O grande obstáculo que a razão (Vernunft) põe em seu próprio caminho origina-se no intelecto (Verstand) e nos critérios, de resto inteiramente justificados, que ele estabeleceu para seus propósitos, ou seja, para saciar nossa sede e fazer face à nossa necessidade de conhecimento e de cognição. O motivo por que nem Kant nem seus sucessores prestaram muita atenção ao pensamento como uma atividade e ainda menos às experiências do EGO pensante é que, apesar de todas as distinções, eles estavam exigindo o tipo de resultado e aplicando o tipo de critério para a certeza e a evidência, que são os resultados e os critérios da cognição. Mas, se é verdade que o pensamento e a razão têm justificativa para transcender os limites da cognição e do intelecto — e Kant fundou essa justificativa na afirmação de que os assuntos com que lidam, embora incognoscíveis, são do maior interesse existencial para o homem —, então o pressuposto deve ser: o pensamento e a razão não se ocupam daquilo de que se ocupa o intelecto. Para antecipar e resumir: a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e significado não são a mesma coisa. A falácia básica que preside a todas as falácias metafísicas é a interpretação do significado no modelo da verdade. O último e, sob certos aspectos, mais chocante exemplo disso ocorre em Ser e tempo, de Heidegger, que começa levantando “novamente a questão do significado do Ser” [Trad. de John Macquarrie e Edward Robison, Londres, 1962, p. 1. Cf. pp. 151 e 324]. O próprio Heidegger, em uma interpretação posterior de sua questão inicial, diz explicitamente: ‘‘‘Significado do Ser’ e ‘Verdade do Ser’ querem dizer o mesmo.” [“Einleitung zu ‘Was ist Metaphysik?’”, in Wegmarken, p. 206] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
Em outras palavras, a comum compreensão filosófica do Ser como o fundamento da Aparência é verdadeira para o fenômeno da Vida; mas o mesmo não pode ser dito sobre a comparação valorativa Ser versus Aparência que está no fundo de todas as teorias dos dois mundos. Essa hierarquia tradicional não deriva de nossas experiências ordinárias no mundo das aparências, mas, ao contrário, da experiência não ordinária do EGO pensante. Como veremos mais adiante, a experiência transcende não só a Aparência, mas o próprio Ser. Kant identifica explicitamente o fenômeno que forneceu a base real para sua crença numa “coisa-em-si” por sob as “meras” aparências: o fato de que, “na consciência que tenho de mim na pura atividade do pensar [beim blossen Denken], sou a própria coisa [das Wesen selbst, ou seja, das Ding an sich], sem que, por isso, nada de mim seja dado ao pensamento” [Ibidem, B429]. Se reflito sobre a relação que estabeleço de mim para comigo na atividade de pensar, pode parecer que meus pensamentos seriam “meras representações” ou manifestações de um EGO que se mantém, ele próprio, para sempre oculto, pois naturalmente os pensamentos nunca se parecem com propriedades atribuíveis a um eu ou a uma pessoa. O EGO pensante é, pois, a “coisa-em-si” de Kant: ele não aparece para os demais e, diferentemente do eu da autoconsciência, ele não aparece para si mesmo. Ainda assim, ele “não é igual a nada”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
O EGO pensante é pura atividade e, portanto, não tem idade, sexo ou qualidades, e não tem uma história de vida. Quando sugeriram que escrevesse sua autobiografia, Étienne Gilson respondeu: “Um homem de 75 anos deveria ter muitas coisas a dizer sobre seu passado, mas […] se ele viveu apenas como filósofo, percebe imediatamente que não tem nenhum passado.” [The Philosopher and Theology, Nova York, 1962, p. 7. No mesmo espírito, Heidegger costumava contar, na sala de aula, a biografia de Aristóteles. “Aristóteles”, ele dizia, “nasceu, trabalhou [passou a vida pensando] e morreu.”] Pois o EGO pensante não é o eu. Há uma observação incidental em Tomás de Aquino — uma das de que tanto dependemos em nossa pesquisa — que soa de forma misteriosa, a não ser quando se está consciente dessa distinção entre o EGO pensante e o eu: “Minha alma [em Tomás, o órgão do pensamento] não sou eu; e se apenas as almas forem salvas, nem eu nem homem algum estará salvo.” [Em seu Commentary a I Corinthians 15] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
