Arendt (LM:19-23) – a natureza experiencial do mundo

Abranches et alii

Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto, são próprias para serem vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas, para serem percebidas por criaturas sensíveis, dotadas de órgãos sensoriais apropriados. Nada poderia aparecer — a palavra “aparência” não faria sentido — se não existissem receptores de aparências: criaturas vivas capazes de conhecer, reconhecer e reagir — em imaginação ou desejo, aprovação ou reprovação, culpa ou prazer — não apenas ao que está aí, mas ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção. Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra.

Já que os seres sensíveis — homens e animais, para quem as coisas aparecem e que, como receptores, garantem sua realidade — são eles mesmos também aparências, próprias para e capazes tanto de ver como de serem vistas, ouvir e serem ouvidas, tocar e serem tocadas, eles nunca são apenas sujeitos e nunca devem ser compreendidos como tal; não são menos “objetivos” do que uma pedra ou uma ponte. A mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade “objetiva”. O que usualmente chamamos “consciência”, o fato de que estou cônscio de mim mesmo, e que, portanto, em algum sentido, posso aparecer para mim mesmo, jamais seria o bastante para assegurar a realidade (o Cogito me cogitare ergo sum, de Descartes, é um non sequitur, pela simples razão de que esta res cogitans nunca aparece, a menos que suas cogitationes sejam manifestadas em um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como receptores). Vista da perspectiva do mundo, cada criatura que nasce chega bem equipada para lidar com um mundo no qual Ser e Aparecer coincidem; são criaturas adequadas à existência mundana. Os seres vivos, homens e animais, não estão apenas no mundo, eles são do mundo. E isso precisamente porque são sujeitos e objetos — percebendo e sendo percebidos — ao mesmo tempo.

Talvez nada surpreenda mais neste nosso mundo, no entanto, do que a infinita diversidade de suas aparências, o simples valor de entretenimento de suas visões, seus sons e seus odores, algo que quase nunca é mencionado por pensadores e filósofos. (Somente Aristóteles, pelo menos incidentalmente, incluía a vida de fruição passiva dos prazeres que nossos órgãos corporais proporcionam entre os três modos de vida a serem escolhidos por aqueles que, não estando sujeitos à necessidade, podem devotar-se ao kalon, ao que é belo, em contraposição ao que é necessário e útil). Essa diversidade é correspondida por uma igualmente estarrecedora diversidade de órgãos sensoriais entre as espécies animais, de tal modo que o que realmente aparece às criaturas vivas assume uma enorme variedade de forma e figura: cada espécie animal vive em um mundo próprio. Ainda assim, todas as criaturas sensorialmente dotadas têm em comum a aparência como tal. Em primeiro lugar, um mundo que lhes aparece; em segundo lugar, e talvez ainda mais importante, o fato de que elas próprias são criaturas que aparecem e desaparecem, o fato de que sempre houve um mundo antes de sua chegada e que sempre haverá um mundo depois de sua partida.

Estar vivo significa viver em um mundo que precede à própria chegada e que sobreviverá à partida. Nesse nível do estar meramente vivo, o aparecer e o desaparecer — à medida que um segue o outro — são os eventos primordiais que, como tais, demarcam o tempo, o intervalo temporal entre o nascimento e a morte. O finito intervalo vital de cada criatura determina não só sua expectativa de vida mas também sua experiência do tempo; ele fornece o protótipo secreto de todas as medidas temporais, não importa quanto essas mensurações transcendam o intervalo em direção ao passado ou ao futuro. Assim, a experiência vivida da duração de um ano muda radicalmente ao longo de nossa vida. Um ano, que consiste em um quinto da existência para uma criança de cinco anos, deve parecer muito maior do que quando chegar a constituir um vigésimo ou um trigésimo do tempo dessa criatura na Terra. Todos sabemos como os anos passam cada vez mais rapidamente à proporção que envelhecemos, até que, com a proximidade da velhice, a velocidade volta a diminuir, porque começamos a medi-los com referência à data psicológica e somaticamente antecipada de nossa partida. Contra esse relógio inerente a seres vivos que nascem e morrem está o tempo “objetivo”, segundo o qual a duração de um ano não muda nunca. Esse é o tempo do mundo, e seu pressuposto subjacente — independente de quaisquer crenças científicas ou religiosas — é que o mundo não tem princípio nem fim, um pressuposto que só parece natural a seres que sempre chegam em um mundo que os precede e que a eles sobreviverá.

