A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand, “razão” e “INTELECTO” (e não “entendimento”, o que me parece uma tradução equivocada; Kant usava o alemão Verstand para traduzir o latim intellectus, e, embora Verstand seja o substantivo de verstehen, o “entendimento” das traduções usuais não tem nenhuma das conotações inerentes ao alemão das Verstehen) é crucial para nossa empreitada. Kant traçou essa distinção entre as duas faculdades espirituais após haver descoberto o “escândalo da razão”, ou seja, o fato de que nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais, no entanto, ele mesmo não se pode impedir de pensar. Para ele, esses assuntos — aqueles dos quais apenas o pensamento se ocupa — restringiam-se ao que agora chamamos habitualmente de as “questões últimas” de Deus, da liberdade e da imortalidade. Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões, e embora Kant ainda acreditasse que “nunca houve uma alma honesta que tenha suportado pensar que tudo termina com a morte” [Werke, vol. I, p. 989], ele também estava bastante consciente de que a “necessidade urgente” da razão não só é diferente, mas é “mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento” [“Prolegomena”, Werke, vol. III, p. 245]. Assim, a distinção entre as duas faculdades, razão e INTELECTO, coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no segundo. Embora houvesse insistido nessa distinção, Kant estava ainda tão fortemente tolhido pelo enorme peso da tradição metafísica que não pôde afastar-se de seu tema tradicional, ou seja, daqueles tópicos que se podiam provar incognoscíveis; e embora justificasse a necessidade de a razão pensar além dos limites do que pode ser conhecido, permaneceu inconsciente ao fato de a necessidade humana de reflexão acompanhar quase tudo o que acontece ao homem, tanto as coisas que conhece como as que nunca poderá conhecer. Por tê-la justificado unicamente em termos dessas questões últimas, Kant não se deu conta inteiramente da medida em que havia liberado a razão, a habilidade de pensar. Afirmava, defensivamente, que havia “achado necessário negar o conhecimento […] para abrir espaço para a fé” [Critique of Pure Reason, Bxxx]. Mas não abriu espaço para a fé, e sim para o pensamento, assim como não “negou o conhecimento”, mas separou conhecimento de pensamento. Nas notas de suas lições sobre a metafísica, escreveu: “O propósito da metafísica […] é estender, embora apenas negativamente, nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado aos sentidos; isto é, eliminar os obstáculos que a razão cria para si própria” (grifos nossos) [Kant’s handschriftlicher Nachlass, vol. V, Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 48-49]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
O grande obstáculo que a razão (Vernunft) põe em seu próprio caminho origina-se no INTELECTO (Verstand) e nos critérios, de resto inteiramente justificados, que ele estabeleceu para seus propósitos, ou seja, para saciar nossa sede e fazer face à nossa necessidade de conhecimento e de cognição. O motivo por que nem Kant nem seus sucessores prestaram muita atenção ao pensamento como uma atividade e ainda menos às experiências do ego pensante é que, apesar de todas as distinções, eles estavam exigindo o tipo de resultado e aplicando o tipo de critério para a certeza e a evidência, que são os resultados e os critérios da cognição. Mas, se é verdade que o pensamento e a razão têm justificativa para transcender os limites da cognição e do INTELECTO — e Kant fundou essa justificativa na afirmação de que os assuntos com que lidam, embora incognoscíveis, são do maior interesse existencial para o homem —, então o pressuposto deve ser: o pensamento e a razão não se ocupam daquilo de que se ocupa o INTELECTO. Para antecipar e resumir: a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e significado não são a mesma coisa. A falácia básica que preside a todas as falácias metafísicas é a interpretação do significado no modelo da verdade. O último e, sob certos aspectos, mais chocante exemplo disso ocorre em Ser e tempo, de Heidegger, que começa levantando “novamente a questão do significado do Ser” [Trad. de John Macquarrie e Edward Robison, Londres, 1962, p. 1. Cf. pp. 151 e 324]. O próprio Heidegger, em uma interpretação posterior de sua questão inicial, diz explicitamente: ‘‘‘Significado do Ser’ e ‘Verdade do Ser’ querem dizer o mesmo.” [“Einleitung zu ‘Was ist Metaphysik?’”, in Wegmarken, p. 206] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
As tentações para resolver a equação — que se reduzem à recusa de aceitar e pensar por meio da distinção que Kant faz entre razão e INTELECTO, entre a “necessidade urgente” de pensar e o “desejo de conhecer” — são muito fortes e não podem de modo algum ser unicamente tributadas ao peso da tradição. As ideias de Kant tiveram um efeito liberador extraordinário sobre a filosofia alemã, desencadeando a ascensão do idealismo alemão. Não há dúvida de que abriram espaço para o pensamento especulativo; mas esse pensamento voltou a tornar-se o campo de um novo tipo de especialistas presos à noção de que o “assunto próprio” da filosofia é “o conhecimento real do que verdadeiramente é” [Hegel, The Phenomenology of Mind, trad. de Baillie, Introdução, p. 131]. Libertados por Kant da velha escola dogmática e de seus exercícios estéreis, os especialistas construíram não apenas novos sistemas, mas uma nova “ciência” — o título original da maior dentre as suas obras, a Fenomenologia do espírito, de Hegel, era “Ciência da Experiência da Consciência” [Ibidem, p. 144] —, empalidecendo precipitadamente a distinção que Kant fez entre o interesse da razão pelo incognoscível e o interesse do INTELECTO pela cognição. Buscando o ideal cartesiano de certeza, como se Kant não houvesse existido, eles acreditaram, com toda a honestidade, que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
O conceito de aparência e, portanto, o de semblância (de Erscheinung e de Schein) nunca desempenharam um papel tão central e decisivo quanto na obra de Kant. A noção kantiana de uma “coisa-em-si”, algo que é mas que não aparece embora produza aparências, pode ser explicada — como de fato o foi — nos termos de uma tradição teológica: Deus é “algo”; Ele “não é um nada”. Deus pode ser pensado, mas somente como o que não aparece, o que não é dado à nossa experiência e, portanto, como o que é “em si mesmo”; e como Ele não aparece, não é para nós. Essa interpretação tem suas dificuldades. Para Kant, Deus é uma “ideia de razão” e, como tal, para nós. Pensar Deus e especular sobre um além é, segundo Kant, inerente ao pensamento humano, uma vez que a razão, a capacidade especulativa do homem, transcende necessariamente as faculdades cognitivas de seu INTELECTO: somente o que aparece e, no modo do parece-me, é dado à experiência pode ser conhecido; mas os pensamentos também “são”, e algumas coisas-pensamento, a que Kant chama “ideias”, embora nunca dadas à experiência e portanto incognoscíveis, tais como Deus, a liberdade e a imortalidade, são para nós, no sentido enfático de que a razão não pode se impedir de pensá-las e que elas são de grande interesse para os homens e para a vida do espírito. Talvez seja, pois, aconselhável examinar em que medida a noção de uma “coisa-em-si” que não aparece está dada na própria compreensão do mundo como um mundo de aparências, independentemente das necessidades e dos pressupostos de um ser pensante e da vida do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Entretanto, a faculdade de pensar — que Kant, como vimos, chamou Vernunft (razão), para distinguir de Verstand (INTELECTO), a faculdade de cognição — é de uma natureza inteiramente diversa. A distinção, em seu nível mais elementar e nas próprias palavras de Kant, encontra-se no fato de que “os conceitos da razão nos servem para conceber [begreifen, compreender], assim como os conceitos do INTELECTO nos servem para apreender percepções” (“Vernunftbegriffe dienen zum Begreifen, wie Verstandesbegriffe zum Verstehen der Wahrnehmungen”) [Critique of Pure Reason, B367]. Em outras palavras, o INTELECTO (Verstand) deseja apreender o que é dado aos sentidos, mas a razão (Vernunft) quer compreender seu significado. A cognição, cujo critério mais elevado é a verdade, deriva esse critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais, cujo testemunho é autoevidente, ou seja, inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência. Como tradução alemã da palavra latina perceptio, o termo Wahrnehmung, usado por Kant (o que me é dado na percepção e deve ser verdadeiro [Wahr]), indica claramente que a verdade está situada na evidência dos sentidos. Mas esse não é o caso do significado e da faculdade do pensamento que busca o significado; essa faculdade não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe — sua existência é sempre tomada como certa —, mas o que significa, para ela, ser. Essa distinção entre verdade e significado parece-me não só decisiva para qualquer investigação sobre a natureza do pensamento humano, mas parece ser também a consequência necessária da distinção crucial que Kant faz entre razão e INTELECTO. Deve-se admitir que Kant jamais desenvolveu essa implicação particular de seu próprio pensamento; uma linha clara de demarcação entre essas duas modalidades inteiramente distintas não pode ser encontrada na história da filosofia. As exceções — observações ocasionais sobre a interpretação — não têm importância para a filosofia posterior a Aristóteles. Naquele primeiro tratado sobre a linguagem, ele escreve: Todo “logos [proposição, no contexto] é um som significativo [phoné semantiké]”; ele dá um sinal, aponta para alguma coisa. Mas “nem todo logos é revelador (apóphantikós); somente aqueles nos quais tem vigência o discurso verdadeiro ou o discurso falso (alítheuein ou pseudesthai). Nem sempre é esse o caso. Por exemplo, uma oração é um logos [é significativa], mas não é verdadeira nem falsa” [De Interpretatione, 17a 1-4]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
A fonte da verdade matemática é o cérebro humano; e o poder cerebral não é menos natural nem está menos equipado para nos guiar em um mundo que aparece do que o estão nossos sentidos vinculados ao senso comum e à extensão daquilo que Kant denominou INTELECTO. A melhor prova disso pode estar no fato bastante misterioso de que o raciocínio matemático — a mais pura atividade de nosso cérebro e, à primeira vista, em função da abstração que faz de todas as qualidades dadas aos nossos sentidos, a mais distanciada do mero raciocínio do senso comum — possa assumir um papel tão desmesuradamente liberador na exploração científica do universo. O INTELECTO, o órgão do conhecimento e da cognição, ainda pertence a este mundo; nas palavras de Duns Scotus, ele está sob o domínio da natureza, cadit sub natura, e carrega consigo todas as necessidades a que está sujeito um ser vivo dotado de órgãos sensoriais e poder cerebral. O oposto de necessidade não é contingência ou acidente, mas liberdade. Tudo o que aparece aos olhos humanos, tudo que ocorre ao espírito humano, tudo o que acontece de pior ou de melhor aos mortais é “contingente”, inclusive sua própria existência. Todos sabemos que: Unpredictably, decades ago, You arrived among that unending cascade of creatures spewed from Nature’s maw. A random event, says Science. O que não nos impede de responder com o poeta: Random my bottom! A true miracle, say I, for who is not certain that he was meant to be? [“Décadas atrás, subitamente você chegou/ em meio à infinita cascata de criaturas vomitadas/ das entranhas da Natureza. Um evento aleatório, diz a Ciência.” O que não nos impede de responder com o poeta: “Aleatório uma ova! Um verdadeiro milagre, digo eu,/ pois quem duvida de que ele estava destinado a ser?”. W. H. Auden, “Talking to Myself”, Collected Poems, Nova York, 1976, p. 653 (tradução livre).] Mas esse estar “destinado a ser” não é uma verdade; é uma proposição altamente significativa. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