O sentido interno, que nos poderia propiciar a apreensão da atividade de pensar em alguma forma de intuição interior, não tem em que se prender, segundo Kant, porque suas manifestações são inteiramente diferentes das “manifestações com que se confronta o sentido externo, [que encontra] algo imóvel e permanente, […] ao passo que o tempo, a única forma de intuição interna, nada tem de permanente” [Critique of Pure Reason, A381]. Assim, “tenho consciência de mim, não de como apareço para mim, não de como sou em mim mesmo, mas apenas de que sou. Essa representação é um pensamento, não uma intuição”. E acrescenta em nota de rodapé: “O ‘eu penso’ expressa o ato de determinação de minha existência. A existência, portanto, já está dada, mas o modo como eu sou […] não está dado.” [Ibidem, B157-B158] Kant chama repetidas vezes a atenção para esse ponto na Crítica da razão pura — nada permanente “é dado na intuição interna quando penso em mim mesmo”. [Ibidem, B420] Mas faríamos melhor se nos voltássemos para os escritos pré-críticos, de maneira a encontrar uma descrição real das puras experiências do EGO pensante. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Em Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik (1766), Kant sublinha a “imaterialidade” do mundus intelligibilis, o mundo em que se move o EGO pensante, em contraste com a “inércia e a constância” da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências. Nesse contexto, ele distingue a “noção que a alma do homem tem de si mesma como espírito [Geist], por meio de uma intuição imaterial, e a consciência por meio da qual ela se apresenta como homem, utilizando-se de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais. É sempre, portanto, o mesmo sujeito que é membro tanto do mundo visível quanto do mundo invisível, mas não a mesma pessoa, já que […] o que como espírito penso não é lembrado por mim como homem e, ao contrário, meu estado real como homem não participa da noção que tenho de mim como espírito”. E, em uma estranha nota de rodapé, Kant fala de uma “certa dupla personalidade que é própria da alma, mesmo nesta vida”; ele compara o estado do EGO pensante ao estado do sono profundo, “quando os sentidos externos encontram-se em total repouso”. Ele suspeita de que as ideias, durante o sono, “podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as ideias em estado de vigília”, precisamente porque “o homem, em tais ocasiões, não é sensível ao seu corpo”. E não recordamos nada dessas ideias quando despertamos. Os sonhos são algo ainda diferente; eles “não são daqui. Pois, nesse caso, o homem não adormece completamente […], e entrelaça as ações de seu espírito com as impressões de seus sentidos exteriores” [A última e supostamente a melhor tradução para o inglês, feita por John Manolesco, apareceu sob o título de Dreams of a Spirit Seer, and Other Writings, Nova York, 1969. Eu mesma traduzi a passagem do alemão, in Werke, vol. I. pp. 946-951.]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Tais ideias de Kant, se compreendidas como constituintes de uma teoria dos sonhos, são evidentemente absurdas. Mas são interessantes como tentativa um tanto desajeitada de dar conta das experiências espirituais de retirada do mundo real. Pois é preciso que se dê alguma explicação sobre uma atividade que, ao contrário de qualquer outra atividade ou ação, nunca encontra resistência por parte da matéria. Ela não é sequer atravancada ou retardada quando se manifesta em palavras formadas por órgãos sensoriais. A experiência da atividade do pensamento é provavelmente a fonte original de nossa própria noção de espiritualidade, independentemente das formas que ela tenha assumido. Em termos psicológicos, uma das mais notáveis características do pensamento é sua incomparável rapidez — “rápido como o pensamento”, disse Homero; e Kant, em seus primeiros escritos, mencionou inúmeras vezes a Hurtigkeit des Gedankens [“Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels”, Werke, vol. I, p. 384. Tradução para o inglês: Universal