- Rosaura Einchenberg
- Original
Rosaura Einchenberg
O mal segundo Jesus é definido como o “obstáculo”, skandalon [escândalo, tropeço], que os poderes humanos não podem remover, de modo que o malfeitor real aparece como o homem que nunca deveria ter nascido: “Seria melhor para ele que uma pedra de moinho fosse dependurada ao redor de seu pescoço e ele, lançado ao mar” (Mt 18,6). O critério já não é o eu e o que o eu pode ou não pode suportar, aquilo com que pode conviver, mas a execução e as consequências da ação em geral. O skandalon é aquilo que não está em nosso poder reparar – pelo perdão ou pela punição – e o que, portanto, permanece como um obstáculo para todas as demais execuções e atos. E o agente não é alguém que, na compreensão platônica, pode ser reformado pela punição ou que, se estiver fora do alcance do aprimoramento, vai oferecer pelos seus sofrimentos um exemplo dissuasivo aos outros; o agente é um ofensor à ordem do mundo como tal. Para usar outra das metáforas de Jesus, ele é como a erva daninha, “o joio no campo”, com o qual nada se pode fazer exceto destruí-lo, queimá-lo na fogueira. Jesus nunca disse o que é esse mal que não pode ser perdoado pelos homens ou por Deus, e a interpretação do skandalon, o obstáculo, como sendo o pecado contra o Espírito Santo, não nos esclarece muito mais a esse respeito, exceto que esse é o mal com o qual concordo sem reservas, que cometo voluntariamente. Acho essa interpretação difícil de se reconciliar com os ditos nos Evangelhos, em que a questão do livre-arbítrio ainda não é proposta. Mas o que é indubitavelmente enfatizado nesse ponto é o dano causado à comunidade, o perigo que surge para todos.
Parece-me óbvio que essa é a posição do homem de ação, distintamente da posição do homem cujo principal interesse e preocupação é pensar. O radicalismo de Jesus na questão do mal – um radicalismo ainda mais impressionante por estar intimamente ligado com o maior liberalismo possível para com todos os tipos de malfeitores, inclusive adúlteros, prostitutas, ladrões e publicanos – nunca foi aceito, ao que saiba, por nenhum dos filósofos que já tenha lidado com o problema. Basta pensar em Espinosa, para quem o que chamamos de mal não passa de um aspecto sob o qual a inquestionável bondade de tudo o que existe aparece aos olhos humanos, ou em Hegel, para quem o mal como o negativo é a força poderosa que impulsiona a dialética do vir a ser, e em cuja filosofia os malfeitores, longe de serem o joio entre o trigo, vão até aparecer como os fertilizantes do campo. Justificar o mal no sentido duplo de maldade e desgraça sempre esteve entre as perplexidades da metafísica. A filosofia no sentido tradicional, que é confrontada com o problema do Ser como um todo, sempre se sentiu obrigada a afirmar e encontrar um lugar apropriado para tudo o que existe. Voltarei uma vez mais para Nietzsche a fim de resumir esse lado do problema. Ele disse (Vontade de poder, n. 293): “A noção de uma ação a ser rejeitada, a ser repelida (verwerfliche Handlung), cria dificuldades. Nada do que acontece pode chegar ao ponto de ser rejeitado; não se deveria querer eliminá-lo, pois tudo está tão intimamente ligado com tudo o mais que rejeitar uma coisa significa rejeitar tudo. Uma ação rejeitada, isso significa um mundo rejeitado”. A noção de que Nietzsche fala nesse trecho, a de que eu poderia dizer um não sem ressalvas a um acontecimento particular ou a uma pessoa particular, no sentido de que isso não deveria ter acontecido, ou que ela não deveria ter nascido, é uma noção abominada por todos os filósofos. E quando ele afirmou que: “(…) para a descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os infelizes estão mais favorecidos e têm maior possibilidade de êxito” (Além do bem e do mal, n. 39), ele estava firmemente ancorado nessa tradição, só que traduziu em termos muito concretos as ideias um tanto abstratas de seus predecessores; que essas afirmações soavam heréticas aos seus próprios ouvidos, que eram ainda os ouvidos do filho de um pastor protestante, é outra questão. É verdade, entretanto, que ele vai além dessa tradição quando, no mesmo aforismo, menciona: “As pessoas más que são felizes – uma espécie de homens sobre a qual os moralistas se calam”. Essa observação pode não ser particularmente profunda e parece que Nietzsche nunca voltou ao tema, mas ela atinge realmente o cerne de todo o problema, pelo menos do problema proposto em termos tradicionais.
[ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. Tr. Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 191-192]Original
“Some Questions of Moral Philosophy”, in ARENDT, Hannah. Responsability and Judgement. New York: Schocken, 2003 (ebook) (RJ)