Arendt (LM2:13-19) – a vontade

Abranches, Almeida & Martins

Estas considerações preliminares — e de modo algum satisfatórias — sobre o conceito de tempo parecem-me necessárias em nossa discussão sobre o ego volitivo, porque a Vontade, se é que ela existe — e uma quantidade desconfortável (197) de grandes filósofos que nunca duvidaram da razão ou do pensamento sustentaram que a Vontade não passa de uma ilusão —, é obviamente o nosso órgão espiritual para o futuro, do mesmo modo que a memória é o nosso órgão espiritual para o passado. (A estranha ambivalência da língua inglesa, na qual will como auxiliar designa o futuro enquanto o verbo to will indica volições, atesta em realidade nossas in- certezas quanto a esses assuntos.) Em nosso contexto, o problema básico com a Vontade é que ela não lida simplesmente com coisas que estão ausentes de nossos sentidos e que precisam se fazer presentes através do poder de re-presentação do espírito, mas lida também com coisas, visíveis e invisíveis, que absolutamente nunca existiram.

No momento em que voltamos nosso espírito para o futuro, não estamos mais preocupados com “objetos”, mas sim com projetos, e não importa se eles são formados espontaneamente ou como reações antecipadas a circunstâncias futuras. E assim como o passado apresenta-se ao espírito sempre com o aspecto de certeza, a característica principal do futuro é sua incerteza básica, por mais alto que seja o grau de probabilidade a que se possa chegar em uma previsão. Em outras palavras, estamos lidando com coisas que nunca foram, que ainda não são e que podem muito bem nunca vir a ser. Nosso Testamento, nossa Última Vontade, preparado para o único futuro sobre o qual podemos estar seguros com razão, a saber, nossa própria morte, mostra que a necessidade da Vontade de querer não é menos forte do que a necessidade que a Razão tem de pensar; em ambos os casos, o espírito transcende suas próprias limitações naturais, seja por fazer perguntas irrespondíveis, seja por projetar-se em um futuro que, para o sujeito volitivo, jamais será.

Aristóteles lançou as bases para uma tomada de posição da filosofia em relação à Vontade; e, através dos séculos, a solidez dessas bases resistiu a testes e desafios da maior importância. Segundo Aristóteles, todas as coisas que podem ser ou não ser, que aconteceram, mas que poderiam não ter acontecido, são por acaso, kata symbebekos — ou, na tradução latina, são por acidente ou contingência —, em contraposição àquilo que necessariamente é como é, que é e não pode não ser. A isto, Aristóteles chamou “hypokeimenon”; é o que subjaz a tudo que é acrescentado por acaso, isto é, a tudo o que não pertença à própria essência — como a cor é acrescentada a objetos cuja essência é independente de tais “qualidades secundárias”. Os atributos que podem ou não se juntar ao que subjaz a eles — seu substrato ou substância (as traduções latinas para hypokeimenon) — são acidentais.

Pouca coisa é mais contingente do que atos voluntários, os quais — pressupondo-se uma vontade livre — poderiam todos ser definidos como atos que sei muito bem que poderia ter deixado de fazer. Uma vontade que não é livre é uma contradição em termos — a não ser que se entenda a faculdade da volição como um órgão executivo, meramente auxiliar para o que quer que o desejo ou a razão tenham proposto. No quadro dessas categorias, tudo o que acontece no campo dos assuntos humanos é acidental ou contingente (“prakton d’esti to endechomenon kai allos echein”, “o que vem a ser através de uma ação é aquilo que poderia também (198) ser outro”): as próprias palavras de Aristóteles já indicam o status ontológico baixo deste campo — um status que nunca foi seriamente ameaçado até a descoberta de Hegel do Sentido e da Necessidade na História.

Na esfera das atividades humanas, Aristóteles admitiu uma exceção importante a esta regra, a saber, a feitura ou fabricação — poiein, diferente de prattein, ação ou práxis. Para usar o exemplo de Aristóteles, o artesão que faz uma “esfera de bronze” reúne matéria e forma, bronze e esfera, ambos com existência anterior ao começo de seu trabalho, e produz um objeto novo a ser acrescentado a um mundo que consiste de coisas feitas pelo homem e de coisas que ganharam existência independentemente dos atos humanos. O produto humano, esse “composto de matéria e forma” — por exemplo, uma casa de madeira feita segundo uma forma pré-existente no espírito (nous) do artesão —, claramente não foi feito do nada; e, assim, Aristóteles compreendia que ele pré-existia “potencialmente” antes de ser atualizado por mãos humanas. Essa noção foi derivada do modo de ser particular da natureza, das coisas vivas, em que tudo o que aparece cresce de alguma coisa que contém potencialmente o produto final, como o carvalho existe potencialmente na semente e o animal no sêmen.

