Há, em segundo lugar, a evidência igualmente impressionante da existência de um impulso inato — não menos coercitivo do que o mero instinto funcional da preservação — a que Portmann chama “impulso de autoexposição” (Selbstdarstellung). Tal instinto é inteiramente gratuito em termos de preservação da vida; ele supera em muito tudo o que se possa julgar necessário para efeito de atração sexual. Tais descobertas sugerem que a predominância da aparência externa implica, além da pura receptividade de nossos sentidos, uma atividade espontânea; tudo o que pode ver quer ser visto, tudo o que pode ouvir pede para ser ouvido, tudo o que pode tocar se apresenta para ser tocado. De fato, é como se tudo o que está vivo — para além do fato de que sua superfície é feita para aparecer, é própria para ser vista e destinada a aparecer para os outros — possuísse um impulso para aparecer, para adequar-se a um MUNDO DE APARÊNCIAS, apresentando e exibindo não seu “eu interno”, mas a si próprio como indivíduo. (O termo “autoexposição”, como o alemão, Selbstdarstellung, é equívoco: pode significar que eu ativamente faço minha presença sentida, vista e ouvida, ou que apresento meu eu (self), alguma coisa dentro de mim que de outra forma jamais apareceria — ou seja, na terminologia de Portmann, uma aparência “não autêntica”. Daqui em diante usaremos o termo na primeira acepção.) É precisamente essa autoexposição, tão realçada já nas formas superiores da vida animal, que atinge seu clímax na espécie humana. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3)
Além do impulso de autoexposição, pelo qual as coisas vivas se acomodam a um MUNDO DE APARÊNCIAS, os homens também apresentam-se por feitos e palavras, e, assim, indicam como querem aparecer, o que, em sua opinião, deve ser e não deve ser visto. Esse elemento de escolha deliberada sobre o que mostrar e o que ocultar parece ser especificamente humano. Até certo ponto podemos escolher como aparecer para os outros; e essa aparência não é de forma alguma a manifestação exterior de uma disposição interna; se fosse, todos nós provavelmente agiríamos e falaríamos do mesmo modo. Também aqui devemos a Aristóteles as distinções cruciais. “O que é proferido”, diz ele, “são símbolos de afecções da alma, e o que é escrito são símbolos de palavras faladas. Como a escrita, também a fala não é a mesma para todos. Entretanto aquilo de que estas (a escrita e a fala) são símbolos, as afecções (pathé/mata) da alma, são as mesmas para todos.” Essas afecções são “naturalmente” expressas por “sons inarticulados (que) também revelam algo, como, por exemplo, o que é produzido pelos animais”. Distinção e individuação ocorrem no discurso, no uso de verbos e substantivos, e esses não são produtos ou “símbolos” da alma, mas do espírito: “Os substantivos e os verbos assemelham-se (eoiken) (…) aos pensamentos (noémasin)” (grifos nossos) (De Interpretatione, 16a3-13). (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4)
De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e não autênticas, se poderia falar de semblâncias autênticas e não autênticas. Estas últimas, miragens como a de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeiras, ao contrário, e como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas “ilusões naturais e inevitáveis” de nosso aparelho sensorial, a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão. Ele chamou a ilusão no juízo transcendente de “natural e inevitável” porque era “inseparável da razão humana e (…) mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto, não deixará de lográ-la e de atraí-la continuamente para aberrações momentâneas que sempre pedem outras correções” (Critique of Pure Reason, B354-B355). O argumento mais plausível, se não o mais forte, contra o positivismo simplista que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringe-se aos fatos observáveis, à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos, é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um MUNDO DE APARÊNCIAS do qual não podemos escapar. Todas as criaturas vivas capazes de perceber aparências por meio de seus órgãos sensoriais e de exibir-se como aparências estão sujeitas a ilusões autênticas que não são as mesmas para todas as espécies, mas encontram-se vinculadas à forma e à modalidade de seu processo vital específico. Os animais também são capazes de produzir semblâncias — um número significativo deles pode até mesmo simular uma aparência física —, e tanto homens quanto animais têm a habilidade inata para manipular as aparências com o propósito de iludir. Pôr a descoberto a “verdadeira” identidade de um animal por trás de sua cor adaptativa temporária não é muito diferente de desmascarar o hipócrita. Mas o que aparece então sob a superfície ilusória não é um eu interno, uma aparência autêntica, imutável e confiável em seu estar-aí. Pôr a descoberto