Quando distingo verdade e significado, conhecimento e pensamento, e quando insisto na importância dessa distinção, não quero negar a conexão entre a busca de significado do pensamento e a busca de verdade do conhecimento. Ao formularem as irrespondíveis questões de significado, os homens se afirmam como seres que interrogam. Por trás de todas as questões cognitivas para as quais os homens encontram respostas escondem-se as questões irrespondíveis que parecem inteiramente vãs e que, desse modo, sempre foram denunciadas. É bem provável que os homens, se viessem a perder o apetite pelo significado que chamamos pensamento e deixassem de formular questões irrespondíveis, perdessem não só a habilidade de produzir aquelas coisas-pensamento que chamamos obras de arte, como também a capacidade de formular todas as questões respondíveis sobre as quais se funda qualquer civilização. Nesse sentido, a razão é a condição a priori do INTELECTO e da cognição; e porque razão e INTELECTO estão assim conectados — apesar da completa diferença de disposição e propósito — é que os filósofos sentiram-se sempre tentados a aceitar o critério da verdade — tão válido para a ciência e para a vida cotidiana — como igualmente aplicável ao âmbito bastante extraordinário em que se movem. Pois nosso desejo de conhecer, surgido de perplexidades práticas ou puramente teoréticas, é saciado quando atinge o objetivo prescrito, e enquanto a sede de conhecimento pode ser ela mesma inesgotável, em virtude da imensidão do desconhecido, a própria atividade deixa atrás de si um tesouro crescente de conhecimento que é retido e armazenado por toda civilização como parte integrante de seu mundo. O fracasso dessa acumulação e da especialização técnica necessária para conservá-la e aumentá-la tem como consequência inevitável o fim desse mundo particular. A atividade do pensamento, ao contrário, não deixa nada de tangível em seu rastro, e, portanto, a necessidade de pensar não pode nunca ser exaurida pelos insights dos “homens sábios”. À medida que nos preocupamos com resultados positivos, o máximo que podemos esperar da atividade do pensamento é o que Kant finalmente atingiu, quando levou a cabo o intuito “de estender, embora apenas negativamente, nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado sensorialmente, ou seja, eliminar os obstáculos com os quais a razão se embaraça” [Notes on Metaphisics, Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 4849]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
A famosa distinção kantiana entre Vernunft e Verstand, entre a faculdade do pensamento especulativo e a capacidade de conhecer que surge da experiência sensorial — em que “todo pensamento é apenas um meio para alcançar a intuição” (“Quaisquer que sejam as maneiras e os meios pelos quais um conhecimento esteja relacionado com objetos, a intuição é o meio através do qual o conhecimento está em relação imediata com os objetos, e para o qual todo pensamento, como um meio, se dirige”) [Critique of Pure Reason, A19, B33] —, tem consequências de alcance muito mais amplo e por vezes são distintas das consequências por ele reconhecidas. [Que eu conheça, a única interpretação de Kant que poderia ser citada em apoio à minha própria compreensão da distinção kantiana entre razão e INTELECTO é a excelente análise de Crítica da razão pura feita por Eric Weil: “Penser et Connaître, la Foi et la Chose-en-soi”, in Problèmes Kantiens, 2ª ed., Paris, 1970. Segundo Weil, é inevitável “d’affirmer que Kant, qui dénie à la raison pure la possibilité de connaître et de développer une science, lui reconnaît, en revanche, celle d’acquérir un savoir qui, au lieu de connaître, pense” (p. 23). Deve-se admitir, entretanto, que as conclusões de Weil permanecem próximo da compreensão que Kant tinha de si mesmo. Weil está interessado principalmente na interconexão entre as razões Pura e Prática; desse modo afirma que “le fondement dernier de la philosophie kantienne doit être cherché dans sa theórie de l’homme, dans l’anthropologie philosophique, non dans une ‘théorie de la connaissance’ […]” (p. 33). Por outro lado, minhas principais reservas em relação à filosofia de Kant dizem respeito precisamente à sua filosofia moral, ou seja, à Crítica da razão prática, embora eu concorde, naturalmente, que aqueles que leram a Crítica da razão pura como uma espécie de epistemologia parecem ignorar completamente os capítulos finais do livro (p. 34). Os quatro ensaios do livro de Weil, de longe os mais importantes artigos da literatura sobre Kant nos últimos anos, estão baseados na descoberta simples, mas crucial, de que “l’opposition connaître […] et penser est fondamentale pour la compréhension de la pensée kantienne” (p.112, n. 2).] (Discutindo Platão, Kant certa vez observou que “não é nada incomum, quando se comparam os pensamentos expressos por um autor com o seu assunto […], descobrir que compreendemos melhor esse autor do que ele próprio compreendeu a si mesmo. À medida que o autor não determinou suficientemente seu conceito, pode ser que, algumas vezes, ele tenha falado ou até pensado em sentido contrário à sua intenção” [Critique of Pure Reason, A314]. Isso, naturalmente, é aplicável à própria obra de Kant.) Embora tenha insistido na incapacidade da razão para atingir conhecimento, particularmente em relação a Deus, à liberdade e à imortalidade — para ele os mais elevados objetos do pensamento —, não pôde romper completamente com a convicção de que o propósito final do pensamento, assim como do conhecimento, é a verdade e a cognição; é assim que ele utiliza ao longo de suas Críticas o termo Vernunfterkentnis, “conhecimento derivado da razão pura” [Ibidem, B868], uma noção que, para ele, deve ter sido uma contradição em termos. Kant nunca teve completa consciência de haver liberado a razão e o pensamento, de haver justificado essa faculdade e sua atividade, mesmo quando elas não se podem gabar de ter produzido quaisquer “resultados” positivos. Como vimos, ele afirmou ter “achado necessário negar o conhecimento […] para abrir espaço para a fé” [Ibidem, Bxxx]; mas o que ele de fato “negou” foi o conhecimento das coisas incognoscíveis; com isso, abriu espaço para o pensamento, não para a fé. Acreditava ter lançado as fundações de uma “metafísica sistemática” futura como um “legado para a posteridade” [Ibidem]; e é verdade que, sem a liberação do pensamento especulativo realizada por Kant, o surgimento do idealismo alemão e de seus sistemas metafísicos dificilmente teria sido possível. Mas a nova leva de filósofos — Fichte, Schelling, Hegel — não teria agradado Kant. Liberados por ele do velho dogmatismo escolástico e de seus exercícios estéreis, e encorajados a cultivar o pensamento especulativo, eles seguiram, na verdade, o exemplo de Descartes: saíram em busca de certeza, apagaram novamente a linha demarcatória entre pensamento e conhecimento e acreditaram honestamente que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
Pensar, querer e julgar são as três atividades espirituais básicas. Não podem ser derivadas umas das outras e, embora tenham certas características comuns, não podem ser reduzidas a um denominador comum. Para a pergunta “O que nos faz pensar?” não há, em última instância, outra resposta senão a que Kant chamava de “a necessidade da razão”, o impulso interno dessa faculdade para se realizar na especulação. Algo semelhante pode ser dito da vontade, que não pode ser movida nem pela razão nem pelo desejo. “Nada além da vontade é a causa total da volição” (“nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate”), na notável fórmula de Duns Scotus; ou “voluntas vult se velle” (“a verdade quer querer-se”), como até mesmo Tomás, o menos voluntarista dentre aqueles que refletiram sobre esta faculdade, teve que admitir [De Veritate, questão XXII, art. 12]. Por fim, o juízo, a misteriosa capacidade do espírito pela qual são reunidos o geral, sempre uma construção espiritual, e o particular, sempre dado à experiência sensível, é uma “faculdade peculiar” e de modo algum inerente ao INTELECTO, nem mesmo no caso dos “juízos determinantes” — em que os particulares são subordinados a regras gerais sob a forma de um silogismo —, porque não dispomos de nenhuma regra para as aplicações da regra. Saber como aplicar o geral ao particular é um “dom natural” suplementar, cuja ausência é “comumente chamada de estupidez, e para tal falha não há remédio” [Critique of Pure Reason, B171-B174]. A natureza autônoma do juízo é ainda mais óbvia no caso do “juízo reflexivo”, que não desce do geral para o particular, mas vai “do particular […] até o universal”, quando determina, sem qualquer regra geral, que “isto é belo”, “isto é feio”, “isso é certo”, “isso é errado”; e, aqui, por um princípio orientador, o julgar “só pode dar [-se] como uma lei de si mesmo e para si mesmo” [Critique of Judgement, trad. J. H. Bernard, Nova York, 1951, introdução, IV]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
Essas observações sobre a interconexão de linguagem com pensamento, que nos fazem suspeitar de que não há possibilidade de existir um pensamento não discursivo, obviamente não se aplicam a civilizações em que o signo escrito, em lugar da palavra falada, é decisivo; e em que, consequentemente, o pensamento em si não é discurso silencioso, mas sim um lidar mental com imagens. Isso vale claramente para a China, cuja filosofia pode muito bem equiparar-se à filosofia do Ocidente. Lá, “o poder das palavras é sustentado pelo poder do signo escrito, da imagem”, e não o oposto, como ocorre com as linguagens alfabéticas, em que a escrita é considerada secundária, nada além de um conjunto convencional de símbolos [Para o que aqui segue, baseei-me rigorosamente no primeiro capítulo, sobre“Language and Script”, do grande livro de Marcel Granet, La Pensée Chinoise, Paris, 1934. Usei a nova edição alemã, que foi recém-publicada por Manfred Porkert: Das chinesische Denken-Inhalt, Form, Charakter, Munique, 1971.]. Para os chineses, todo signo torna visível aquilo a que chamaríamos um conceito ou uma essência — conta-se que Confúcio disse, uma vez, que o signo chinês para “cachorro” é a imagem perfeita do cachorro em si, enquanto, para nosso entendimento, “não há imagem que se possa adequar ao conceito” de cachorro em geral. “Essa imagem jamais conteria aquela universalidade do conceito que o torna válido” para todos os cachorros [Kant, Critique of Pure Reason, B180]. “O conceito ‘cachorro’’’, segundo Kant — autor que no capítulo sobre “Esquematismo”, na Crítica da razão pura, esclarece uma das hipóteses básicas de todo o pensamento ocidental —, “significa a regra de acordo com a qual minha imaginação é capaz de delinear a figura de um animal de quatro patas de uma maneira geral, sem limitar-se por qualquer figura determinada, que possa de fato ser apresentada pela experiência, ou por qualquer imagem que eu possa representar in concreto.” E acrescenta: “Esse esquematismo de nosso INTELECTO […] é uma arte escondida nas profundezas da alma humana, é pouquíssimo provável que a natureza venha algum dia a permitir que descubramos os modos reais de atividade dessa arte, que eles se desvelem ao nosso olhar.” [B180-181] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