Natural History and Theory of the Heavens, por W. Hastie, Ann Arbor, 1969]. Naturalmente o pensamento é veloz porque é imaterial; e isso, por sua vez, acaba por explicar a hostilidade que tantos dos grandes metafísicos tinham em relação a seus próprios corpos. Do ponto de vista do EGO pensante, o corpo é apenas um obstáculo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Concluir, a partir dessa experiência, que existem “coisas-em-si”, as quais, em sua própria esfera inteligível, são como nós “somos” no mundo das aparências, é uma das falácias metafísicas; ou ainda, uma das semblâncias da razão, cuja própria existência Kant foi o primeiro a descobrir, esclarecer e dirimir. Parece muito apropriado que esta falácia, como a maioria das outras que afligiram a tradição filosófica, tenha tido origem nas experiências do EGO pensante. Em todo caso, ela apresenta uma semelhança óbvia com outra falácia muito mais simples e mais comum, mencionada por P. F. Strawson em um ensaio sobre Kant: “Uma antiga crença é a de que a razão é algo essencialmente fora do tempo, e, mesmo assim, em nós. Sem dúvida ela tem seu fundamento no fato de que […] podemos apreender verdades [lógicas e matemáticas]. Mas […] [uma pessoa] que apreende verdades intemporais [não precisa] ela mesma ser intemporal.” [The Bounds of Sense: An Essay on Kant’s Critique of Pure Reason, Londres, 1966, p. 249] É típico da escola crítica de Oxford compreender essas falácias como non sequiturs lógicos — como se os filósofos, ao longo dos séculos e por razões desconhecidas, tivessem sido um pouco estúpidos demais para perceber as falhas elementares de seus argumentos. A verdade é que erros lógicos elementares são muito raros na história da filosofia; o que — para espíritos que se desembaraçam de questões acriticamente rejeitadas como “sem sentido” — parece ser erro de lógica é geralmente provocado por semblâncias inevitáveis em seres cuja existência é determinada pelas aparências. Assim, em nosso contexto, a única questão relevante é se tais semblâncias são autênticas ou não autênticas, se são causadas por crenças dogmáticas e pressupostos arbitrários, simples miragens que desaparecem diante de uma inspeção mais cuidadosa, ou se são inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que, ainda que parta do mundo das aparências, tem uma faculdade — a habilidade de pensar, que permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Eis por que as teorias solipsistas — seja quando proclamam radicalmente que só o eu “existe”, seja quando, mais moderadamente, asseveram que o eu e sua consciência de si são objetos primários do conhecimento verificável — estão em desarmonia com os dados mais elementares de nossa existência e de nossa experiência. O solipsismo, aberto ou velado, com ou sem qualificativos, foi a mais persistente e talvez a mais perniciosa falácia filosófica mesmo antes de adquirir, com Descartes, um alto nível de consistência teórica e existencial. Quando o filósofo fala do “homem”, ele não tem em mente nem o ser da espécie (o Gattungswesen, como cavalo ou leão, que segundo Marx constitui a existência fundamental do homem), nem o mero paradigma do que, de seu ponto de vista, todos os homens deveriam se esforçar por atingir. Para o filósofo, falando a partir da experiência do EGO pensante, o homem é muito naturalmente não apenas verbo, mas pensamento feito carne, a encarnação sempre misteriosa, nunca totalmente elucidada da capacidade do pensamento. E o problema desse ser fictício é que ele nem é o produto de um cérebro doentio, nem um desses “erros do passado” facilmente solucionáveis, mas a semblância inteiramente autêntica da própria atividade de pensar. Pois quando um homem se entrega ao puro pensamento, por qualquer razão que seja e independentemente do assunto, ele vive completamente no singular, ou seja, está completamente só, como se o Homem, e não os homens, habitasse o planeta. O próprio Descartes explicou e justificou seu subjetivismo radical pela decisiva perda de certezas legada pelas grandes descobertas científicas da Era Moderna; e em outro contexto procurei acompanhar o pensamento de Descartes [The Human Condition, pp. 