A visão de que tudo o que é real deve ser precedido de uma potencialidade como uma de suas causas nega implicitamente o futuro como um tempo verbal autêntico: o futuro nada mais é que uma consequência do passado, e a diferença entre as coisas naturais e as feitas pelos homens reside simplesmente na distinção entre aquelas cujas potencialidades necessariamente transformam-se em atualidades e aquelas que podem ou não se atualizar. Nessas circunstâncias, qualquer ideia da Vontade como órgão para o futuro, do mesmo modo que a memória é um órgão para o passado, era completamente supérflua; Aristóleles não precisava ter consciência da existência da Vontade; os gregos “sequer têm uma palavra para” o que consideramos a “fonte principal da ação.” (Thelein significa “estar pronto, estar preparado para algo”, boulesthai é “ver algo como (mais) desejável”, e a própria palavra nova inventada por Aristóteles, que se aproxima mais do que essas da nossa ideia de algum estado espiritual que tenha que preceder a ação, é pro-airesis, a “escolha” entre duas possibilidades, ou melhor, a preferência que me faz escolher uma ação ao invés de outra.) Autores que conhecem bem a literatura grega sempre souberam desta lacuna. Assim, Gilson aponta o fato notório de “que Aristóteles não fala de liberdade nem de vontade livre… o próprio termo falta;” e já em Hobbes, temos este ponto bastante explícito. A lacuna fica ainda um tanto difícil de identificar, pois é claro que a língua grega conhece a diferença entre atos intencionais e não intencionais, entre o voluntário (hekon) e o involuntário (akon), isto é, em termos legais, entre assassinato e homicídio culposo; e Aristóteles tem o cuidado de observar que só os atos voluntários estão sujeitos à acusação ou à exaltação. Mas o que ele entende por voluntário significa somente que o ato não foi casual, mas sim desempenhado por um agente em plena posse de sua força espiritual e física — “a fonte do movimento estava no agente” — e a distinção engloba apenas danos cometidos por ignorância ou infortúnio. Um ato no qual estou (199) sob a ameaça de violência, mas a que não sou forçado fisicamente — como no caso em que dou meu dinheiro com minhas próprias mãos ao homem que me ameaça com uma arma —, seria qualificado como voluntário.

É de alguma importância notar que essa curiosa lacuna na filosofia grega — “o fato de que Platão e Aristóteles nunca tenham mencionado [volições] em suas frequentes e elaboradas discussões sobre a natureza da alma e das origens da conduta”, e, portanto, de que não é possível “sustentar a sério que o problema da liberdade tenha algum dia se tornado objeto de debate na filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles” — está em perfeita harmonia com o conceito de tempo vigente na Antiguidade, que identificava a temporalidade com os movimentos circulares dos corpos celestiais e com a não menos cíclica natureza da vida na Terra: a recorrente transformação de dia e noite, verão e inverno, a renovação constante de espécies animais através do nascimento e da morte. Quando Aristóteles sustenta que “vir-a-ser” necessariamente implica a pré-existência de algo que é em potência, mas não em ato”, ele está aplicando ao campo dos assuntos humanos o movimento cíclico que afeta tudo o que vive — em que de fato todo fim é um começo e todo começo um fim, de maneira que “o vir-a-ser continue, embora as coisas estejam constantemente sendo destruídas”. Isso a ponto de poder dizer que não só eventos, mas até mesmo opiniões (doxai), “ocorrendo entre os homens, repetem-se não só uma ou poucas vezes, mas com infinita frequência”. Essa estranha visão dos assuntos humanos não era específica da especulação filosófica. A pretensão que Tucídides tinha de deixar para a posteridade um ktema es aei — um paradigma eternamente útil para o modo de investigação do futuro através de um conhecimento claro do maior evento já conhecido na história — baseava-se implicitamente na mesma convicção de um movimento recorrente dos assuntos humanos.