O mesmo será ouvido, quase com as mesmas palavras, ao final de todo este desenvolvimento. É desse modo que Nietzsche, que certamente não era um platonista, escreve a seu amigo Overbeck: “Minha filosofia […] não pode mais ser comunicada, pelo menos não pode ser impressa” [2 de julho de 1885]; e, em Além do bem e do mal: “Não se pode mais amar suficientemente um insight quando o comunicamos.” [N° 160] E Heidegger escreve, não sobre Nietzsche, mas sobre si mesmo: “O limite interno de todo pensamento […] é que o pensador jamais pode dizer aquilo que é mais seu […], porque a palavra falada recebe sua determinação do inefável.” [Nietzsche, Pfullingen, 1961, vol. II, p. 484] Ao que podemos acrescentar breves observações de Wittgenstein, cujas investigações filosóficas centram-se no inefável, em um esforço incansável para dizer o que “pode ser”: “Os resultados da filosofia são a descoberta […] de galos que o INTELECTO ganhou quando bateu com a cabeça nos limites da linguagem.” Esses galos são o que designamos aqui como “falácias metafísicas”; são aquilo que “nos faz ver o valor da descoberta”. Ou: “Os problemas filosóficos surgem quando a linguagem sai de férias” (wenn die Sprache feiert). No alemão isso é ambíguo: pode significar “tirar férias”, isto é, a linguagem para de funcionar, ou pode significar “celebrar”, o que teria um significado quase oposto. Ou: “A filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento de nossa inteligência pela linguagem.” O problema, claro, é que novamente tal batalha só pode ser travada com a linguagem [Philosophical Investigations, trad. G. E. Anscombe, Nova York, 1953, n° 119, 19, 109]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Schelling citou enfaticamente as palavras de Kant; e provavelmente foi dessa passagem, e não da observação mais superficial de Leibniz, que ele derivou sua própria e repetida insistência nessa “questão última” de todo pensamento — “por que afinal existe algo, por que não existe o nada?” [Werke, 6. Ergänzungsband, ed. M. Schröter, Munique, 1954, p. 242] Schelling diz que é esta “a mais desesperadora das questões” [Ibidem, p. 7]. A referência ao puro desespero que surge do próprio pensamento aparece nos escritos tardios de Schelling; e isso é significativo porque o mesmo pensamento já o havia assombrado antes, em sua juventude, quando ele ainda acreditava que, para banir o nada, bastava a “afirmação absoluta”, que ele chamava “a essência da nossa alma”. Por meio dessa afirmação “reconhecemos que o não-ser é para sempre impossível”, incognoscível e incompreensível. E para o jovem Schelling essa questão última (“por que não há o nada, por que há algo?”) — colocada pelo INTELECTO tomado de vertigem, à beira do abismo — é para sempre suprimida pela percepção de que “o Ser é necessário, [feito de tal forma que] ele é, pela afirmação absoluta do Ser na cognição” [Ver o System der gesammten Philosophie (1804), publicado postumamente, in Sämtliche Werke, I, Stuttgart e Augsburg, 1860, vol. VI, p. 155]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]
Essa atemporalidade não é certamente a eternidade; ela brota, por assim dizer, do choque entre passado e futuro, ao passo que eternidade é o conceito-limite, impensável porque assinala o colapso de todas as dimensões temporais. A dimensão temporal do nunc stans, experimentada na atividade de pensar, reúne na sua própria presença os tempos ausentes, o ainda-não e o não-mais. É o que Kant chama de “terra do puro INTELECTO” (Land des reinen Verstandes), “uma ilha, encerrada dentro de limites inalteráveis pela própria natureza” e “rodeada por um vasto e tempestuoso oceano”, o mar da vida cotidiana [Critique of Pure Reason, B3294 s]. E embora não acredite que esta é a “terra da verdade”, ela é certamente o único domínio em que o conjunto de uma vida humana e seu significado — de resto inacessível a homens mortais (nemo ante mortem beatus esse dici potest), cuja existência, ao contrário de todas as outras coisas que só começam a ser em sentido enfático quando estão terminadas, termina quando não é mais —, em que esse conjunto inapreensível pode se manifestar como a pura continuidade do eu-sou, uma presença que permanece em meio à transitoriedade sempre mutável do mundo. É por causa dessa experiência do ego pensante que o primado do presente, no mundo das aparências, o mais transitório dos tempos, tornou-se quase um alvo dogmático da especulação filosófica. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Mas esta última tentativa de defender a atividade de pensar da acusação que lhe dirigem de não ser prática nem útil não funciona. A decisão a que chega a vontade não poderá jamais ser derivada da mecânica do desejo ou das deliberações do INTELECTO que podem vir a precedê-la. Ou bem a vontade é um órgão da livre espontaneidade que interrompe cada cadeia causal da motivação que a prende, ou bem ela nada mais é que uma ilusão. Em relação ao desejo, por um lado, e à razão, por outro, a vontade age como “uma espécie de coup d’état”, como disse Bergson, e isso obviamente significa que “os atos livres são excepcionais”: “embora sejamos livres sempre que queiramos voltar a nós mesmos, raramente acontece de querermos isso” (grifos nossos). [Time and Free Will (1910), trad. F. L. Pogson, Harper Torchbooks, Nova York, Evanston, 1960, pp. 158, 167, 240.] Em outras palavras, é impossível lidar com a atividade volitiva sem tocar no problema da liberdade. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]
As faculdades humanas não são, ao contrário das condições e circunstâncias da vida humana, contemporâneas ao aparecimento do homem na Terra? Se não fosse esse o caso, como poderíamos chegar a compreender a literatura e o pensamento de tempos passados? Há, decerto, uma “história das ideias”, e seria bem fácil traçar a história da ideia de Liberdade: como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político — aquele do cidadão livre e não o do escravo — e de uma circunstância física factual — aquela de um homem saudável, cujo corpo não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito — e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem podia sentir-se livre quando era, na verdade, um escravo, ou quando não era capaz de mover seus membros. As ideias são artefatos do espírito, e sua história pressupõe a identidade imutável do homem, o artífice. Voltaremos mais adiante a esse problema. De qualquer forma, o fato é que, antes do surgimento do cristianismo, jamais encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à “ideia” de Liberdade, assim como a faculdade do INTELECTO correspondia à verdade, e a faculdade da Razão, a coisas que estão além do conhecimento humano ou, como dissemos aqui, ao Significado. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Quando então resolvemos investigar a experiência temporal do ego pensante, deixamos de julgar que nossa questão estava mal colocada. A memória, o poder que o espírito possui de ter presente aquilo que irrevogavelmente já passou e que está, portanto, ausente dos sentidos, foi sempre o exemplo paradigmático mais plausível do poder que o espírito tem de tornar presentes os invisíveis. Porque tem esse poder, o espírito parece ser até mais forte que a realidade; opõe sua força à futilidade inerente a tudo o que está sujeito à mudança; recupera e relembra o que de outra forma estaria condenado à ruína e ao esquecimento. A região temporal em que se dá esse salvamento é o Presente do ego pensante, uma espécie de “hoje” [todayness] duradouro (hodiernos, “do dia de hoje”, era como Agostinho chamava a eternidade de Deus) [Confessions, Livro XI, cap. 13], o “agora permanente” [nunc stans] da meditação medieval, um presente que dura [o présent qui dure de Bergson] [La Pensée et le Mouvant (1934), Paris, 1950, p. 170] ou “a lacuna entre o passado e o futuro”, conforme a designação que demos ao explicarmos a parábola kafkiana do tempo. Mas é somente quando aceitamos a interpretação medieval dessa experiência temporal como um indício da eternidade divina que somos forçados a concluir que não só a espacialidade, mas também a temporalidade é provisoriamente suspensa nas atividades do espírito. Tal interpretação envolve toda a nossa vida espiritual em uma aura de misticismo e estranhamente desconsidera exatamente o que há de comum na experiência em si. A constituição de um “presente que dura” é “o ato habitual, normal, banal do nosso INTELECTO” [Ibidem, p. 26], realizado em qualquer tipo de reflexão, seja quando ela tem como objeto as ocorrências comuns do dia a dia, seja quando a atenção se concentra em coisas eternamente invisíveis, que ficam de fora da esfera do poder humano. A atividade do espírito sempre cria para si mesma un présent qui dure, uma “lacuna entre o passado e o futuro”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Visto desse ângulo, que é o ângulo do ego volitivo, não é a liberdade, mas a necessidade que parece ser uma ilusão da consciência. O insight de Bergson me parece ao mesmo tempo elementar e altamente significativo; mas não será também significativo o fato de essa observação, apesar de sua plausibilidade simples, nunca ter tido qualquer importância nas intermináveis discussões sobre necessidade versus liberdade? Ao que eu saiba, o ponto foi levantado somente uma vez antes de Bergson. Trata-se de Duns Scotus, o solitário defensor da primazia da Vontade sobre o INTELECTO e — mais que isso — do fator contingência em tudo o que é. Se há algo como uma filosofia cristã, então Duns Scotus teria de ser reconhecido não só como “o mais importante pensador da Idade Média cristã” [Assim escreveu Wilhelm Windelband em seu famoso History of Philosophy (1982), Nova York, 1960, p. 314. Ele também chama Duns Scotus de “o maior dos escolásticos” (p. 425)], mas talvez também como o único que não buscou um meio-termo entre a fé cristã e a filosofia grega, e que ousou, portanto, tornar um símbolo dos “verdadeiros cristãos [dizer] que Deus age contingentemente”. “Aqueles que negam que algum ser é contingente”, disse Scotus, “deveriam ser expostos a tormentos, até reconhecer que é possível para eles não ser atormentados.” [John Duns Scotus, Philosophical Writings: A Selection. Trad. Allan Wolter, Library of Liberal Arts, Indianápolis, Nova York, 1962, pp. 84 e 10] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Se a contingência — que, para a filosofia clássica, era o máximo da falta de sentido — irrompeu como realidade nos primeiros séculos da Era Cristã por causa da doutrina bíblica — que “opunha a contingência à necessidade, a particularidade à universalidade, a vontade ao INTELECTO”, assegurando assim “um lugar para ‘o contingente’ dentro