252ss]. Entretanto, quando — assediado pelas dúvidas inspiradas pelo início da ciência moderna — decidiu “à rejeter la terre mouvante et le sable pour trouver le roc ou l’argile” [rejeitar a areia movediça e a lama para encontrar a pedra ou barro], ele certamente redescobriu um terreno bastante familiar, retirando-se para um lugar onde poderia viver “aussi solitaire et retiré que dans les déserts les plus écartés” [tão só e afastado como nos mais remotos desertos] [Le Discours de la Méthode, 3ª parte in Descartes: Oeuvres et Lettres, pp. 111, 112; veja, para a primeira citação, The Philosophical Works of Descartes, traduzido por Elizabeth S. Haldane e G. R. T. Ross, Cambridge, 1972, vol. I, p. 99.]. Retirar-se da “bestialidade da multidão” para ficar na companhia dos “muito poucos” [Platão, Philebus, 67b, 52b] e também no estar-só absoluto do Um tem sido a principal característica da vida do filósofo, desde que Parmênides e Platão descobriram que para aqueles “muito poucos”, os sophoi, a “vida do pensamento”, que não conhece nem dor nem alegria, é a mais divina, e que o nous, o próprio pensamento, é “o rei da terra e do céu” [Ibidem, 33b, 28c]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
Descartes, fiel ao subjetivismo radical, primeira reação dos filósofos às novas glórias da ciência, já não atribuía as satisfações dessa forma de vida aos objetos do pensamento — a eternidade do kosmos que nem passa a ser nem deixa de ser e que, desse modo, confere uma parcela de imortalidade àqueles poucos que decidiram passar a vida contemplando-a. A bem moderna suspeita cartesiana com relação ao aparelho sensorial e cognitivo do homem fez com que ele definisse — com maior clareza do que qualquer outro filósofo anterior — como propriedades da res cogitans certas características que, não sendo desconhecidas dos antigos, assumiram agora, talvez pela primeira vez, uma importância suprema. Entre essas características destacavam-se a autossuficiência, ou seja, o fato de que esse EGO “não tem necessidade de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material”, e, também, a não-mundanidade, isto é, que na autoinspeção, “examinant avec attention ce que j’étais”, seria possível facilmente “feindre que je n’avais aucun corps et qu’il n’y avait aucun monde ni aucun lieu où je fusse” [fingir que não tinha corpo e que não havia nenhum mundo nem lugar algum aonde eu fosse] [Le Discours de la Méthode, 4ª parte, in Descartes: Oeuvres et Lettres, p. 114; The Philosophical Works. vol. I, p. 101]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
De fato, nenhuma dessas descobertas, ou melhor, redescobertas, foi em si mesma de grande relevância para Descartes. Seu interesse principal era encontrar algo — o EGO pensante ou, em suas próprias palavras, “la chose pensante”, que ele identificava à alma — cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita, para além das ilusões da percepção sensorial. Mesmo o poder de um Dieu trompeur onipotente não seria capaz de abalar a certeza de uma consciência que abandonou toda a experiência sensível. Embora tudo o que seja dado possa ser sonho e ilusão, o sonhador, quando concorda em não exigir realidade do sonho, deve ser real. Assim, “Je pense, donc je suis”, “Penso, logo existo”. Por um lado, era tão forte a experiência da própria atividade de pensar, e, por outro, tão apaixonado o desejo de encontrar certeza e algum tipo de permanência duradoura depois que a nova ciência descobriu “la terre mouvante” (a areia movediça que constitui o próprio solo sobre o qual nos pomos de pé), que nunca lhe ocorreu que nenhuma cogitatio e nenhum cogito me cogitare — nenhuma consciência de um eu ativo que suspendeu toda a fé na realidade de seus objetos intencionais — poderia convencê-lo de sua própria realidade, de que ele teria realmente nascido em um deserto, sem um corpo e sem os sentidos necessários para perceber coisas “materiais”; e sem outras criaturas que lhe assegurassem que o que ele percebia também era percebido por elas. A res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem corpo, sem sentidos e abandonada, nem sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sonhos. O que Merleau-Ponty tinha a dizer contra Descartes, disse-o de modo brilhante e correto: “Reduzir a percepção ao pensamento de perceber […] é fazer um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais onerosos do que a perda pela qual eles devem nos indenizar; pois é […] passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o ‘há’ do mundo.” [The Visible and the Invisible, pp. 36-37] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