Para nós, que pensamos em termos de um conceito retilíneo de tempo, com sua ênfase na unicidade do “momento histórico”, a exaltação grega pré-filosófica da grandeza do extraordinário e a importância a ele concedida, — “seja para o mal ou para o bem” (Tucídides), para além de todas as considerações morais, ele merece ser salvo do esquecimento, primeiro pelos bardos e depois pelos historiadores — parece ser incompatível com o conceito cíclico de tempo dos antigos. Mas até que os filósofos descobrissem a perenidade do Ser, que não tem nascimento e morte, o tempo e a mudança no tempo não constituíam problema. Os “anos circulares” de Homero forneciam apenas o pano de fundo em que a notável história aparecera e era narrada. Pode-se encontrar indícios dessa visão não especulativa mais antiga em toda a literatura grega; assim, o próprio Aristóteles, em sua discussão sobre a eudaimonia (na Ética a Nicômaco), está pensando em termos homéricos quando aponta os altos e baixos, as circunstâncias acidentais (tychai) que “voltam muitas vezes na vida de uma pessoa”, ao passo que sua eudaimonia é mais durável, porque reside em certas atividades (energeiai kat’ areteri) que vale a pena lembrar por sua excelência e em torno das quais, portanto, “o esquecimento não cresce” (genesthai).

(200) Quaisquer que sejam as origens e as influências históricas que possamos atribuir ao conceito cíclico de tempo — babilônicas, persas, egípcias —, seu aparecimento foi, do ponto de vista lógico, quase inevitável, uma vez que os filósofos tinham descoberto um Ser perene, sem nascimento e sem morte, dentro de cuja estrutura eles precisavam explicar o movimento, a mudança, o constante ir e vir dos seres vivos. Aristóteles foi bastante explícito com relação à primazia do pressuposto de “que o todo celestial não foi gerado e não pode ser destruído, como alegam alguns, mas é único e eterno, não tendo começo ou fim em sua existência total, contendo e abrangendo em si tempo infinito.” “Que tudo retoma” é, de fato, como observou Nietzsche, “a maior aproximação (possível) entre um mundo de Devir e um mundo de Ser.” Não é portanto de se estranhar que os gregos não tivessem noção da faculdade da Vontade, nosso órgão espiritual para o futuro, em princípio indeterminado, sendo, portanto, um possível anunciador de novidade. Estranho mesmo é verificar que uma tendência tão forte para denunciar a Vontade como uma ilusão ou como uma hipótese inteiramente supérflua depois da crença hebraico-cristã em um início divino — “No princípio Deus criou os céus e a terra” — tenha se tomado um pressuposto dogmático em filosofia. Especialmente quando esse novo credo também estabelecia que o homem era a única criatura feita à imagem do próprio Deus, dotada, portanto, de uma faculdade semelhante de começar. Ainda assim, de todos os pensadores cristãos, somente Santo Agostinho, ao que parece, tirou a conclusão: “(Initium) ut esset, creatus est homo” (“Para que um começo fosse feito, o homem foi criado”).

A relutância em reconhecer a Vontade como uma faculdade do espírito distinta, autônoma, esmoreceu finalmente durante os longos séculos da filosofia cristã, que iremos examinar adiante em mais detalhe. Por maior que fosse a dívida desta filosofia para com a filosofia grega, em especial para com Aristóteles, ela estava fadada a abandonar o conceito cíclico de tempo da Antiguidade e sua noção de etema recorrência. A história que começa com a expulsão de Adão do paraíso e termina com a morte e ressurreição de Cristo é uma história com acontecimentos únicos, que não se podem repetir: “Cristo um dia morreu por nossos pecados; e, levantando-se dos mortos, Ele não mais morreu.” A sequência da história pressupõe um conceito retilíneo de tempo; tem um início definido, um ponto decisivo — o ano Um de nosso calendário — e um fim definido. E foi uma história da máxima importância para os cristãos, embora mal tenha tocado no curso de acontecimentos seculares: ainda se podia esperar que impérios surgissem e caíssem, como no passado. Além do mais, a vida após a morte do cristão era decidida enquanto ele ainda era um “peregrino na terra”; ele mesmo tinha um futuro além do fim determinado e necessário de sua vida — e foi em uma ligação estreita com a preparação para a vida futura que a Vontade e sua Liberdade necessária foram, em toda a sua complexidade, descobertas primeiramente por São Paulo.