da filosofia contra a tendenciosidade original desta última” [Hans Jonas, op. cit., p. 29] —, ou se as abaladoras experiências políticas dos primeiros séculos daquela Era deixaram à mostra os truísmos e as plausibilidades do pensamento antigo, essa é uma questão que pode ficar em aberto. Não restam dúvidas, porém, de que a inclinação original contra a contingência, a particularidade e a Vontade — e a predominância correspondente da necessidade, da universalidade e do INTELECTO — sobreviveu profundamente ao desafio até a Era Moderna. A filosofia religiosa e medieval, bem como a secular e moderna, encontraram diversas maneiras de assimilar a Vontade, o órgão da liberdade e do futuro, à ordem mais antiga das coisas. Pois, como quer que enxerguemos esses assuntos, factualmente Bergson está bastante certo quando diz: A maioria dos filósofos […] é incapaz […] de conceber a novidade radical e a imprevisibilidade […]. Mesmo os poucos que acreditaram no liberum arbitrium, reduziram-no a uma simples “escolha” entre duas ou mais opções, como se estas opções fossem “possibilidades” […] e a Vontade ficou restrita a realizar uma delas. Logo, eles ainda aceitavam […] que tudo é dado. Parecem nunca ter tido a menor noção de uma atividade inteiramente nova […]. E esse tipo de atividade é, afinal, a ação livre. [Op. cit., p. 10] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Todo esse problema atormentou os filósofos; e suas tentativas de resolvê-lo nunca tiveram muito sucesso; via de regra, seus argumentos fogem ao assunto em sua gritante simplicidade. Ou nega-se que o mal é verdadeiramente real (ele existe apenas como modalidade deficiente do bem), ou se descarta o mal, com a explicação de que é uma espécie de ilusão de ótica (o problema está em nosso INTELECTO limitado, que falha em encaixar um particular de forma adequada em um todo que o justificaria) — tudo isso se assumirmos sem discussão a hipótese de que “somente o todo é na verdade real” (“nur das Ganze hat eigentliche Wirklichkeit”), nas palavras de Hegel. O mal, não sendo, nisso, diferente da liberdade, parece pertencer àquelas “coisas sobre as quais até os homens mais cultos e inventivos não podem saber quase nada” [Duns Scotus, op. cit., p. 171]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Essa prova da liberdade da Vontade se funda exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que nada tem a ver com qualquer posse ou potestas real — a faculdade necessária para executar os comandos da Vontade. A prova retira sua plausibilidade de uma comparação da vontade com a razão, por um lado, e com os desejos, por outro; e não é possível, para nenhum dos dois, dizer-se livre. (Vimos que Aristóteles introduziu sua proairesis para evitar o dilema de dizer que o “homem bom” obriga-se a desviar-se de seus apetites, ou que o “homem vil” obriga-se a desviar-se de sua razão.) Qualquer coisa que a razão me diga é forçosa no que diz respeito à razão. Posso ser capaz de dizer “Não” para uma verdade a mim revelada, mas não posso de modo algum fazê-lo em termos racionais. Os apetites surgem automaticamente em meu corpo, e meus desejos são despertados por objetos que estão fora de mim; posso dizer “Não” a eles, aconselhado pela razão ou pela lei de Deus, mas a razão em si não me leva à resistência. (Duns Scotus, muito influenciado por Agostinho, elabora mais tarde esse argumento. Sem dúvida o homem carnal, no sentido em que Paulo o entendia, não pode ser livre; mas o homem espiritual tampouco é livre. Qualquer poder que o INTELECTO possa ter sobre o espírito será um poder de forçar; o que o INTELECTO jamais pode provar ao espírito é que este não deve simplesmente sujeitar-se a ele, mas deve também querer fazê-lo.) [Ver Étienne Gilson, Jean Duns Scot: introduction à ses positions fondamentales, Paris, 1952, p. 657.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
O que é então que faz a vontade querer? O que põe a vontade em movimento? A questão é inevitável, mas a resposta acaba levando a um regresso ao infinito. Pois se a pergunta fosse respondida, “não irias perguntar também sobre a causa daquela causa, caso a descobrisses?”. Não desejarias saber a “causa da vontade anterior à vontade?”. Não poderia ser inerente à Vontade, nesse sentido, não ter uma causa? “Pois ou a Vontade é a sua própria causa ou não é uma Vontade.” [Ibidem, cap. xvii] A Vontade é um fato que, em sua factualidade puramente contingente, não pode ser explicado em termos de causalidade. Ou, para antecipar uma última sugestão de Heidegger, já que a Vontade se experimenta como causadora do acontecimento de coisas que, de outra forma, não teriam acontecido, não poderia ocorrer que aquilo que se esconde por trás da nossa busca de causas não é nem o INTELECTO nem nossa sede de saber (que poderia ser saciada com a informação direta), mas precisamente a Vontade — como se por trás de cada “por que” existisse um desejo latente, não só de aprender e de conhecer, mas também de saber-como? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
A tríade Ser, Querer e Conhecer aparece somente na formulação um tanto incerta das Confissões: é óbvio que o Ser aqui não está em seu lugar, já que não é uma faculdade do espírito. Em Sobre a Trindade, a mais importante tríade do espírito é Memória, INTELECTO e Vontade. Essas três faculdades “não são três espíritos, mas um só […]. Referem-se mutuamente […], sendo que cada uma é compreendida pelas” outras duas, e que também mantêm relação consigo mesmas: “Lembro-me de que tenho memória, INTELECTO e vontade; entendo que entendo, quero e me lembro; e quero querer, lembrar-me e entender.” [Ibidem, livro X, cap. xi, 18] Essas três faculdades são iguais em peso, mas sua Unidade deve-se à Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
A Vontade diz à Memória o que reter e o que esquecer; diz ao INTELECTO o que escolher para o entendimento. A Memória e o INTELECTO são contemplativos e, sendo assim, são passivos; é a Vontade que os faz trabalhar e que, ao final, os “reúne”. Somente quando, através de uma destas faculdades, a saber, a Vontade, as três são forçadas a tornar-se uma unidade, estamos falando de pensamento — o cogitatio, que Agostinho, jogando com a etimologia, deriva de cogere (coactum), obrigar a junção, unir à força. (“Atque ita fit illa trinitas ex memoria, et interna visione, et quae utrumque copulat voluntate. Quia tria [in unum] coguntur, ab ipso coactu cogitatio dicitur.”) [Ibidem, livro XI, cap. iii, 6] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Além disso, ao fixarmos nosso espírito no que vemos ou ouvimos, estamos dizendo à nossa memória o que é para ser lembrado, e ao nosso INTELECTO, o que é para ser entendido, que objetos se deve tentar alcançar na busca de conhecimento. A memória e o INTELECTO retiraram-se das aparências exteriores, e não é com essas aparências em si (a árvore real) que lidam, mas com imagens (a árvore vista) que estão claramente dentro de nós. Em outras palavras, a Vontade, por meio da atenção, primeiro une os nossos órgãos dos sentidos ao mundo real de uma forma significativa; e então arrasta esse mundo exterior para dentro de nós, preparando-o para operações posteriores do espírito: para ser lembrado, para ser entendido, para ser afirmado ou negado. Pois as imagens internas não são absolutamente meras ilusões. “Ao nos concentrarmos com exclusividade nas imaginações internas, e ao voltarmos por completo o olho do espírito para longe dos corpos que cercam os nossos sentidos”, deparamos “com uma semelhança tão surpreendente das espécies corpóreas expressadas pela memória”, que é difícil dizer se estamos vendo ou simplesmente imaginando. “Tão grande é o poder do espírito sobre o seu corpo” que a pura imaginação “pode despertar os órgãos genitais” [Ibidem, cap. iv, 7]. Esse poder do espírito deve-se não ao INTELECTO, tampouco à Memória, mas somente à Vontade, que une a interioridade do espírito ao mundo exterior. A posição privilegiada do homem dentro da Criação, no mundo exterior, se deve ao espírito, que “imagina de dentro, e ainda assim imagina coisas que são de fora. Pois ninguém poderia usar tais coisas [do mundo exterior] […], a não ser que as imagens das coisas sensíveis ficassem retidas na memória, e a não ser […] que a mesma vontade [fosse] adaptada tanto aos corpos de fora quanto às suas imagens de dentro” [Ibidem, cap. v, 8]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Essa Vontade, como a força que unifica e liga o aparato sensorial humano ao mundo exterior e é, então, aquilo que reúne as diferentes faculdades espirituais do homem, apresenta duas características que estiveram completamente ausentes das várias descrições de vontade que examinamos até aqui. Essa Vontade poderia ser entendida como “a fonte da ação”; ao orientar a atenção dos sentidos, controlando as imagens impressas na memória e fornecendo ao INTELECTO o material para a compreensão, a Vontade prepara o terreno no qual a ação se pode dar. Fica-se tentado a afirmar que essa Vontade está tão ocupada preparando a ação que nem sequer tem tempo de se envolver na controvérsia com sua própria contravontade. “E assim como no homem e na mulher há uma só carne de dois, também a natureza única do espírito [a Vontade] abarca nosso INTELECTO e nossa ação, ou nosso conselho e nossa execução […] assim como foi dito daqueles: ‘Devem ser dois em uma só carne’, pode-se também dizer desses [do homem interior e do exterior]: ‘Dois em um só espírito.’” [Ibidem, livro XII, cap. iii, 3] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
O que a vontade não é capaz de realizar é esse desfrutar imóvel; a vontade é dada como uma faculdade do espírito, porque o espírito não “se basta”, e, “em virtude de sua necessidade e do seu querer, torna-se excessivamente atento às suas próprias ações” [Ibidem, livro X, cap. v, 7. Grifo nosso]. A vontade decide como usar a memória e o INTELECTO, isto é, “remete essas faculdades a alguma outra coisa”, mas não sabe como usá-las com “o júbilo, não da esperança, mas do que é realmente o melhor” [Ibidem, cap. xi, 17]. É esse o motivo pelo qual a vontade não está jamais satisfeita, “pois satisfação significa que a vontade está em repouso” [Ibidem, livro XI, cap. v, 9], e nada — e certamente nunca a esperança — pode apaziguar a inquietação de vontade, “a não ser a resignação”, o desfrutar calmo e duradouro de algo presente; somente “a força do amor é tão grande que faz com que o espírito envolva em si mesmo as coisas sobre as quais refletiu longamente com amor” [Ibidem, livro X, cap. v, 7]. Todo o espírito “está nas coisas sobre as quais pensa com amor”, e são essas as coisas “sem as quais ele não pode pensar em si mesmo” [Ibidem, cap. viii, 11]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Para resumir: a Vontade de Agostinho, que não é concebida como uma faculdade isolada, mas em sua função dentro do espírito como um todo, em que todas as faculdades individuais — memória, INTELECTO e vontade — “referem-se mutuamente” [Ibidem, livro X, cap. xi, 18], encontra redenção ao transformar-se em Amor. O Amor como uma espécie de vontade duradoura e livre de conflitos apresenta uma semelhança óbvia com o “eu que perdura” de Mill, que prevalece finalmente nas decisões da vontade. O Amor de Agostinho exerce sua influência pelo “peso” — “a vontade assemelha-se a um peso” [Ibidem, livro XI, cap. ix. 18] —, junta-se à alma, interrompendo assim suas flutuações. Os homens não vêm a ser justos por saber o que é justo, mas por amar a justiça. O amor é a gravidade da alma, ou o contrário: “gravidade específica dos corpos é, por assim dizer, seu amor.” [The City of God, livro XI, cap. xxviii] No mais, o que se salva nessa transformação da concepção mais antiga de Agostinho é o poder que a Vontade tem de afirmar ou negar; não há maior afirmação de algo ou de alguém do que amar este algo ou alguém, isto é, do que dizer: quero que tu sejas — Amo: Volo ut sis. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Há mais de quarenta anos, Étienne Gilson, o grande revigorador da filosofia cristã, falando em Aberdeen na posição de Gifford Lecturer, discursou sobre o reflorescimento magnífico da filosofia grega no século XIII; o resultado foi uma formulação clássica e a meu ver duradoura — O espírito da filosofia medieval — do “princípio básico de toda a especulação medieval”. Referiu-se à fides quaerens intellectum, a “fé pedindo auxílio ao INTELECTO”, de Anselmo, fazendo assim da filosofia ancilla theologiae, a serva da fé. Havia sempre o perigo de a serva tornar-se “ama”, conforme a advertência do papa Gregório IX na Universidade de Paris, que antecipava, em mais de duzentos anos, os fulminantes ataques de Lutero a esta stultitia, a esta loucura. Menciono o nome de Gilson certamente não para sugerir comparações — que seriam fatais para mim mesma —, mas, em vez disso, por um sentimento de gratidão e também com a finalidade de explicar por que daqui por diante evitarei discutir assuntos que foram há muito tempo tratados de maneira tão magistral e com um resultado que está disponível — até mesmo em brochura. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Ler Tomás é aprender como tais domicílios são construídos. Primeiro, levantam-se as Questões do modo mais abstrato possível, ainda que não de modo especulativo; então, os pontos de investigação para cada questão são ordenados, seguindo-se as Objeções que podem ser feitas para cada resposta possível; depois disso, um “Ao contrário” introduz a posição oposta; e é somente depois de o terreno ter sido preparado que a resposta do próprio Tomás é dada, completa e com respostas específicas às Objeções. Esta ordem esquemática jamais se altera, e o leitor com paciência suficiente para seguir a longa sequência de questões e de respostas, levando em conta cada objeção e cada posição contrária, ficará fascinado com a imensidão de um INTELECTO que parece tudo saber. Em cada caso, apela-se para alguma autoridade, e isso é particularmente impressionante quando os argumentos que estão sendo refutados foram antes expostos com a citação de uma autoridade a apoiá-los. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Com clareza insuperável, Tomás estabelece a distinção entre duas faculdades de “apreensão”: o INTELECTO e a razão; as duas têm suas correspondentes faculdades intelectualmente apetitivas, vontade e liberum arbitrium ou livre escolha. O INTELECTO e a razão lidam com a verdade. O INTELECTO, também chamado de “razão universal”, lida com a verdade matemática ou autoevidente, com os primeiros princípios que dispensam demonstração para ser admitidos, enquanto a razão, ou razão particular, é a faculdade por meio da qual retiramos conclusões particulares de proposições universais, como nos silogismos. A razão universal é por natureza contemplativa, ao passo que a tarefa da razão particular é “passar do conhecimento de uma coisa ao conhecimento de outra, e, assim […], raciocinamos sobre conclusões a que se chega por meio de princípios”. [Ibidem, questão 81, a. 3, em questão 83, a. 4] Esse processo de raciocínio discursivo domina todas as obras de Tomás. (A época do Iluminismo foi chamada de Idade da Razão — o que pode ou não ser uma descrição adequada; esses séculos da Idade Média certamente são mais bem nomeados como Idade do Raciocínio.) A distinção seria que a verdade, percebida apenas pelo INTELECTO, revela-se ao espírito e a ele se impõe sem que haja qualquer atividade da parte do espírito, enquanto, no processo do raciocínio discursivo, o espírito compele a si mesmo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
O processo de raciocínio argumentativo é ativado pela fé de uma criatura racional cujo INTELECTO volta-se naturalmente para o Criador, em busca de ajuda para atingir “um tal conhecimento do ser verdadeiro”, que é Ele “tal como pode ser encontrado dentro dos limites da razão natural”. [Duns Scotus, citado por Gilson, The Spirit of Medieval Philosophy, p. 52] O que se revelou à fé nas Escrituras não estava sujeito a dúvidas, assim como não se duvidava da autoevidência dos primeiros princípios na filosofia grega. A verdade compele. O que distingue, em Tomás, esse poder de compelir da coerção da alétheia grega não é o fato de que a revelação decisiva venha de fora, mas sim de que “à verdade que a revelação promulgava de fora, correspondia de dentro a luz da razão. A fé, ex auditu [por exemplo, Moisés escutando a voz divina], despertou de imediato uma voz em resposta”. [Gilson, The Spirit of Medieval Philosophy, p. 437] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
A mudança mais impressionante que se observa quando se passa de Agostinho para Tomás e Duns Scotus é que nenhum dos dois últimos está interessado na problemática da estrutura da Vontade, vista como faculdade isolada; o que está em jogo para eles é a relação entre a Vontade e a Razão, ou o INTELECTO, e a questão dominante é qual dessas faculdades é a mais “nobre”, e, portanto, qual delas tem o direito de primazia sobre a outra. Mais significativo ainda, especialmente em vista da enorme influência de Agostinho sobre os dois pensadores, pode ser o fato de que, das três faculdades de Agostinho — Memória, INTELECTO e Vontade —, uma delas tenha se perdido, a saber, a Memória, a faculdade mais especificamente romana, a que liga o homem ao passado. Tal perda acabou sendo definitiva; nunca mais se vê, em nossa tradição filosófica, a Memória na mesma posição do INTELECTO e da Vontade. Sem falar nas consequências dessa perda para toda a nossa filosofia estritamente política [Em “What Is Authority”, in Between Past and Future, tentei mostrar a importância do passado para uma concepção romana de política. Ver especialmente a explicação da tríade romana: auctoritas, religio, traditio.], é óbvio que o que se foi junto com a memória — sedes animi est in memoria — foi uma compreensão do caráter profundamente temporal da natureza e da existência humana, manifesto no homo temporalis de Agostinho [De Civitate Dei, livro XII, cap. xiv]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
O INTELECTO, que, em Agostinho, se relacionava com tudo o que estivesse presente no espírito, em Tomás volta a relacionar-se com os primeiros princípios, isto é, com o que é logicamente anterior a qualquer outra coisa: é a partir deles que tem início o processo de raciocínio que lida com particulares [Op. cit., I, questão 5, a. 4]. O objeto próprio da Vontade é o fim, e, ainda assim, esse fim não é o futuro, assim como o “primeiro princípio” não é o passado: princípio e fim são categorias lógicas, e não temporais. No que diz respeito à Vontade, Tomás, seguindo de perto a Ética a Nicômaco, insiste principalmente na categoria meios-fim; e, como em Aristóteles, o fim, embora seja objeto da Vontade, é dado à Vontade pelas faculdades de apreensão, isto é, pelo INTELECTO. A “ordem de ação” adequada é portanto a seguinte: “Dá-se primeiro a apreensão do fim […], depois o conselho [deliberação] sobre os meios; e finalmente o desejo pelos meios.” [Ibidem, I-II, questão 15, a. 3] A cada passo o poder de apreensão precede, tem primazia sobre o movimento apetitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Todas as coisas criadas, cuja distinção maior é a de que são, aspiram a “Ser [cada uma] do seu próprio modo”, mas somente o INTELECTO tem “conhecimento” do Ser como um todo; os sentidos “não conhecem o Ser, exceto sob as circunstâncias do aqui e do agora”. [Summa Theologica, I, questão 75, a. 6] O INTELECTO “apreende o Ser absolutamente e para todo o sempre”, e o homem, dotado desta faculdade, só pode desejar “sempre existir”. Tal é a “inclinação natural” da Vontade, cujo objetivo final é para ela tão “necessário” quanto a verdade é coercitiva para o INTELECTO. A bem dizer, a vontade é livre apenas no que diz respeito a “bens particulares”, pelos quais ela não é “necessariamente movida”, embora os apetites possam ser por eles movidos. O objetivo final, o desejo que o INTELECTO tem de existir para sempre, mantém os apetites sob controle, de modo que a distinção concreta entre os homens e os animais manifeste-se no fato de que o homem “não é movido de imediato [por seus apetites, que ele tem em comum com todas as coisas vivas] […] mas aguarda a ordem da Vontade, que é o apetite superior […] e, assim, o apetite inferior não basta para causar movimento a não ser que o apetite mais alto consinta” [Ibidem, questão 82, a. 4]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Agora iremos nos voltar para a questão de qual dos dois poderes do espírito, quando comparados, será “absolutamente mais alto e mais nobre”. À primeira vista, a questão não parece fazer muito sentido, já que o objeto final é o mesmo; é o Ser que aparece como bom e desejável para a vontade e verdadeiro para o INTELECTO. E Tomás concorda: esses dois poderes “estão incluídos um no outro em seus atos, porque o INTELECTO entende que a Vontade quer, e a Vontade quer que o INTELECTO entenda” [Ibidem, questão 82, a. 4]. Mesmo quando estabelecemos uma distinção entre o “bom” e o “verdadeiro”, considerando-os correspondentes a diferentes faculdades do espírito, eles acabam sendo muito parecidos, porque ambos são universais no que diz respeito a seu alcance. Assim como o INTELECTO “apreende o ser universal e a verdade”, também a Vontade “deseja o bem universal”; e assim como o INTELECTO tem o raciocínio como seu poder subordinado para lidar com os particulares, também a Vontade tem como subordinada a faculdade da livre escolha (liberum arbitrium), um auxiliar subserviente na escolha dos meios particulares adequados para se alcançar um fim universal. Além disso, já que ambas as faculdades têm o Ser como objetivo final — seja sob o aspecto do que é Verdadeiro ou do que é Bom —, elas parecem iguais, dispondo, cada uma, dos serviços de seu próprio criado para lidar com os meros particulares. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Voltando a Tomás, ele insiste: “Se INTELECTO e Vontade forem comparados de acordo com a universalidade de seus respectivos objetos, então […] o INTELECTO é absolutamente mais alto e mais nobre do que a Vontade.” Essa proposição é bastante significativa porque ela não vem de sua filosofia geral do Ser. O próprio Tomás de certa forma admite isso. Para ele, a primazia do INTELECTO sobre a Vontade não está tanto na relação de primazia de seus respectivos objetos — a Verdade sobre o Bem —, mas sim no modo como as duas faculdades “concorrem” dentro do espírito humano: “todo movimento da vontade […] é precedido de uma compreensão” — ninguém pode querer o que não conhece — “enquanto […] a compreensão não é precedida de um ato da vontade” [Summa Theologica, I, questão 82, a. 4]. (Aqui naturalmente ele se afasta de Agostinho, que sustentava a primazia da Vontade como atenção, mesmo para atos de percepção sensorial.) Tal precedência mostra-se em cada volição. Na “livre escolha”, por exemplo, em que se elegem os meios para um fim, os dois poderes concorrem na eleição: “o poder cognitivo […], através do qual julgamos que uma coisa é preferível a outra […]”, e “o poder apetitivo [por meio do qual] exige-se que o apetite aceite o julgamento do conselho” [Ibidem, questão 83, a. 3]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Se encaramos as posições agostinianas e tomísticas em termos puramente psicológicos, como seus autores costumavam com frequência qualificá-las, temos que admitir que a oposição entre elas é algo espúria, já que ambas são igualmente plausíveis. Quem poderia negar que ninguém pode querer o que não conhece de alguma forma, ou, ao contrário, que alguma volição precede e decide a direção que queremos dar a nosso conhecimento ou à nossa busca de conhecimento? A verdadeira razão de Tomás para sustentar a primazia do INTELECTO — assim como a razão final de Agostinho para decidir sobre o primado da Vontade — está na resposta indemonstrável para a questão decisiva de todos os pensadores medievais: em que “consiste o fim e a felicidade última do homem”? [Levantado por Tomás na Summa contra Gentiles, III, 26] Sabemos que a resposta de Agostinho foi amor; ele pretendia passar sua vida eterna em uma união livre de desejos e inseparável da criatura com seu criador. Já Tomás, em óbvia resposta a Agostinho e aos agostinianos (embora sem mencioná-los), diz que embora se possa pensar que a felicidade e o fim último do homem consistam “não em conhecer Deus, mas em amá-Lo, ou em algum outro ato de vontade em direção a Ele”, ele, Tomás, sustenta que “uma coisa é possuir o bem que é o nosso fim, e outra é amá-lo; pois o amor era imperfeito antes de possuirmos o fim, e perfeito depois de dele termos tomado posse”. Para ele, um amor sem desejo é impensável, e, portanto, a resposta é categórica: “A felicidade última do homem é essencialmente conhecer Deus pelo INTELECTO; não é um ato da Vontade.” Aqui Tomás segue seu mestre, Alberto Magno, que declarou que “o júbilo supremo se dá quando o INTELECTO encontra-se em estado de contemplação”. [Citado de Wilhelm Kahl, Die Lehre vom Primat des Willens bei Augustin, Duns Scotus und Descartes, Estrasburgo, 1886, p. 61, nota.] A concordância absoluta de Dante merece menção: Hence may be seen how the celestial bliss / Is founded on the act that seeth god, / Not that which loves, which comes after this. [The Divine Comedy, Paraíso, canto xviii, I. 109 s., trad. Laurence Binyon, Nova York, 1949. “Assim vês como a glória celestial se funda/ Mais no ato de ver a Deus/ Do que no amor que apenas o secunda.” (Tradução livre, N. T.)] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Quando iniciei essas considerações tentei enfatizar a distinção entre Vontade e desejo, e, consequentemente, entre o conceito de Amor na filosofia da Vontade de Agostinho e o eros platônico no Banquete, em que se indica uma deficiência no amante e um desejo de possuir qualquer coisa que possa faltar. O que acabei de citar de Tomás mostra, a meu ver, até que ponto seu conceito das faculdades apetitivas deve-se ainda à noção de um desejo de possuir em um Além tudo o que possa faltar à vida terrena. Pois a Vontade, entendida basicamente como desejo, termina quando se toma posse do objeto desejado, e a noção de que “a Vontade é exaltada quando está de posse daquilo que quer” [Citado de Gustav Siewerth, Thomas von Aquin, die menschliche Willensfreiheit. Texte […] ausgewähltsmit einer Einleitung versehen, Düsseldorf, 1954, p. 62.] é simplesmente uma inverdade — este é precisamente o momento em que a Vontade deixa de querer. O INTELECTO, que segundo Tomás é um “poder passivo” [Summa Theologica, I, questão 79, a. 2], tem garantida a primazia sobre a Vontade não só porque “apresenta um objeto ao apetite”, sendo assim anterior a ele, mas também porque sobrevive à Vontade, que se extingue, de certo modo, quando se alcança o objeto. A transformação da Vontade em Amor — em Agostinho, bem como em Duns Scotus — era, pelo menos em parte, inspirada por uma separação mais radical entre a Vontade e os apetites e desejos e por uma noção diferente da “felicidade e do fim último do homem”. Mesmo no Além, o homem continua sendo homem, e sua “felicidade última” não pode ser a simples “passividade”. O Amor pôde ser invocado para redimir a vontade porque ainda é ativo, embora sem inquietude, sem perseguir um fim ou ter medo de perdê-lo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Quaisquer que sejam as vantagens dessa distinção — e a meu ver elas são cruciais para qualquer teoria da ação —, elas têm pouca relevância para a noção que Tomás tem de “felicidade última”. Ele opõe a contemplação a qualquer tipo de fazer, aqui em grande harmonia com Aristóteles, para quem a energeia tou theou é contemplativa, enquanto a ação, assim como a produção, são “insignificantes e indignas dos deuses”. (“Se tiramos a ação de um ser vivo, sem mencionar a produção, o que sobra senão a contemplação?”) Logo, humanamente falando, a contemplação é o “nada-fazer”, exaltado pela intuição pura, venturosamente em repouso. A felicidade, diz Aristóteles, “depende do descanso, pois nosso propósito ao nos ocuparmos [seja agindo, seja fazendo] é ter descanso, e promovemos a guerra para termos paz” [Nicomachean Ethics, livro X, 1178b18-21; 1177b5-6]. Para Tomás, somente este fim último — a ventura da contemplação — “move a vontade” necessariamente: “a vontade não pode deixar de querê-la”. Logo, a Vontade move o INTELECTO para que ele seja ativo, do mesmo modo que se diz que um agente move; mas “o INTELECTO move a Vontade do modo como o fim move” [Summa Theologica, I-II, questão 10, a. 2; Summa contra Gentiles, loc. cit.] — isto é, do modo como o “motor imóvel” de Aristóteles devia mover-se; e como poderia mover-se senão em virtude de “ser amado”, assim como o amante é movido pelo amado? [Metaphisics, 1072b3] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Aquilo que em Aristóteles era o “mais contínuo dos prazeres” é agora esperado como ventura eterna, não um prazer que possa atender às volições, mas um deleite que põe em repouso a vontade, de modo que o fim último da Vontade, visto em referência a si mesmo, seja deixar de querer — atingir, em suma, o seu próprio não-ser. E no contexto do pensamento de Tomás, isso implica que toda atividade, uma vez que seu fim jamais é alcançado enquanto ainda é ativa, ambiciona finalmente a sua própria autodestruição; os meios desaparecem quando o fim é alcançado. (É como se alguém, ao escrever um livro, fosse sempre levado pelo desejo de terminá-lo e de livrar-se da escrita.) O ponto a que Tomás, em sua decidida predileção pela contemplação como simples ver e não-fazer, estava disposto a chegar fica evidente em uma fortuita observação marginal, quando interpreta um texto paulino que trata do amor entre duas pessoas. Poderia o “prazer” de amar alguém, indaga ele, significar que o “fim” último da Vontade foi posto no homem? A resposta é “não”, pois, segundo Tomás, o que Paulo disse na verdade foi que “gostava de seu irmão como um meio para gostar de Deus” [Summa Theologica, I-II, questão 11, a. 3. Cf. Commentary on St. Paul’s Epistle to the Galatians, cap. 5, lec. 3.] — e Deus, como vimos, não pode ser alcançado pela Vontade ou pelo Amor do Homem, mas somente por seu INTELECTO. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Passando agora para Duns Scotus, não estaremos dando um salto sobre os séculos, com todas as inevitáveis descontinuidades e discordâncias que tornam o historiador suspeito. Apenas uma geração o separava de Tomás; foram quase contemporâneos. Estamos ainda em meio à Escolástica. Encontra-se, nos textos dos dois, a mesma mistura curiosa de citações da Antiguidade — tratadas como autoridades — e razão argumentativa. Embora Scotus não tenha escrito uma Summa, procede do mesmo modo que Tomás: primeiro, a Questão enuncia o que está sendo investigado (por exemplo, o monoteísmo: “Pergunto se há somente um Deus”); discutem-se, então, os prós e contras, com base em citações de autoridade; em seguida, os argumentos de outros pensadores são apresentados; e, finalmente, no Respondeo, Scotus enuncia suas próprias opiniões, as viae, os “Caminhos” como ele as designa, que as cadeias de pensamento percorrerão junto com os argumentos corretos [Ver, por exemplo, a seção IV da edição bilíngue de Duns Scotus: Philosophical Writtings, ed. e trad. Allan Wolter, Edimburgo, Londres, 1962, pp. 83 e ss.]. Sem dúvida, à primeira vista, a impressão é de que o único ponto de diferença em relação ao escolasticismo tomista é a questão da primazia da vontade, a qual é “provada” por Scotus com tanta plausibilidade argumentativa quanto a que Tomás desenvolveu para provar a primazia do INTELECTO, e com quase o mesmo número de citações de Aristóteles. Pondo em poucas palavras os argumentos opostos, temos o seguinte: se Tomás argumentara que a Vontade é um órgão executivo, necessário para executar os insights do INTELECTO, uma faculdade meramente “subserviente”, Duns Scotus sustenta que “Intellectus […] est causa subserviens voluntatis”. O INTELECTO serve à Vontade, fornecendo a ela seus objetos, bem como o conhecimento necessário; ou seja, o INTELECTO torna-se, por sua vez, uma faculdade meramente subserviente. Precisa da Vontade para direcionar sua atenção e só pode funcionar adequadamente quando seu objeto é “confirmado” pela Vontade. Sem esta confirmação, o INTELECTO deixa de funcionar. [Citado de Khal, op. cit., pp. 97 e 99] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Essa evidente fraqueza da razão natural jamais pode ser usada como argumento para a superioridade de faculdades irracionais no pensamento amadurecido do próprio Scotus; ele não era nenhum místico, e a noção de que “o homem é irracional” era para ele “impensável” (“incogitabile”) [Ibidem, p. 73]. Trata-se, aqui, segundo ele, da fronteira natural de uma criatura essencialmente limitada, cuja finitude é absoluta, “anterior a qualquer referência que venha a fazer a outra essência”. “Pois assim como um corpo limita-se primeiramente em si mesmo por suas próprias extremidades, antes de ser limitado em relação a qualquer outra coisa […] também a forma finita é primeiro limitada em si mesma, antes de ser limitada em relação à matéria.” [Ibidem, p. 75] Essa finitude do INTELECTO humano — bastante semelhante àquela do homo temporalis de Agostinho — deve-se ao simples fato de que o homem enquanto homem não criou a si mesmo, embora seja capaz de multiplicar-se como outras espécies de animais. Logo, para Scotus, a questão nunca é como derivar (extrair, deduzir) a finitude da infinitude divina ou como ascender da finitude humana à infinitude divina, mas sim como explicar que um ser absolutamente finito possa conceber algo infinito e chamá-lo de “Deus”. “Por que motivo ao INTELECTO […] não repugna a noção de algo infinito?” [Ibidem, p. 72. Gilson sustenta que a própria noção de infinito é de origem cristã. “Os gregos, antes da Era Cristã, nunca conceberam a infinitude a não ser como uma imperfeição.” Ver The Spirit of Medieval Philosophy, p. 55.