Além do mais, é precisamente a atividade do pensamento — as experiências do EGO pensante — que gera dúvida sobre a realidade do mundo e de mim mesmo. O pensamento pode apoderar-se de tudo que é real — evento, objeto, seus próprios pensamentos; a realidade disso tudo é a única propriedade que permanece persistentemente além de seu alcance. O cogito ergo sum é uma falácia não apenas no sentido, observado por Nietzsche, de que do cogito só se pode inferir a existência de cogitationes; o cogito está sujeito à mesma dúvida que o sum. O eu-existo está pressuposto no eu-penso. O pensamento pode agarrar-se a esta pressuposição mas não pode demonstrar se ela é falsa ou verdadeira. (O argumento de Kant contra Descartes também estava inteiramente correto: o pensamento “eu não sou […] não pode existir; pois, se eu não sou, consequentemente não posso saber que não sou”.) [“Antropologie”, n° 24, Werke, vol. VI, p. 465] A realidade não pode ser derivada. O pensamento ou a reflexão podem aceitá-la ou rejeitá-la, e a dúvida cartesiana, partindo da noção de um Dieu trompeur, é apenas uma forma velada e sofisticada de rejeição. [Heidegger assinala com razão: “O próprio Descartes enfatiza que a sentença [cogito ergo sum] não é um silogismo. O eu-sou não é consequência do eu-penso, mas, ao contrário, o fundamentum, a sua base.” Heidegger menciona a forma que o silogismo deveria ter: Id quod cogitat est; cogito; ergo Sum. Die Frage nach dem Ding, Tübingen, 1962, p. 81.] Restou a Wittgenstein — que planejou investigar “quanta verdade há no solipsismo” e, assim, tornou-se seu mais destacado representante contemporâneo — formular a ilusão existencial subjacente a todas as teorias solipsistas: “Com a morte, o mundo não se altera, apenas chega a um fim.” “A morte não é um evento na vida; nós não vivemos nossa morte.” [Tractatus, 5.62; 6.431; 6.4311. Cf. Notebooks 1914-1916, Nova York, 1969, p. 75e] Essa é a premissa básica de todo pensamento solipsista. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
O pensamento, que submete à dúvida tudo de que se apossa, não possui entretanto nenhuma relação desse tipo, natural ou prosaica, com a realidade. Foi o pensamento — a reflexão de Descartes acerca do significado de certas descobertas científicas — que destruiu sua confiança de senso comum na realidade; seu erro foi esperar que pudesse superar a dúvida insistindo em retirar-se completamente do mundo, ao eliminar cada realidade mundana de seus pensamentos e concentrando-se exclusivamente na própria atividade do pensar. (Cogito cogitationes ou cogito me cogitare, ergo sum é a forma correta da famosa fórmula.) Mas o pensamento não pode provar nem destruir o sentimento de realidade [realness] que deriva do sexto sentido e que foi denominado pelos franceses, talvez por essa mesma razão, de le bon sens, o bom senso; quando o pensamento se retira do mundo das aparências, ele se retira do sensorialmente dado e, assim, também do sentimento de realidade [realness] dado pelo senso comum. Husserl argumentava que a suspensão [epoché] desse sentimento era o fundamento metodológico de sua ciência fenomenológica. Para o EGO pensante, essa suspensão é natural; não é, de modo algum, um método especial a ser ensinado e aprendido; nós o conhecemos sob o fenômeno muito comum do alheamento, que se observa nas pessoas absorvidas por qualquer tipo de pensamento. Em outras palavras, a perda do senso comum não é nem o direito nem a virtude dos “pensadores profissionais” de Kant; ocorre a todo aquele que pensa em algo; ocorre apenas com mais frequência entre os pensadores profissionais. A estes chamamos filósofos, e seu modo de vida será sempre o da “vida de um estrangeiro [stranger]” (bios xenikos), como denominou Aristóteles em sua Política [Politics, 1324a16]. Essa estranheza e esse alheamento não são mais perigosos — de tal forma que todos os “pensadores”, profissionais ou leigos, sobrevivem com facilidade à perda do sentido de realidade [realness] — porque o EGO pensante se afirma apenas temporariamente. Qualquer pensador, não importa quão importante seja, permanece “um homem como você e eu” (Platão), uma aparência entre aparências, dotada de senso comum e dispondo de um raciocínio de senso comum suficiente para sobreviver. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