Uma das dificuldades de nosso tópico, portanto, é que os problemas com os quais estamos lidando têm sua “origem histórica” na teologia, mais do que em uma (201) tradição contínua de pensamento filosófico. Pois quaisquer que sejam os méritos dos pressupostos pós-antigos sobre a localização da liberdade humana no “eu-quero”, claro está que no esquema do pensamento pré-cristão a liberdade localizava-se no “eu-posso”; liberdade era um estado objetivo do corpo, não um dado da consciência ou do espírito. Liberdade significava poder fazer o que se quer, sem ser forçado pela ordem de um senhor, nem por uma necessidade física que exigisse o trabalho em troca de dinheiro com que suster o corpo, nem por algum defeito somático, tal como saúde má ou paralisia de um dos membros. Segundo a etimologia grega, isto é, segundo a auto-interpretação grega, a raiz da palavra liberdade, eleutheria, é eleuthein hopos ero, ir conforme eu queira; e não resta dúvida de que a liberdade básica era entendida como liberdade de movimento. Uma pessoa era livre se pudesse locomover-se como quisesse; o “eu-posso”, não o “eu-quero”, era o critério.

[ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 196-201]

Original

  1. For the following, see Metaphysics, bk. VII, chaps. 7–10.[↩]
  2. De Anima, 433a30.[↩]
  3. Bruno Snell, The Discovery of the Mind, New York, Evanston, 1960, pp. 182–183.[↩]
  4. The Spirit of Medieval Philosophy, New York, 1940, p. 307.[↩]
  5. “Whether whatsoever comes to pass proceed from necessity, or some things from chance, has been a question disputed amongst the old philosophers long before the incarnation of our Saviour…. But the third way of bringing things to pass…namely freewill, is a thing that never was mentioned amongst them, nor by the Christians in the beginning of Christianity…. But for some ages past, the doctors of the Roman Church have exempted from this dominion of God’s will the will of man; and brought in a doctrine, that…[man’s] will is free, and determined…by the power of the will itself.” “The Question concerning Liberty, Necessity and Chance,” English Works, London, 1841, vol. V, p.l.[↩]
  6. See Nicomachean Ethics, bk. V, chap. 8.[↩]
  7. Ibid., bk. 3,1110al7.[↩]
  8. Gilbert Ryle, The Concept of Mind, New York, 1949, p. 65.[↩]
  9. Henry Herbert Williams, article on the Will in Encyclopaedia Britannica, 11th ed.[↩]
  10. De Generatione, bk. I, chap. 3, 317bl6–18.[↩]
  11. Ibid., 318a25–27 and 319a23–29; The Basic Works of Aristotle, ed. Richard McKeon, New York, 1941, p. 483.[↩]
  12. Meteorologica, 339b27.[↩]
  13. Bk. 1, 1100a33–1100bl8.[↩]
  14. De Caelo, 283b26–31.[↩]
  15. The Will to Power, ed. Walter Kaufmann, Vintage Books, New York, 1968, no. 617.[↩]
  16. De Civitate Dei, bk. XII, chap. 20.[↩]
  17. Ibid., chap. 13.[↩]
  18. Our present calendar, which takes the birth of Christ as the turning-point from which to count time both backward and forward, was introduced at the end of the eighteenth century. The textbooks present the reform as prompted by scholarly needs to facilitate the dating of events in ancient history without having to refer to a maze of different time reckonings. Hegel, as far as I know the only philosopher to ponder the sudden remarkable change, saw in it a clear sign of a truly Christian chronology because the birth of Christ now became the turning-point of world history. It seems more significant that in the new scheme we can count backward and forward in such a way that the past reaches back into an infinite past and the future likewise stretches out into an infinite future. This twofold infinity eliminates all notions of beginning and end, establishing mankind, as it were, in a potentially sempiternal reality on earth. Needless to add that nothing could be more alien to Christian thought than the notion of an earthly immortality of mankind and its world.[↩]
  19. See the article on the Will in the Encyclopaedia Britannica, mentioned above, in n. 16.[↩]
  20. See Dieter Nestle, Eleutheria. Teil I: Studien zum Wesen der Freiheit bei den Griechen und im Neuen Testament, Tubingen, 1967, pp. 6 ff. It seems to be noteworthy that modern etymology inclines to derive the word “eleutheria” from an Indo-Germanic root signifying Volk or Stamm, with the result that only those who belong to the same ethnic unity can be recognized as “free” by their fellow-ethnics. Does not this piece of erudition sound rather uncomfortably close to the notions of German scholarship during the nineteen-thirties, when it first saw the light of day?[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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