- João Duarte
- Original
João Duarte
Concluí o primeiro volume de A vida do Espírito com certas especulações sobre o tempo. Isso era uma tentativa para clarificar uma questão muito antiga, levantada pela primeira vez por Platão, mas nunca respondida por ele: onde é o topos noetos, a região do espírito em que o filósofo habita? Reformulei esta pergunta no decurso da investigação para a seguinte: Onde estamos quando pensamos? Para onde nos afastamos quando nos alheamos do mundo das aparências, cessamos todas as actividades normais, e começamos o que Parménides, no dealbar da nossa tradição filosófica, nos pediu insistente e enfaticamente: «Olha para aquilo que, embora ausente (dos sentidos), com tanta confiança se apresenta ao espírito.»
Enquadrada em termos espaciais, a questão recebeu uma resposta negativa. Embora conhecido para nós apenas em união inseparável com um corpo que está em sua própria casa no mundo das aparências em virtude de ter chegado a ele num certo dia e de saber que um dia partirá, o eu pensante invisível não está, estritamente falando, em nenhum lugar. Alheou-se do mundo das aparências, incluindo o seu próprio corpo, e por conseguinte também do eu individual, do qual já não está consciente. Isto ao ponto que Platão pode chamar ironicamente ao filósofo um homem apaixonado pela morte, e Valéry pode dizer «Tantôt je pense et tantôt je suis», implicando que o eu pensante perde todo o sentido de realidade e que o eu individual real e que aparece não pensa. Daqui segue-se que a nossa pergunta – Onde estamos quando pensamos? – era posta fora da experiência do pensar, e por isso era inapropriada.
Quando então decidimos investigar a experiência do tempo do eu pensante, descobrimos que a nossa pergunta já não estava deslocada. A memória, o poder do espírito de ter presente o que é irrevogavelmente passado e por isso ausente dos sentidos, foi sempre o exemplo paradigmático mais plausível da capacidade do espírito para tornar presentes os invisíveis. Em virtude dessa capacidade, o espírito parece ser ainda mais forte do que a realidade; opõe a sua força à inerente futilidade de tudo o que está sujeito à mudança; colhe e recolhe aquilo que de outro modo estaria condenado à ruína e ao esquecimento. A região temporal em que este salvamento tem lugar é o Presente do eu pensante, uma espécie de duradoura «hodiernidade» (hodiernus, «do dia de hoje», chamava Agostinho à eternidade de Deus), o «existir agora» (nunc stans) da meditação medieval, um «presente que perdura» (o présent qui dure de Bergson), ou «a fenda entre o passado e o futuro», como lhe chamámos ao explicar a parábola do tempo de Kafka. Mas só se aceitarmos a interpretação medieval dessa experiência do tempo como uma sugestão da eternidade divina é que somos obrigados a concluir que não é apenas a espacialidade mas é também a temporalidade que é provisoriamente suspensa nas actividades do espírito. Uma tal interpretação envolve toda a nossa vida espiritual numa aura de misticismo e deixa passar estranhamente a verdadeira banalidade da própria experiência. A constituição de «um presente que perdura» é «o acto habitual, normal, banal do nosso intelecto»5, executada em todos os tipos de reflexão, quer o assunto desta sejam as ocorrências normais de cada dia, quer a atenção esteja concentrada em coisas para sempre invisíveis e exteriores à esfera da capacidade humana. A actividade do espírito cria sempre para si un présent qui dure, uma «fenda entre o passado e o futuro».
[ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito Volume II Querer. Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p. 17-18.]