Vista da perspectiva do mundo das aparências e das atividades por ele condicionadas, a principal característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade. Propriamente falando, elas nunca aparecem, embora se manifestem para o EGO pensante, volitivo ou judicativo sabedor de estar ativo, embora lhes falte a habilidade ou a urgência para aparecer como tal. O lema epicurista lathé biósas, “viver oculto”, pode ter sido um conselho prudente: é também uma descrição exata, pelo menos negativamente, do topos, do lugar do homem que pensa; e é, na verdade, o oposto do “spectemur agendo” (que nos vejam em ação) de John Adams. Em outros termos, ao invisível que se manifesta para o pensamento corresponde uma faculdade humana que não é apenas, como as outras faculdades, invisível, porque latente, uma mera possibilidade, mas que permanece não manifesta em plena realidade. Se considerarmos toda a escala das atividades humanas do ponto de vista da aparência, encontraremos vários graus de manifestação. Nem o labor nem a fabricação requerem a exibição da própria atividade; somente a ação e a fala necessitam de um espaço da aparência — bem como de pessoas que vejam e ouçam — para se realizar efetivamente. Mas nenhuma dessas atividades é invisível. Se seguíssemos o costume linguístico grego segundo o qual os “heróis”, os homens que agem no sentido mais elevado, eram chamados de andres epiphaneis, homens completamente manifestos e altamente visíveis, deveríamos chamar os pensadores de homens, por definição e por profissão, não visíveis [Tucídides, II, 43]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
A vida do espírito na qual faço companhia a mim mesmo pode ser sem som; mas nunca é silenciosa; e jamais pode se esquecer completamente de si, pela natureza reflexiva de todas as suas atividades. Todo cogitare, não importa qual seja seu objeto, é também um cogito me cogitare; toda volição é um volo me velle; mesmo o juízo só é possível por um “retour secret sur moi-même”, como observou Montesquieu. Essa reflexividade parece apontar para um lugar de interioridade dos atos do espírito, construído sob o princípio do espaço externo no qual os meus atos não-espirituais têm lugar. Mas a ideia de que essa interioridade, diferentemente da interioridade passiva da alma, só pode ser entendida como um lugar de atividades é uma falácia cuja origem histórica é a descoberta, nos primeiros séculos da Era Cristã, da Vontade e das experiências do EGO volitivo. Pois só estou consciente das faculdades do espírito e de sua reflexividade durante sua atividade. É como se os próprios órgãos do pensamento, da vontade ou do juízo só viessem a existir quando penso, quero ou julgo; em seu estado latente, supondo que tal latência exista anteriormente à sua efetivação, não estão abertos à introspecção. O EGO do pensamento, do qual tenho perfeita consciência enquanto dura a atividade do pensamento, desaparecerá como se fosse uma simples miragem, tão logo o mundo real volte a se impor. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