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Ainda assim, se parece óbvio para Scotus que a razão natural dos filósofos jamais alcançou as “verdades” proclamadas pela revelação divina, continua sendo inegável que a noção de divindade antecedeu a qualquer revelação cristã, o que significa que deve haver uma capacidade espiritual no homem pela qual ele é capaz de transcender tudo o que lhe é dado, e de transcender, portanto, a própria factualidade do Ser. Ele parece ser capaz de transcender a si próprio. Pois o homem, segundo Scotus, foi criado junto com o Ser, como parte inseparável dele — assim como, para Agostinho, o homem foi criado não no tempo, mas junto com o tempo. Seu INTELECTO está em sintonia com este Ser e seus órgãos sensoriais são talhados para a percepção de aparências; seu INTELECTO é “natural”, “cadit sub natura” [Citado de Stadter, op. cit., p. 315]; o homem é forçado a aceitar, compelido pela evidência do objeto, qualquer coisa que o INTELECTO lhe proponha: “Non habet in potestate sua intelligere et non inelligere.” [Citado de Auer, op. cit., p. 86] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Com a Vontade é diferente. A Vontade pode achar difícil não aceitar o que a razão dita, mas a coisa não é impossível, assim como não é impossível para a Vontade resistir aos apetites naturais fortes: “Difficile est, voluntatem non inclinari ad id, quod est dictatum a ratione practica ultimatim, non tamen est, impossibile, sicut voluntas naturaliter inclinatur, sibi dismissa, ad condelectandum appetitui sensitivo, non tamem impossibile, ut frequenter resistat, ut patet in virtuosis et sanctis.” [Citado de Vogt, op. cit., p. 34] É a possibilidade de resistência às necessidade do desejo, por um lado, e aos ditames do INTELECTO e da razão, por outro, que constituem a liberdade humana. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
É esse o teste pelo qual a liberdade é demonstrada, e nem o desejo nem o INTELECTO podem equiparar-se a ela: um objeto apresentado ao desejo pode apenas atrair ou repelir, e uma questão apresentada ao INTELECTO pode apenas ser negada ou afirmada. Mas a qualidade básica de nossa vontade é que podemos querer ou não-querer o objeto apresentado pela razão ou pelo desejo: “In potestate voluntatis nostrae est habere nolle et velle, quae sunt contraria, respectu unius obiecti” (“Está em poder de nossa vontade querer e não-querer, que são contrários, com relação ao mesmo objeto”) [Citado de Kahl, op. cit., pp. 86-87]. Ao dizer isso, Scotus não está negando, é claro, que duas volições sucessivas são necessárias para querer e não querer o mesmo objeto; mas sustenta, sim, que o ego volitivo, ao realizar uma delas, sabe ser livre para realizar também o seu contrário: “A característica essencial de nossos atos volitivos é […] o poder de escolher entre coisas opostas e de revogar a escolha, uma vez que tenha sido feita (grifos nossos) [Bettoni, Duns Scotus, p. 76]. É precisamente desta liberdade, que se manifesta apenas como atividade espiritual — o poder de revogar desaparece uma vez que se execute a volição —, que falamos anteriormente em termos de uma fragmentação da vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
A autonomia da Vontade — “nada além da vontade é a causa total da volição” (“nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate”) [Citado de Vogt, op. cit., p. 31] — limita de forma decisiva o poder da razão, cujo ditame não é absoluto; mas não limita o poder da natureza, seja da natureza do homem interior, a que se dá o nome de “inclinações”, seja da natureza das circunstâncias exteriores. A vontade não é, de modo algum, onipotente em sua efetividade real: sua força consiste apenas em que ela não pode ser coagida a querer. Para ilustrar essa liberdade do espírito, Scotus dá o exemplo de “um homem que se atira de um lugar alto” [Bonansea, op. cit., p. 94, nota 44]. Esse ato acaba com sua liberdade, uma vez que agora ele necessariamente cai? Segundo Scotus, não. Enquanto o homem está caindo necessariamente, compelido pela lei da gravidade, permanece livre para continuar a “querer cair”, e pode também, é claro, mudar de ideia, caso em que seria incapaz de desfazer o que começara voluntariamente e em que se veria nas mãos da necessidade. Lembramos o exemplo de Espinosa, da pedra que rola, a qual, se fosse dotada de consciência, seria necessariamente vítima da ilusão de que havia ela mesma se atirado e de que, se estava agora rolando, era por sua própria vontade. Tais comparações são úteis para que possamos nos dar conta de até que ponto tais proposições e suas ilustrações, no disfarce de argumentos plausíveis, dependem de pressupostos preliminares sobre necessidade ou liberdade como fatos autoevidentes. Para ficar com o presente exemplo: nenhuma lei da gravidade tem poder sobre a liberdade assegurada na experiência interior; nenhuma experiência interior tem validade direta no mundo como ele é, real e necessariamente, conforme a experiência exterior e o raciocínio correto do INTELECTO. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Tal auxílio será tão bem-vindo quanto difícil de provar, pela razão, bastante boa, de que não será possível encontrar um nicho confortável para ele entre seus predecessores e sucessores na história das ideias. Não será suficiente evitar o clichê do “oponente sistemático de Tomás”, presente nos manuais; e, em sua insistência na Vontade como a faculdade mais nobre em comparação com o INTELECTO, ele teve muitos predecessores dentre os escolásticos — o mais importante foi Petrus Johannis Olivi [Ver Stadter, op. cit., especialmente a seção sobre Petrus Johannes Olivi, pp. 144-167]. Tampouco será suficiente esclarecer e mostrar com detalhes a influência sem dúvida grande que teve sobre Leibniz e Descartes, muito embora ainda seja verdade, como disse Windelband há mais de setenta anos, que os laços destes com “o maior dos escolásticos […] não tenham, infelizmente, encontrado a consideração e o tratamento que merecem” [Ver Bettoni, Duns Scotus, p. 193, nota]. Certamente a presença íntima da herança agostiniana em seu trabalho é patente demais para não ser notada — não há quem leia Agostinho com maior afinidade e com compreensão mais profunda —, e sua dívida com Aristóteles foi talvez ainda maior do que a que teve com Tomás. A grande verdade, no entanto, é que, quanto à quintessência de seu pensamento — a contingência, o preço pago de bom grado pela liberdade —, ele não teve predecessores ou sucessores. Tampouco quanto a seu método: uma elaboração cuidadosa do experimentum suitatis de Olivi em experimentos de pensamento, que foram estruturados como o teste final do exame crítico do espírito no curso das ações efetuadas consigo e dentro de si mesmo (experimur in nobis, experientia interna [Tais frases ocorrem vez por outra. Para uma discussão deste tipo de “introspecção”, ver Béraud de Saint-Maurice, “The Contemporary Significance of Duns Scotus’ Philosophy”, in Ryan e Bonansea, op. cit., p. 354, e Ephrem Longpré, “The Psychology of Duns Scotus and its Modernity”, in The Franciscan Educational Conference, vol. XII, 1931.]). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Comecemos pela Contingência como o preço a ser pago pela liberdade. Scotus é o único pensador para quem a palavra “contingente” não tem conotação depreciativa: “Repito que a contingência não é simples privação ou defeito do Ser, como a deformidade […] que é o pecado. Em vez disso, a contingência é um modo positivo de Ser, assim como a necessidade é outro modo.” [Citado de Hyman e Walsh, op. cit., p. 597] Essa posição parece inevitável para ele, uma questão de integridade intelectual quando há intenção de se salvar a liberdade. A primazia do INTELECTO sobre a Vontade deve ser rejeitada “porque ela não pode salvar a liberdade de forma alguma” — “quia hoc nullo modo salvat libertatem” [Bonansea, op. cit., p. 109, nota 90]. Para ele, a principal distinção entre cristãos e pagãos reside na noção bíblica da origem do Universo: o Universo do Gênese não veio a ser através da emanação de forças necessárias predeterminadas, de modo que sua existência fosse também necessária, mas foi criado ex nihilo por decisão do Deus-Criador, o Qual, temos que supor, era completamente livre para criar um mundo diferente, em que nem as nossas verdades matemáticas nem nossos preceitos morais fossem válidos. Daí segue-se que tudo o que é poderia não ter sido — a não ser o próprio Deus. Sua existência é necessária da perspectiva de um mundo não necessário, mas não é necessária no sentido de que sempre houve uma necessidade que O coagisse ou inspirasse em Sua criação; tal necessidade, atuando sobre Ele, estaria em clara contradição com a onipotência de Deus, bem como com Sua supremacia. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Os homens são parte inseparável dessa Criação, e todas as suas capacidades naturais, inclusive seu INTELECTO, seguem naturalmente as leis estabelecidas pelo Fiat divino. Ainda assim, o Homem, em contraposição a todas as outras partes da Criação, não foi planejado livremente; foi criado à imagem do próprio Deus — como se Deus não precisasse somente de anjos em algum mundo sobrenatural, mas precisasse também de algumas criaturas à Sua semelhança em meio à natureza do mundo, para Lhe fazer companhia. A marca desta criatura, obviamente mais próxima de Deus do que qualquer outra, não é absolutamente a criatividade; neste caso, a criatura seria de fato algo como um “Deus mortal” (e a meu ver esta é justamente a razão pela qual Scotus não deu prosseguimento à noção de um “objetivo da Vontade livremente planejado”, mesmo tendo, ao que parece, concebido uma “habilidade sem valor de planejar livremente” como a “verdadeira perfeição”) [Hoeres, op. cit., p. 121]. Em vez disso, a criatura de Deus distingue-se pela capacidade do espírito de afirmar ou negar livremente, sem se deixar coagir pelo desejo ou pelo raciocínio. É como se o Ser, vindo a existir, precisasse do juízo final de Deus para sua plenitude — “E Deus viu tudo o que fez, e observou que era muito bom” —, e esse juízo fosse também extraído do mortal que fora criado à Sua semelhança. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Diz-se que Scotus admitiu de bom grado que “não há resposta real para a questão sobre o modo de conciliar a liberdade e a necessidade” [Ver Bonansea, op. cit., p. 95]. Não estava a par da dialética hegeliana, na qual o processo da necessidade pode produzir a liberdade. Mas, no seu modo de pensar, não era preciso haver tal conciliação, pois a liberdade e a necessidade eram dimensões completamente diferentes do espírito; se é que havia conflito, ele corresponderia a um conflito intramuros, entre os egos pensante e volitivo, um conflito em que a vontade dirige o INTELECTO e faz com que o homem pergunte: “Por quê?” A razão para isso é simples: a Vontade, como Nietzsche descobriria mais tarde, é incapaz de “querer retroativamente”; logo, deixe-se para o INTELECTO a tarefa de descobrir o que deu errado. A questão “por quê?” — “qual é a causa”? — é sugerida pela vontade porque a vontade se experimenta como um agente causativo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
