Arendt (LM:190-191) – dois em um

Abranches, Almeida & Martins

Até o próprio Sócrates, tão apaixonado pela praça pública, tem que voltar para casa, onde estará só, para encontrar o outro indivíduo.

Chamei a atenção para a passagem do Hípias Maior, em sua absoluta simplicidade, porque ela oferece uma metáfora que pode ajudar a simplificar — sob o risco de simplificar em demasia—assuntos difíceis, e que, portanto, sempre correm o risco de serem demasiadamente complicados. Épocas posteriores deram ao sujeito que espera Sócrates em casa o nome de “consciência moral”. Perante o tribunal, para adotar a linguagem kantiana, temos que comparecer e explicar-nos. E escolhi a passagem de Ricardo III porque Shakespeare, embora use a palavra “consciência moral”, não a usa aqui no sentido costumeiro. Muito tempo se passou antes que a língua separasse a palavra “consciência” (consciousness) da “consciência moral” (conscience); e em algumas línguas, como o francês, essa separação nunca foi feita. A consciência moral, tal como a entendemos em assuntos morais ou legais, está, supostamente, sempre presente em nós, assim como a mera consciência. E essa consciência moral supostamente nos diz o que fazer e do que se arrepender; antes de se tornar o lumen naturale, ou a razão prática de Kant, ela era a voz de Deus.

Ao contrário dessa consciência sempre presente, o sujeito de quem Sócrates fala foi deixado em casa; ele o teme, do mesmo modo como os assassinos de, Ricardo III temem a consciência moral — como algo ausente. Aqui a consciência moral aparece como um re-pensar despertada ou por um crime, no caso do próprio Ricardo, ou por opiniões não submetidas a exame, como no caso de Sócrates. Ela pode também ser o medo antecipado de tais atos de re-pensar, como no caso dos assassinos contratados de Ricardo. Essa consciência moral, diferentemente da voz de Deus dentro de nós ou do lumen naturale, não oferece nenhuma prescrição positiva (mesmo o daimon, a voz divina ouvida por Sócrates, só lhe diz o que não fazer); nas palavras de Shakespeare, ela “deixa um homem repleto de embaraços”. O que faz um homem temê-la é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele voltar para casa. O assassino de Shakespeare diz: “todo homem que pretende viver bem se esforça por… viver sem ela”. Isso é fácil de conseguir, pois tudo o que ele tem a fazer é nunca iniciar o diálogo isolado e sem som a que chamamos de “pensar”, nunca voltar para casa e examinar as coisas. Não se trata aqui de perversidade ou bondade, como também não se trata de inteligência ou estupidez. Uma pessoa que não conhece essa interação silenciosa (na qual examinamos o que dizemos e fazemos) não se importa em contradizer-se, e isso significa que ela jamais quererá ou poderá prestar contas do que faz ou diz; nem se importará em cometer um crime, já que pode estar certa de esquecê-lo no momento seguinte. As pessoas más — não obstante a opinião em contrário de Aristóteles —não são “cheias de remorsos”.

[ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 142-143]

Original

ARENDT, H. The Life of the Mind: the Groundbreaking Investigation on How We Think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 1981.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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