destrói uma ilusão, mas não revela nada que apareça autenticamente. Um “eu interno”, se é que ele chega a existir, nunca aparece nem para o sentido externo, nem para o interno; pois nenhum dos dados internos dispõe de características estáveis, relativamente permanentes, que, sendo reconhecíveis e identificáveis, particularizam a aparência individual. “Nenhum eu fixo e durável pode apresentar-se nesse fluxo de aparências interiores”, observou Kant repetidas vezes (Ibidem, A107. Cf. também B413: “Na intuição interna não há nada permanente”, e B420: Nada de “permanente” é “dado (…) na intuição” “enquanto penso a mim mesmo”.). Na verdade é enganoso até mesmo falar de “aparências” interiores; tudo o que conhecemos são sensações cuja inexorável sucessão impede que qualquer uma delas assuma uma forma duradoura e identificável. (“Pois onde, quando e como houve alguma vez uma visão do interior? (…) O ‘psiquismo’ é opaco para si mesmo.” (The Visible and the Invisible, pp. 18-19)) Emoções e “sensações internas” são “antimundanas”, pois carecem da principal característica mundana: “ficar imóvel e permanecer”, ao menos tempo suficiente para ser claramente percebidas — e não meramente sentidas —, intuídas, identificadas e reconhecidas; mais uma vez, de acordo com Kant, “o tempo, a única forma de intuição interna, não tem nada de permanente” (Critique of Pure Reason, A381). Em outras palavras, quando Kant fala do tempo como a “forma da intuição interna”, ele fala, embora sem o saber, metaforicamente, e retira sua metáfora de nossas experiências espaciais relacionadas com aparências exteriores. É precisamente a ausência de forma e, portanto, de qualquer possibilidade de intuição, que caracteriza nossa experiência das sensações internas. Na experiência interna, a única coisa a que podemos nos prender para distinguir algo que se assemelhe à realidade dos humores incessantemente cambiantes de nossa psique é a repetição persistente. Em casos extremos, a repetição pode tornar-se tão persistente que resulta na permanência indestrutível de um único humor, uma única sensação; mas indica invariavelmente uma grave desordem psíquica, a euforia do maníaco ou a depressão do melancólico. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 5)
O conceito de aparência e, portanto, o de semblância (de Erscheinung e de Schein) nunca desempenharam um papel tão central e decisivo quanto na obra de Kant. A noção kantiana de uma “coisa-em-si”, algo que é mas que não aparece embora produza aparências, pode ser explicada — como de fato o foi — nos termos de uma tradição teológica: Deus é “algo”; Ele “não é um nada”. Deus pode ser pensado, mas somente como o que não aparece, o que não é dado à nossa experiência e, portanto, como o que é “em si mesmo”; e como Ele não aparece, não é para nós. Essa interpretação tem suas dificuldades. Para Kant, Deus é uma “ideia de razão” e, como tal, para nós. Pensar Deus e especular sobre um além é, segundo Kant, inerente ao pensamento humano, uma vez que a razão, a capacidade especulativa do homem, transcende necessariamente as faculdades cognitivas de seu intelecto: somente o que aparece e, no modo do parece-me, é dado à experiência pode ser conhecido; mas os pensamentos também “são”, e algumas coisas-pensamento, a que Kant chama “ideias”, embora nunca dadas à experiência e portanto incognoscíveis, tais como Deus, a liberdade e a imortalidade, são para nós, no sentido enfático de que a razão não pode se impedir de pensá-las e que elas são de grande interesse para os homens e para a vida do espírito. Talvez seja, pois, aconselhável examinar em que medida a noção de uma “coisa-em-si” que não aparece está dada na própria compreensão do mundo como um MUNDO DE APARÊNCIAS, independentemente das necessidades e dos pressupostos de um ser pensante e da vida do espírito. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6)
A realidade em um MUNDO DE APARÊNCIAS é antes de tudo caracterizada por “ficar imóvel e permanecer” o mesmo o tempo suficiente para tornar-se um objeto que pode ser conhecido e reconhecido por um sujeito. A descoberta básica e mais importante de Husserl trata exaustivamente da intencionalidade de todos os atos de consciência, ou seja, do fato de que nenhum ato subjetivo pode prescindir de um objeto. Embora a árvore vista possa ser uma ilusão, para o ato de ver ela é um objeto. Da mesma forma, embora a paisagem sonhada seja visível apenas para o sonhador, ela é objeto de seu sonho. A objetividade é construída na própria subjetividade da consciência em virtude da intencionalidade. Ao contrário, e com a mesma justeza, pode-se falar da intencionalidade das aparências e da sua subjetividade embutida. Exatamente porque aparecem todos os objetos implicam um sujeito, e como todo ato subjetivo tem seu objeto intencional, também todo objeto que aparece tem seu sujeito intencional. Nas palavras de Portmann, toda aparência é uma “emissão para receptores” (uma Sendung für Empfangsapparate). O que quer que apareça visa a alguém que o perceba, um sujeito potencial não menos inerente em toda objetividade do que um objeto potencial é inerente à subjetividade de todo ato intencional. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7)