É esse aspecto da Vontade que enfatizamos quando dizemos que “a Vontade é a fonte da ação” ou, na linguagem escolástica, que “nossa vontade […] é produtora de atos, e é o que permite a seu possuidor operar explicitamente no querer” [Citado de Hyman e Walsh, op. cit., p. 596]. Para falar em termos de causalidade, primeiro a vontade causa volições, e tais volições causam certos efeitos que nenhuma vontade pode desfazer. O INTELECTO, tentando fornecer à vontade uma causa explanatória que lhe abrande a indignação quanto à própria fraqueza, fabricará uma história que faça com que os dados se encaixem. Sem pressupor a necessidade, faltaria à história toda a coerência. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Em outras palavras, o passado, justamente por ser o que é “absolutamente necessário”, está além do alcance da Vontade. Para Scotus, o problema apresentava-se de maneira mais simples: os opostos decisivos não são necessidade e liberdade, mas sim liberdade e natureza — a Vontade ut natura e a Vontade ut libera [Ver Vogt, op. cit., p. 29]. Assim como o INTELECTO, a Vontade se inclina naturalmente para a necessidade, só que a Vontade, ao contrário do INTELECTO, pode conseguir resistir à inclinação. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
O homem é capaz de transcender o mundo do Ser junto com o qual foi criado e que permanece sendo seu hábitat até a morte; ainda assim, mesmo as atividades do seu espírito nunca deixam de relacionar-se ao mundo dado aos sentidos. Assim, o INTELECTO está “preso aos sentidos”, e “sua função inata é entender os dados sensoriais”; de maneira semelhante, “a Vontade está presa ao apetite sensorial” e sua função inata é “desfrutar de si mesma”. “Voluntas conjunctus appetitui sensitivo nata est condelectari sibi, sicut intellectus conjunctus sensui natus est intelligere sensibilia.” [Citado de Vogt, op. cit., p. 93] As palavras decisivas aqui são condelectari sibi, um prazer inerente à própria atividade da vontade, diferente do prazer do desejo de obter o objeto desejado, que é transitório — a posse extingue o desejo e o prazer. O condelectatio sibi importa seu prazer de sua proximidade do desejo, e Scotus disse explicitamente que não há prazer do espírito que possa competir com o prazer que surge da satisfação do desejo sensual, só que esse prazer é quase tão transitório quanto o próprio desejo [Hoeres, op. cit., p. 197]. Assim, ele estabelece uma distinção nítida entre vontade e desejo, porque somente a vontade não é transitória. Um prazer inerente à vontade em si mesma é tão natural para a vontade quanto entender e conhecer o são para o INTELECTO, e ele pode ser detectado até mesmo no ódio; mas sua perfeição inata, a paz final entre o dois-em-um, pode se dar somente quando a vontade é transformada em amor. Se a vontade fosse mero desejo de possuir, deixaria de existir quando se possui o objeto: não desejo aquilo que tenho. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Quando Scotus especula sobre uma vida após a morte — isto é, sobre uma existência “ideal” para o homem como homem —, esta tão almejada transformação da vontade em amor com seu inerente delectatio é decisiva. A transformação do querer em amar não significa que amar deixe de ser uma atividade cujo fim está em si mesma: logo, a bem-aventurança futura, a beatitude que se goza na vida eterna, não pode de modo algum consistir no descanso e na contemplação. A contemplação do summum bonum, da “coisa” mais alta, portanto, Deus, seria o ideal do INTELECTO, que sempre se baseia na intuição, a apreensão de uma coisa em seu “ser-isto” [Thisness], haecceitas, que é imperfeita nesta vida não somente porque aqui o que é mais alto permanece ignorado, mas também porque a intuição do “ser-isto” é imperfeita: o “INTELECTO […] recorre aos conceitos universais precisamente porque é incapaz de apreender a hecceidade” [Bettoni, Duns Scotus, p. 122]. A noção de “paz eterna”, ou de Descanso, surge da experiência da inquietação, dos desejos e apetites de um ser necessitado que pode transcendê-los em atividades do espírito, sem jamais ser capaz de escapar completamente a eles. O que a Vontade em um estado de bem-aventurança, isto é, em uma vida após a morte, não precisa mais ou não consegue mais ter é a rejeição e o ódio, mas isso não significa que o homem em estado de bem-aventurança tenha perdido a faculdade de dizer “sim”. A essa aceitação incondicional Scotus dá o nome de “Amor”: “Amo: volo ut sis.” “A beatitude é, portanto, o ato pelo qual a vontade vem a ter contato com o objeto apresentado a ela pelo INTELECTO e o ama, satisfazendo assim plenamente seu desejo natural por ele.” [Bonansea, op. cit., p. 120] Aqui novamente o amor é entendido como uma atividade, mas não mais como uma atividade do espírito, uma vez que seu objeto não está mais ausente dos sentidos e não é mais conhecido imperfeitamente pelo INTELECTO. Pois a “beatitude […] consiste no alcance pleno e perfeito do objeto como ele é em si, e não simplesmente como está no espírito” [Ibidem, p. 119]. O espírito, transcendendo as condições existenciais do “viajante” ou peregrino na terra, tem uma indicação desta bem-aventurança futura em sua experiência de pura atividade, isto é, em uma transformação da vontade em amor. Recaindo na distinção agostiniana entre uti e frui, usar algo para alguma outra coisa e desfrutar de algo por si mesmo, Scotus diz que a essência da beatitude consiste no fruitio, “o amor perfeito a Deus por amor a Deus […] e é assim distinto do amor a Deus por amor a si mesmo”. Mesmo se este último é amor pelo bem da salvação da própria alma, ainda assim é amor concupiscentiae, amor desejoso [Ibidem, p. 120]. Já em Agostinho encontramos a transformação da vontade em amor, e é bastante provável que as reflexões de ambos os pensadores fossem guiadas pelas palavras de Paulo sobre “o amor que jamais acaba”, nem mesmo “quando vier o que é perfeito” e tudo o mais tiver sido “aniquilado” (I Coríntios 13:8-13). Em Agostinho, a transformação se dá pela força unificadora da vontade; não há maior força unificadora do que o amor com que os amantes se amam (“maravilhosamente unidos”) [On the Trinity, livro X, cap. viii, 11]. Mas, para Scotus, a base de experiência para a eternidade do amor está em sua concepção de um amor que não só está por assim dizer esvaziado, purificado dos desejos e das necessidades, mas é também um amor no qual a própria faculdade da Vontade é transformada em atividade pura. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Essas dificuldades e ansiedades são causadas pela Vontade à medida que é uma faculdade do espírito, sendo portanto reflexiva, repercutindo sobre si mesma — vollo me velle, cogito me cogitare — ou, em termos heideggerianos, pelo fato de que, existencialmente falando, a existência humana foi “abandonada a si mesma”. Nada parecido perturba nosso INTELECTO, a capacidade que o espírito tem de cognição e sua confiança na verdade. As habilidades cognitivas, como nossos sentidos, não repercutem sobre si mesmas; são completamente intencionais, vale dizer, completamente absorvidas pelo objeto que se pretende alcançar. Logo, à primeira vista, é surpreendente encontrar uma tendência semelhante contra a liberdade nos grandes cientistas do nosso século. Como se sabe, eles ficaram muito perturbados quando suas descobertas demonstráveis na astrofísica e também na física nuclear deram origem à suspeita de que vivemos em um universo que, nas palavras de Einstein, é governado por um Deus que “joga dados” com ele, ou à de que, como sugeriu Heisenberg, “aquilo que consideramos o mundo exterior [pode ser] nosso mundo interior virado pelo avesso” (Lewis Mumford). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Parece somente natural que essa geração de fundadores, em cujas descobertas a ciência moderna se baseou e cujas reflexões acerca do que estavam fazendo produziram a “crise nos fundamentos”, fosse seguida por muitas gerações de epígonos menos eminentes que acham mais fácil responder a questões irrespondíveis por terem menos consciência da linha que separa suas atividades habituais de suas reflexões sobre elas. Falei da orgia de pensamento especulativo que se seguiu à liberação kantiana da necessidade da razão de pensar além da capacidade cognitiva do INTELECTO, os jogos que os idealistas alemães fizeram com os conceitos personificados e as alegações feitas para a validade científica — algo que muito se distancia da “crítica” de Kant. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Mas Kant diz explicitamente que “para a arte bela […] imaginação, INTELECTO, espírito [Espírito, neste contexto, traduz spirit [Gemut, Gemütszustand]. (N. T.)] e gosto são requisitos” e acrescenta em uma nota que “as três primeiras faculdades estão unidas por meio da quarta”, isto é, pelo gosto — ou seja, pelo juízo. O espírito, além disso, faculdade especial distinta da razão, do INTELECTO e da imaginação, capacita o gênio a encontrar uma expressão para as ideias, “pela qual o estado de espírito subjetivo por elas ocasionado […] pode ser comunicado a outros”. Em outras palavras, o espírito, ou seja, aquilo que inspira o gênio e somente ele e aquilo que “nenhuma ciência é capaz de ensinar e que nenhum trabalho árduo permite aprender”, consiste em expressar “o elemento inefável no estado de espírito [Gemütszustand]” que certas representações despertam em todos nós, mas para o qual não temos palavras e não poderíamos, portanto, comunicar sem a ajuda do gênio, não poderíamos comunicá-las uns para os outros; é uma tarefa que cabe ao gênio tornar este estado de espírito “comunicável em geral”. A faculdade que guia esta comunicabilidade é o gosto; e gosto ou juízo não são privilégio do gênio. A condição sine qua non para a existência do objeto belo é sua comunicabilidade; o juízo do espectador cria o espaço sem o qual não seria absolutamente possível a aparição de tais objetos. O domínio público é constituído pelos críticos e pelos espectadores, e não pelos atores ou artesãos. E este crítico e espectador está em cada um dos atores ou artesãos; sem esta faculdade de criticar, de julgar, aquele que faz ou fabrica ficaria tão isolado do espectador que nem sequer seria percebido. Ou, falando de outro modo, ainda em termos kantianos: a própria originalidade do artista (ou a novidade do ator) depende que ele se faça entender por aqueles que não são artistas (ou atores). E se podemos falar em gênio no singular, em virtude de sua originalidade, nunca podemos falar… desse modo sobre o espectador; espectadores existem somente no plural. O espectador não se envolve no ato, mas está sempre envolvido com seus companheiros espectadores. Não tem em comum com aquele que faz a faculdade do gênio a originalidade, ou, com o ator, a faculdade da novidade; a faculdade que compartilham é a do juízo. [Arendt, Vida do Espírito Apêndice O Julgar ]
Temos, em terceiro lugar, os juízos ou o prazer no belo: “este prazer acompanha a apreensão ordinária [Auffassung, não a percepção] de um objeto pela imaginação…, por meio de um procedimento do juízo que ele deve também exercitar em proveito da experiência mais comum”. Esse tipo de juízo está em toda experiência que temos com o mundo. Ele se baseia “naquele INTELECTO comum e sólido [gemeiner e gesunder Verstand] que temos de pressupor em todos”. Como é que esse “senso comum” se distingue de outros sentidos que também temos em comum e que, no entanto, não garantem o acordo das sensações? [Arendt, Vida do Espírito Apêndice O Julgar ]