Em contraste com o estar-aí inorgânico da matéria morta, os seres vivos são meras aparências. Estar vivo significa ser possuído por um impulso de auto-exposição que responde à própria qualidade de aparecer de cada um. As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado para elas. O palco é comum a todos os que estão vivos, mas parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da espécie. Parecer — o parece-me, dokei moi — é o modo — talvez o único possível — pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e percebido. Aparecer significa sempre parecer para outros, e esse parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores. Em outras palavras, tudo o que aparece adquire, em virtude de sua fenomenalidade, uma espécie de disfarce que pode de fato — embora não necessariamente — ocultar ou desfigurar. Parecer corresponde à circunstância de que toda aparência, independentemente de sua identidade, é percebida por uma pluralidade de espectadores.

O impulso de auto-exposição — responder, apresentando-se, ao efeito esmagador de ser apresentado — parece ser comum a homens e animais. E assim como o ator depende do palco, dos outros atores e dos espectadores para fazer sua entrada em cena, cada coisa viva depende de um mundo que solidamente aparece como a locação de sua própria aparição, da aparição de outras criaturas com as quais contracena e de espectadores que reconhecem e certificam sua existência. Vista da perspectiva dos espectadores para quem ela aparece e de cuja presença ela finalmente desaparece, cada vida individual, seu crescimento e declínio, é um processo de desenvolvimento no qual uma entidade desdobra-se em um movimento ascendente, até que todas as suas propriedades estejam plenamente expostas; essa fase é seguida por um período de permanência — florescência ou epifania, por assim dizer — que, por sua vez, é sucedido pelo movimento descendente de desintegração, que termina com o completo desaparecimento. São muitas as perspectivas segundo as quais esse processo pode ser visto, examinado e compreendido; mas o critério pelo qual uma coisa viva essencialmente é permanece o mesmo: na vida cotidiana, assim como na pesquisa científica, ela é determinada pelo intervalo de tempo relativamente curto de sua plena aparição, de sua epifania. A escolha guiada pelo critério único da completude e da perfeição na aparição seria inteiramente arbitrária se a realidade não fosse, antes de tudo, de uma natureza fenomênica.

A primazia da aparência, para todas as criaturas vivas frente às quais o mundo aparece sob a forma de um parece-me, é de grande relevância para o tópico com o qual vamos lidar — as atividades espirituais que nos distinguem das outras espécies animais. Pois embora haja grandes diferenças entre essas atividades, todas elas têm em comum uma retirada do mundo tal como ele nos aparece, e um movimento para trás em direção ao eu. Isso não causaria maiores problemas se fôssemos meros espectadores, criaturas divinas lançadas no mundo para cuidar dele, dele tirar proveito e com ele nos entreter, mas tendo ainda alguma outra região como habitat natural. Contudo, somos do mundo, e não apenas estamos nele, também somos aparências, pela circunstância de que chegamos e partimos, aparecemos e desaparecemos; e embora vindos de lugar nenhum, chegamos bem equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo. Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais, quando fechamos os olhos do corpo, usando a metáfora platônica, para poder abrir os olhos do espírito. A teoria dos dois mundos é uma das falácias metafísicas, mas ela não seria capaz de sobreviver durante tantos séculos se não houvesse correspondido de maneira tão razoável a algumas experiências fundamentais. Como certa vez Merleau-Ponty formulou, “só posso escapar do ser para o ser”, e já que Ser e Aparecer coincidem para os homens, isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência. Mas o problema não está resolvido, pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer; e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer, ou se, de fato, eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo.

ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 17-20

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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