está realmente ausente e presente apenas à mente que, em virtude da imaginação, pode torná-lo presente na forma de uma imagem. Em outras palavras, quando estou pensando, saio do mundo das aparências, mesmo que meu pensamento lide com objetos comuns dados pelos sentidos e não com tais invisibilidades como conceitos ou ideias, o antigo domínio do pensamento metafísico. A fim de pensar sobre alguém, ele deve ser removido de nossos sentidos; enquanto estivermos junto com ele, não pensamos nele — embora possamos reunir impressões que mais tarde se tornam alimento para o pensamento; pensar em alguém que está presente implica nos retirar clandestinamente de sua companhia e agir como se ele não estivesse mais aí.
Essas observações podem indicar por que pensar, a demanda por sentido — ao invés da sede do cientista por conhecimento por si só — pode ser considerada “antinatural”, como se os homens, quando começassem a pensar, se engajassem em alguma atividade contrária à condição humana. Pensando como tal, não apenas o pensar sobre eventos ou fenômenos extraordinários ou as velhas questões metafísicas, mas toda reflexão que não serve ao conhecimento e não é guiada por propósitos práticos – casos em que o pensar é servo do conhecimento, um mero instrumento para propósitos ulteriores – é, como Heidegger observou certa vez, “fora de ordem”. Há, com certeza, o fato curioso de que sempre houve homens que escolheram o bios theoretikos como seu modo de vida, o que não é argumento contra a atividade estar “fora de ordem”. Toda a história da filosofia, que nos diz tanto sobre os objetos do pensar e tão pouco sobre o processo de pensar em si, é atravessada por uma guerra intramural entre o senso comum do homem, esse mais alto e sexto sentido que encaixa nossos cinco sentidos em um mundo comum e nos permite nos orientar nele, e a faculdade de pensar do homem em virtude da qual ele voluntariamente remove a si mesmo dele. E não apenas esta faculdade para o curso ordinário dos afazeres é “boa para nada”, enquanto seus resultados permanecem incertos e inverificáveis, mas também é de alguma forma autodestrutiva. Kant, na privacidade de suas anotações postumamente publicadas, escreveu: “Não aprovo a regra de que, se o uso da razão pura provou alguma coisa, esse resultado não deve mais ser duvidado mais como se fosse um axioma sólido”; e “Não compartilho a opinião … de que não se deve duvidar quando se tiver convencido a si mesmo de algo. Na filosofia pura, isso é impossível. Nossa mente tem uma aversão natural contra ela” (meu itálico). Daí parece que o negócio do pensamento é como o véu de Penélope: desfaz todas as manhãs o que havia terminado na noite anterior.