O fato de que as aparências sempre exigem espectadores e, por isso, sempre implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais tem consequências de longo alcance para o que nós — seres que aparecem em um MUNDO DE APARÊNCIAS — entendemos por realidade — tanto a nossa quanto a do mundo. Em ambos os casos, nossa “fé perceptiva” (The Visible and the Invisible, pp. 28ss) — como designou Merleau-Ponty —, nossa certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de perceber, depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os outros e de que por eles é reconhecido. Sem esse reconhecimento tácito dos outros não seríamos capazes nem mesmo de ter fé no modo como aparecemos para nós mesmos. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7)
Por um lado, a realidade do que percebo é garantida por seu contexto mundano, que inclui outros seres que percebem como eu; por outro lado, ela é percebida pelo trabalho conjunto de meus cinco sentidos. O que, desde Tomás de Aquino, chamamos de senso comum, sensus communis, é uma espécie de sexto sentido necessário para manter juntos meus cinco sentidos e para garantir que é o mesmo objeto que eu vejo, toco, provo, cheiro e ouço; é a “mesma faculdade (que) se estende a todos os objetos dos cinco sentidos” (Tomás de Aquino, Summa Theologica, parte I, questões I, 3 ad. 2). Esse mesmo sentido, um “sexto sentido” misterioso (Parece que foi Gottsched o primeiro a falar em senso comum (sensus communis) como um “sexto sentido”. In Versuch einer Kritischen Dichtkunst für die Deutschen, 1730. Cf. Cícero, De Oratore, III, 50.), porque não pode ser localizado como um órgão corporal, vai adequar as sensações de meus cinco sentidos estritamente privados — tão privados que as sensações, em sua qualidade e intensidade meramente sensoriais, são incomunicáveis — a um mundo comum compartilhado pelos outros. A subjetividade do parece-me é remediada pelo fato de que o mesmo objeto também aparece para os outros, ainda que o seu modo de aparecer possa ser diferente. (É a intersubjetividade do mundo, muito mais do que a similaridade da aparência física, que convence os homens de que eles pertencem à mesma espécie. Ainda que cada objeto singular apareça numa perspectiva diferente para cada indivíduo, o contexto no qual aparece é o mesmo para toda a espécie. Nesse sentido, cada espécie animal vive em um mundo que lhe é próprio e cada indivíduo animal não precisa comparar suas próprias características físicas com as de seus semelhantes para conhecê-los como tais.) Em um MUNDO DE APARÊNCIAS, cheio de erros e semblâncias, a realidade é garantida por esta tríplice comunhão: os cinco sentidos, inteiramente distintos uns dos outros, têm em comum o mesmo objeto; membros da mesma espécie têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico; e todos os outros seres sensorialmente dotados, embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas, estão de acordo acerca de sua identidade. É dessa tríplice comunhão que surge a sensação de realidade. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7)
É tentador equiparar esse “sentido interno”, que não pode ser fisicamente localizado, com a faculdade do pensar; porque entre as principais características do pensamento, que se dá em um MUNDO DE APARÊNCIAS e é realizado por um ser que aparece, está a de que ele próprio é invisível. Partindo do fato de que essa invisibilidade é compartilhada pela faculdade de pensar e pelo senso comum, Peirce conclui que “a realidade tem uma relação com o pensamento humano”, ignorando que o pensamento não só é ele próprio invisível, mas também lida com invisíveis, com coisas que não estão presentes aos sentidos, embora possam ser — e frequentemente são — também objetos sensíveis, relembrados e reunidos no depósito da memória e, assim, preparados para reflexão posterior. Thomas Landon Thorson elabora a sugestão de Peirce e chega à conclusão de que “a realidade mantém uma relação com o processo do pensamento da mesma forma que o ambiente se relaciona com a evolução biológica” (Op. cit., loc. cit). (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7)