Essas observações podem indicar por que o pensar, a busca de significado — oposta à sede de conhecimento, e mesmo ao conhecimento pelo conhecimento — foi tão frequentemente considerada antinatural, como se os homens, sempre que refletissem sem propósito específico, ultrapassando a curiosidade natural despertada pelas múltiplas maravilhas do simples estar-aí do mundo e pela sua própria existência, estivessem engajados em uma atividade contrária à condição humana. O pensar enquanto tal, e não apenas como o levantamento das “questões últimas” irrespondíveis, mas toda reflexão que não serve ao conhecimento e que não é guiada por necessidades e objetivos práticos, está, como observou Heidegger, “fora de ordem” (grifos nossos) [An Introduction to Methaphysics, trad. Ralph Manhein, New Haven, 1959, p. 12]. Ela interrompe qualquer fazer, qualquer atividade comum, seja ela qual for. Todo pensar exige um pare-e-pense. As teorias dos dois mundos, quaisquer que tenham sido suas falácias e seus absurdos, surgiram dessas genuínas experiências do EGO pensante. E uma vez que qualquer coisa que impeça o pensar pertença ao mundo das aparências e às experiências do senso comum que partilho com meus semelhantes e que automaticamente asseguram o sentido de realidade [realness] que tenho do meu próprio ser, é como se de fato o pensar me paralisasse, do mesmo modo que o excesso de consciência pode paralisar o automatismo de minhas funções corporais, “l’accomplissement d’un acte qui doit être réflexe ou ne peut être”, como sentenciou Valéry. Identificando o estado de consciência com o estado de pensar, ele acrescenta: “on en pourrait tirer toute une philosophie que je résumerais ainsi: tantôt je pense et tantôt je suis” (“ora penso e ora sou”) [“Discours aux chirurgiens”, in Variété, Paris, 1957, vol. I, p. 916]. Essa observação extraordinária, totalmente baseada em experiências igualmente extraordinárias — a saber, que a mera consciência de nossos órgãos corporais é suficiente para impedir o funcionamento adequado desses órgãos —, insiste em um antagonismo entre ser e pensar que podemos fazer remontar à famosa frase de Platão: que somente o corpo do filósofo — isto é, o que o faz aparecer entre as outras aparências — ainda habita a cidade dos homens, como se, pensando, os homens se retirassem do mundo dos vivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
“Tome a cor dos mortos” — deve ser assim que o alheamento do filósofo e o estilo de vida do profissional que devota toda a sua vida ao pensamento, monopolizando e elevando a um nível absoluto o que é apenas uma dentre muitas faculdades humanas, aparecem para o senso comum dos homens, já que normalmente nos movemos em um mundo em que a mais radical experiência do desaparecer é a morte e em que se retirar da aparência é morrer. O próprio fato de sempre ter havido homens — ao menos desde Parmênides — que escolheram deliberadamente esse modo de vida sem ser candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a morte não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio EGO pensante. É muito mais o próprio senso comum do filósofo — o fato de ser ele “um homem como você e eu” — que o torna consciente de estar “fora de ordem” quando se empenha em pensar. Ele não está imune à opinião comum, pois, afinal, compartilha a “qualidade do ser comum” [commonness] a todos os homens; e é seu próprio senso de realidade [realness] que o faz suspeitar da atividade de pensar. Como o pensamento é impotente contra os argumentos do raciocínio do senso comum e contra a insistência na “falta de sentido” de sua busca por significado, o filósofo sente-se inclinado a responder nos termos do senso comum, termos que ele simplesmente inverte com esse objetivo. Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a “morte é o maior dentre todos os males”, o filósofo (da época de Platão, quando a morte era compreendida como a separação entre alma e corpo) é tentado a dizer: pelo contrário, “a morte é uma divindade, uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e corpo” [Phaedo, 64-67]. Desse modo, ele parece libertar o espírito da dor e do prazer corporais que impedem nossos órgãos espirituais de desenvolver suas atividades, da mesma forma que a consciência impede nossos órgãos corporais de funcionar apropriadamente [Cf. Valéry, op. cit., loc. cit]. Toda a história da filosofia — que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do EGO pensante — encontra-se atravessada por uma luta interna entre o senso comum, esse sexto sentido que “irá adequar nossos cinco sentidos a um mundo comum, e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão, que obrigam o homem a afastar-se, por