Arendt (LM:182-187) o conceito de Eu em Heidegger

Helena Martins

Finalmente, há o conceito de Eu, e é este o conceito cuja mudança na “reviravolta” é a mais inesperada e também a que tem maiores consequências. Em Ser e Tempo, o termo “Eu” é “a resposta para a questão Quem (é o homem) ?”, em oposição à questão “O que ele é “; o Eu é o termo para a existência do homem em oposição a qualquer qualidade que ele possa ter. Essa existência, o “autêntico ser um Eu”, é extraída polemicamente do “Eles”. (“Mit dem Ausdruck ‘Selbst’ antworten wir auf die Frage nach dem Wer des Daseins… Das eigentliche Selbstein bestimmt sich als eine existentielle Modifikation des Man.”) Modificando o “Eles” da vida cotidiana, a existência humana produz um “solus ipse” e Heidegger fala, nesse contexto, de um “solipsismo existencial”, isto é, da realização do principium individuationis, uma realização que, em outros filósofos, encontramos como uma das funções essenciais da Vontade. Heidegger atribuíra-a originalmente ao Cuidado, seu termo inicial para o órgão do homem para o futuro.

Para sublinhar a semelhança entre Cuidado (antes da “reviravolta”) e Vontade em um cenário moderno, voltamo-nos para Bergson, que — certamente não influenciado por pensadores anteriores, mas seguindo a evidência imediata da consciência — propusera, apenas algumas décadas antes de Heidegger, a coexistência de dois eus, um social (o “Eles” de Heidegger) e o outro, o “fundamental” (o “autêntico” de Heidegger). A função da vontade é “recuperar esse eu fundamental das “atribulações da vida social em geral e da linguagem em particular”, isto é, daquela linguagem falada habitualmente em que cada palavra tem um “significado social”. Trata-se de uma linguagem repleta de clichês, necessária para a comunicação com os outros em “um mundo externo bem distinto de (nós mesmos), que é a propriedade comum a todos os seres conscientes.” A vida em comum com os outros criou seu próprio tipo de fala, que leva à formação de “um segundo eu … que obscurece o primeiro.” A tarefa da filosofia é levar de volta esse eu social para “o eu real e concreto…, cuja atividade não pode ser comparada à de qualquer outra força”, porque essa força é a pura espontaneidade de que “cada um de nós tem consciência imediata”, e que é obtida somente pela observação imediata que se faz de si mesmo. E Bergson, bem na linha de Nietzsche e, por assim dizer, também em sintonia com Heidegger, enxerga a “prova” dessa espontaneidade na criatividade artística. A geração de uma obra de arte não pode ser explicada por causas antecedentes, como se aquilo que agora é real estivesse antes latente ou potencial, seja na forma de causas externas ou de motivos internos: “Quando um músico compõe uma sinfonia, sua obra era possível antes de ser real?” Heidegger está bastante alinhado com a posição geral quando escreve, no volume I de Nietzsche (isto é, antes da “reviravolta”): “Querer sempre significa: trazer-se a si mesmo… Querendo, encontramo-nos conosco assim como somos autenticamente…”

Ainda assim, esta é toda a afinidade que se pode encontrar entre Heidegger e seus predecessores imediatos. Nunca, em Ser e Tempo — exceto por uma observação lateral sobre a fala poética “como desvelamento possível da existência”—, a criatividade artística é mencionada. No volume I de Nietzsche, a tensão e a relação íntima entre poesia e filosofia, entre o poeta e o filósofo, é observada em duas ocasiões, mas nunca no sentido, nietzscheano ou bergsoniano, de criatividade pura. Em Ser e Tempo, ao contrário, o Eu torna-se manifesto na “voz da consciência”, que chama o homem para retornar de seu próprio enredamento cotidiano no “man’ (em alemão, um elemento que denota impessoalidade, “as pessoas” ou “eles”), retorno que a consciência, em seu chamado, desvela como “culpa” humana, uma palavra (Schuld) que em alemão quer dizer tanto ser culpado (ser responsável) por algum ato quanto ter dívidas, no sentido de dever algo a alguém.