A transformação da verdade em mera veracidade deriva primeiramente do fato de que o cientista permanece ligado ao senso comum através do qual nos orientamos em um MUNDO DE APARÊNCIAS. O pensamento retira-se — radicalmente e por sua própria conta — deste mundo e de sua natureza evidencial, ao passo que a ciência se beneficia de uma possível retirada em função de resultados específicos. Em outras palavras, nas teorias científicas, é o raciocínio do senso comum que, em última análise, se aventura no âmbito da pura especulação; e a principal fraqueza do senso comum nessa esfera sempre foi não possuir as salvaguardas inerentes ao mero pensamento, a saber: sua capacidade crítica que, como veremos, guarda em si uma forte tendência autodestrutiva. Mas, voltando ao pressuposto do progresso ilimitado, a falácia básica foi muito cedo descoberta. Sabe-se bem que não foi o progresso per se, mas a ideia de sua não-limitação, que teria tornado a ciência moderna inaceitável para os antigos. Mas é menos conhecido o fato de que os gregos tinham uma razão para seu “preconceito” contra o infinito. (Platão descobriu que tudo o que admite um comparativo é, por sua natureza, ilimitado; e a ausência de limite era, para ele, como para os demais gregos, a causa de todos os males (Philebus, 25-26). Daí sua grande confiança nos números e nas medidas: eles põem limite naquilo que por si — o prazer, por exemplo — “não contém e nunca conterá, e do qual não deriva e nunca derivará nem começo (arché), nem meio, nem fim (telos)”.) (Ibidem, 31a) (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8)
Uma vez que as atividades do espírito, por definição não-aparentes, ocorrem em um MUNDO DE APARÊNCIAS e em um ser que participa dessas aparências por meio de seus órgãos sensoriais receptivos, bem como de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros, elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências. Trata-se não tanto de uma retirada do mundo — somente o pensamento, por sua tendência a generalizar, isto é, por sua preocupação especial com o geral em contraposição ao particular, tende a retirar-se completamente do mundo —, mas de uma retirada do mundo que está presente para os sentidos. Todo ato espiritual repousa na faculdade do espírito de ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos. A re-presentação, o fazer presente o que está de fato ausente, é o dom singular do espírito. E uma vez que toda a nossa terminologia é baseada em metáforas retiradas da experiência da visão, esse dom é chamado de imaginação, definida por Kant como “a faculdade da intuição mesmo sem a presença do objeto” (“Anthropologie”, n° 28, Werke, vol. VI, p. 466). A faculdade do espírito ter presente o que está ausente naturalmente não é restrita às imagens espirituais de objetos ausentes; a memória quase sempre armazena e mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais; e a vontade antecipa o que o futuro poderá trazer, mas que ainda não é. Somente pela capacidade do espírito tornar presente o que está ausente é que podemos dizer “não mais”, e constituir um passado para nós mesmos, ou dizer “ainda não”, e nos preparar para um futuro. Mas isso só é possível para o espírito depois de ele ter se retirado do presente e das urgências da vida cotidiana. Assim, para querer, o espírito deve se retirar da imediaticidade do desejo que, sem refletir e sem reflexividade, estende imediatamente a mão para pegar o objeto desejado; pois a vontade não se ocupa de objetos, mas de projetos, como, por exemplo, com a futura disponibilidade de um objeto que ela pode ou não desejar no presente. A vontade transforma o desejo em uma intenção. E, por último, o juízo, seja ele estético, legal ou moral, pressupõe uma retirada decididamente “não-natural” e deliberada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos tal como são estabelecidos pela minha posição no mundo e pela parte que nele desempenho. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9)
Mencionei anteriormente que a linguagem, o único meio no qual o invisível pode tornar-se manifesto em um MUNDO DE APARÊNCIAS, não é assim tão adequada para exercer aquela função quanto os nossos sentidos são adequados à tarefa de lidar com o mundo perceptível. Sugeri que a metáfora pode, a seu modo, curar o defeito. A cura tem os seus perigos e jamais chega, tampouco, a ser completamente adequada. O perigo está na evidência esmagadora que a metáfora fornece, apelando para a evidência inquestionada da experiência sensível. As metáforas podem, portanto, ser usadas pela razão especulativa, que, na verdade, não as pode evitar; mas quando elas invadem o raciocínio científico, como é sua tendência, são usadas e “abusadas” para fornecer evidência plausível para teorias que, na realidade, são hipóteses a serem provadas ou refutadas pelos fatos. Hans Blumenberg, em seu Paradigemen zu einer Metaphorologie, investigou certas figuras de retórica bastante comuns, tais como a metáfora do iceberg, ou as diversas metáforas marinhas através de séculos de pensamento ocidental; e então, quase por acidente, descobriu em que medida as pseudociências tipicamente modernas devem sua razoabilidade à aparente evidência da metáfora, que substitui a falta de evidência dos dados. O melhor exemplo é a teoria da consciência da psicanálise, em que a consciência é vista como a ponta de um iceberg, uma simples indicação da massa flutuante de inconsciência que está submersa (Bonn, 1960, p. 200s). Não só essa teoria jamais foi demonstrada, como é indemonstrável em seus próprios termos: no momento em que um fragmento de inconsciência alcança a ponta do iceberg, ele terá se tornado consciente e terá perdido todas as propriedades de sua alegada origem. Ainda assim, a evidência da metáfora do iceberg é tão esmagadora que a teoria dispensa argumentos ou demonstração; o uso da metáfora nos pareceria inquestionável se nos dissessem que estávamos lidando com especulações sobre algo desconhecido — do mesmo modo que os séculos anteriores usaram analogias nas especulações sobre Deus. O único problema é que cada uma dessas especulações traz em si um constructo espiritual em cuja ordem sistemática cada dado pode encontrar seu lugar hermenêutico, com uma consistência ainda mais rigorosa do que a fornecida por uma teoria científica bem-sucedida, uma vez que, sendo um constructo exclusivamente espiritual, sem necessidade de qualquer experiência real, não tem de lidar com as exceções à regra. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13)
Píndaro, no poema perdido sobre Zeus, deve ter esclarecido tanto o aspecto subjetivo como o objetivo dessas primeiras experiências de pensamento: se o homem e o mundo não receberem louvores, sua beleza não poderá ser reconhecida. Já que os homens aparecem em um MUNDO DE APARÊNCIAS, eles precisam de espectadores; os que comparecem como espectadores ao festival da vida são tomados por pensamentos de admiração, que são então postos em palavras. Sem espectadores, o mundo seria imperfeito. O participante absorvido em coisas específicas e pressionado por afazeres urgentes não pode ver como todas as coisas particulares do mundo e como todos os feitos particulares ajustam-se uns aos outros e produzem uma harmonia que não é, ela mesma, dada à percepção sensorial. Esse invisível no visível permaneceria para sempre oculto se não houvesse um espectador para cuidar dele, admirá-lo, endireitar as histórias e pô-las em palavras. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14)
Tudo o que nos diz respeito existencialmente, enquanto vivemos em um MUNDO DE APARÊNCIAS, são as “impressões” por meio das quais somos afetados. Se aquilo que nos afeta existe ou é mera ilusão depende de nossa decisão de reconhecê-lo ou não como real. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
Se, quando percebo um objeto fora de mim, decido concentrar-me na minha percepção, no ato de ver, em vez de concentrar-me no objeto visto, é como se eu tivesse perdido o objeto original, porque ele perdeu seu impacto sobre mim. Eu mudei o tema, por assim dizer — em vez de lidar com a árvore, agora lido apenas com a árvore percebida, isto é, com o que Epiteto chama de “impressão”. A grande vantagem é que não estou mais absorvido pelo objeto percebido, algo externo a mim; a árvore percebida está dentro de mim, invisível ao mundo exterior, como se nunca tivesse sido um objeto dos sentidos. O que importa aqui é que a “árvore vista” não é uma coisa-pensamento, mas uma “impressão”. Ela não é algo ausente que precise de uma memória que a guarde para o processo dessensorializante que prepara os objetos do espírito para o pensamento, e que é sempre precedido pela experiência em um MUNDO DE APARÊNCIAS. A árvore vista está “dentro de mim” na sua total presença sensorial, ela é a própria árvore, apenas privada de realidade (realness), uma imagem, e não um re-pensar sobre árvores. O truque descoberto pela filosofia estoica foi usar o espírito de tal modo que a realidade não pudesse atingir o seu possuidor mesmo que ele não tivesse se retirado dela. Em vez de ter se retirado espiritualmente de tudo o que está presente e à mão, o espírito carregou para dentro de si as aparências. E sua “consciência” tornou-se um substituto completo para o mundo exterior, apresentado como impressão ou imagem. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16)
A parábola de Kafka sobre o tempo não se aplica ao homem em suas ocupações cotidianas, mas apenas ao ego pensante, à medida que ele se retirou da rotina diária. A lacuna entre passado e futuro só se abre na reflexão, cujo tema é aquilo mesmo que está ausente — ou porque já desapareceu ou porque ainda não apareceu. A reflexão traz essas “regiões” ausentes à presença do espírito; dessa perspectiva, a atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo. É apenas porque “ele” pensa, e, portanto, deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em um MUNDO DE APARÊNCIAS, que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma que “ele” pode tomar consciência de um não-mais que o empurra para a frente e de um ainda-não que o empurra para trás. (Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20)