O ponto principal na “ideia de culpa” de Heidegger é que a existência humana é culpada à medida que “existe factualmente”; não “precisa tornar-se culpada de algo por omissões ou práticas; (apenas é chamada) para realizar autenticamente a ‘culpa’ que, de qualquer forma, ela é.” (Aparentemente nunca ocorreu a Heidegger que, fazendo com que todos os homens que escutam o “chamado da consciência” sejam igualmente culpados, ele estava, na verdade, proclamando a inocência universal: onde todos são culpados, ninguém é culpado.) Essa culpa existencial — dada pela existência humana — se estabelece de duas maneiras. Inspirado na ideia de Goethe de que “aquele que age sempre se torna culpado”, Heidegger mostra que toda ação, ao realizar uma única possibilidade, mata de um só golpe todas as outras dentre as quais teve que fazer a escolha. Todo compromisso acarreta algumas desistências. Mais importante do que isso, entretanto, é que o conceito de “ser lançado no mundo” já implica que a existência humana deve sua existência a algo que não é ela mesma; está endividada em virtude de sua própria existência: o Dasein — a existência humana naquilo que é— “foi lançado; está aí, mas aí não foi trazido por si mesmo.”

A consciência exige que o homem aceite essa “dívida”, e aceitação significa que o Eu consegue uma espécie de “ação” (handeln), entendida polemicamente como o oposto das ações “audíveis” e visíveis da vida pública — a simples espuma daquilo que verdadeiramente é. Esse agir é silencioso, é um “deixar o próprio eu agir em sua dívida”, e esta “ação” completamente interior, na qual o homem se abre para a autêntica realidade de ser lançado, pode existir somente na atividade do pensamento. Essa é provavelmente a razão pela qual Heidegger, por toda sua obra, “evitou propositalmente” lidar com a ação. O que mais surpreende em sua interpretação da consciência é a veemente denúncia da “interpretação comum da consciência”, que sempre concebeu como uma espécie de solilóquio, “o diálogo sem som de mim comigo mesmo.” Tal diálogo, sustenta Heidegger, só pode ser explicado como uma tentativa inautêntica de autojustificação contra as alegações do “Eles”. E isto é ainda mais impressionante porque Heidegger, em um contexto diferente — e, é verdade, só de maneira marginal —, fala da “voz de um amigo que todo Dasein (existência humana) traz consigo.”

Por mais estranha e, em última análise, inexplicável que a análise da consciência em Heidegger possa se mostrar pela evidência fenomenológica, a ligação com os simples fatos da existência humana, implícitos no conceito de uma dívida primordial, certamente contêm a primeira pista para a identificação que posteriormente ele faz entre pensar e agradecer. O que o chamado da consciência realiza, na verdade, é a recuperação do eu individualizado (vereinzeltes), de seu envolvimento nos acontecimentos que determinam as atividades cotidianas do homem e no curso do registro histórico — l’écume des choses. Intimado novamente, o eu dirige-se agora para um pensamento que expressa gratidão por “aquilo nu” (naked That) ter sido dado. Confrontado com o Ser, a atitude do homem deve ser a do agradecimento. E cumpre que isso seja visto como uma variante do thaumazein de Platão, o princípio iniciador da filosofia. Lidamos com aquele espanto admirativo; e encontrá-lo em um contexto moderno não impressiona nem surpreende; basta pensar na exaltação “daqueles que dizem Sim” de Nietzsche ou desviar a atenção das especulações acadêmicas para alguns dos grandes poetas deste século. Eles mostram pelo menos como pode ser sugestiva uma afirmação como esta na solução para a aparente falta de sentido em um mundo completamente secularizado. Aqui estão duas linhas do russo Osip Mandelstam, escritas em 1918:

We will remember in Lethe’s cold waters
The earth for us has been worth a thousand heavens.1

Estes versos podem ser facilmente comparados com algumas linhas de Rainer Maria Rilke nas Elegias de Duino, escritas mais ou menos na mesma época; cito algumas delas:

Erde du Hebe, ich will, Oh glaub es bedurfte Nicht deiner Fruhlinge mehr, mich dir zu gewinnem. Einer, ach ein einziger ist schon dem Blute zu viel. Namenlos bin ich zu dir entschlossen von weit her, Immer warstdu im recht. …2

E, finalmente, como um lembrete, cito novamente o que W.H. Auden escreveu mais ou menos vinte anos mais tarde:

That singular command I do not understand, Bless what there is for being, Which has to be obeyed, for What else am I made for, Agreeing or disagreeing?3

Talvez esses exemplos de testemunho não acadêmico para os dilemas da última fase da Era Moderna possam explicar o grande apelo da obra de Heidegger para uma elite da comunidade intelectual, a despeito do quase unânime antagonismo que despertou nas universidades desde o aparecimento de Ser e Tempo.

Mas se isto aplica-se à coincidência entre pensar e agradecer, dificilmente aplica-se à fusão entre pensar e agir. Em Heidegger, ela não é só a eliminação da separação sujeito-objeto com a finalidade de dessubjetivizar o Ego Cartesiano, mas é a fusão real das mudanças na “História do Ser” (Seinsgeschichte) com a atividade de pensamento dos pensadores. “A historia do Ser” inspira e guia secretamente o que se passa na superfície, enquanto os pensadores, escondidos e protegidos por “Eles”, respondem ao Ser e o realizam. Aqui o conceito personificado, cuja existência fantasmagórica produziu o último grande avivamento da filosofia no Idealismo Alemão, torna-se completamente encarnado; há um Alguém que transforma em ação o significado oculto do Ser, originando no curso desastroso dos eventos uma contracorrente salutar.

Este Alguém, o pensador que se habituou a deixar de querer passando a “deixar-ser”, é, na verdade, o “autêntico Eu” de Ser e Tempo, que agora ouve o chamado do Ser, em lugar do chamado da Consciência. Diferente do Eu, o pensador não é convocado por si mesmo a seu Eu; contudo, “ouvir o chamado autenticamente significa mais uma vez persuadir-se a agir factualmente” (“sich in das faktische Handeln bringen”). Nesse contexto, a “reviravolta” significa que o Eu não atua mais em si mesmo (o que se abandonou foi o In-sich-handeln-lassen des eigensten Selbst), mas, obediente ao Ser, desempenha pelo pensamento puro o papel de contracorrente de Ser que subjaz à “espuma” dos seres — as meras aparências cuja corrente é conduzida pela vontade de potência.

O “Eles” reaparece aqui, mas sua principal característica não é mais o “palavrório” (Gerede); é a destrutividade inerente ao querer.

O que origina essa mudança é uma radicalização decisiva tanto da antiga tensão entre pensar e querer (a ser resolvida pelo “querer-não-querer”) quanto do conceito personificado, que apareceu em sua forma mais articulada no “Espírito do Mundo” de Hegel, aquele Ninguém fantasmagórico que confere significado àquilo que é (327) factualmente, ainda que de um modo sem sentido e contingente. Em Heidegger, este Ninguém que supostamente atua por trás dos homens de ação encontra agora uma encarnação na existência do pensador, que age sem nada fazer, sem dúvida uma pessoa que pode até ser identificada como “Pensador”—coisa que, entretanto, não significa seu retorno ao mundo das aparências. Ele continua sendo o solus ipse no “solipsismo existencial”, só que agora o destino do mundo, a História do Ser, passa a depender dele.

ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tr. Antônio Abranches e Cesar Augusto R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 323-327

Original

  1. Lembraremos nas águas frias do Lethe/ Que a terra valeu para nós por mil céus. (tradução livre, N.T.).[↩]
  2. Terra, tu querida, és o que desejo. Oh, acredita-me, não precisas/ Mais de tuas primaveras para ganhar-me; uma única,/ Só uma, já é mais do que meu sangue pode resistir./ Fui agora indizivelmente teu por tempos e tempos./ Estivestes sempre certa…. Nona Elegia (tradução livre, N.T.).[↩]
  3. Aquele singular comando/ Não o entendo,/ Agradeça ao que há por existir! A que devo obedecer, pois/ Para que mais sou feito/ Concordar ou divergir? (tradução livre, N.T.).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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