períodos consideráveis, deste mundo”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Em outras palavras: todo pensamento deriva da experiência, mas nenhuma experiência produz significado ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginação e pensamento. Do ponto de vista do pensamento, a vida em seu puro estar-aí é sem sentido. Do ponto de vista da natureza imediata da vida e do mundo dado aos sentidos, o pensamento é, como Platão indicou, uma morte em vida. O filósofo que vive na “terra do pensamento” (Kant) [Nota da editora: não fomos capazes de encontrar esta referência] será naturalmente levado a olhar para essas coisas a partir do EGO pensante, para o qual uma vida sem sentido é uma espécie de morte em vida. Como não é idêntico ao eu real, o EGO pensante não tem consciência de sua própria retirada do mundo comum das aparências. Visto de sua perspectiva, é como se o invisível viesse primeiro, como se as inúmeras entidades que compõem o mundo das aparências — que por sua própria presença distraem o espírito e impedem sua atividade — estivessem positivamente ocultando um Ser sempre invisível e que se revela apenas no espírito. Dito de outra maneira, o que para o senso comum é a óbvia retirada do espírito em relação ao mundo, aparece, na perspectiva do próprio espírito, como uma “retirada do Ser” ou um “esquecimento do Ser” — Seinsentzug e Seinsvergessenheit (Heidegger). E é verdade que a vida cotidiana, a vida dos “Eles”, é vivida em um mundo do qual se encontra totalmente ausente tudo o que é “visível” para o espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
A busca de significado não só está ausente e é inteiramente inútil no curso rotineiro dos negócios humanos como também, ao mesmo tempo, seus resultados permanecem incertos e não verificáveis. O pensamento é, de alguma forma, autodestrutivo. Na privacidade das notas postumamente publicadas, Kant escreveu: “Não concordo com a regra segundo a qual algo que ficou provado pelo uso da razão pura não está mais sujeito à dúvida, como se isso fosse um sólido axioma”; ou ainda: “Não compartilho a opinião segundo a qual […], depois que se está convencido de alguma coisa, não se pode duvidar dela. Na filosofia pura isso é impossível. Nosso espírito tem uma aversão natural a isso” (grifos nossos) [Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 5019 e 5036]. Daí se depreende que o pensamento é como a teia de Penélope: desfaz-se toda manhã o que se terminou de fazer na noite anterior [Platão, em Phaedo, 84a, menciona a teia de Penélope, mas no sentido oposto. A “alma do filósofo”, liberada do cativeiro do prazer e da dor, não deve agir como Penélope, desmanchando sua própria teia. Uma vez desembaraçada (por meio de logismos) do prazer e da dor que “cravam” a alma no corpo, a alma (o EGO pensante de Platão) muda sua natureza e até mesmo suas razões (logizesthai), mas estima (theasthai) “a verdade e o divino”, e aí permanece para sempre.]. Pois a necessidade de pensar jamais pode ser satisfeita por insights supostamente precisos de “homens sábios”. Essa necessidade só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento, e os pensamentos que tive ontem irão satisfazer essa necessidade hoje apenas porque quero e porque sou capaz de pensá-los novamente. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
A importância de Hegel em nosso contexto está no fato de que ele, talvez mais do que qualquer outro filósofo, atesta a luta interna entre a filosofia e o senso comum; porque ele, por natureza, é igualmente bem-dotado como historiador e pensador. Ele sabia que a intensidade das experiências do EGO pensante deve-se ao fato de elas serem pura atividade: “A própria essência [do espírito] […] é ação. Ele faz de si mesmo o que essencialmente ele é; ele é seu próprio produto, sua própria obra.” E Hegel conhecia a reflexividade do espírito: “Nesta ânsia de atividade, ele apenas lida consigo mesmo.” [Reason in History, trad. Robert S. Hartman, Indianápolis, Nova York, 1953, p. 89] Até admitia, a seu modo, a tendência do espírito para destruir seus próprios resultados: “Assim, o espírito está em guerra consigo mesmo. Deve superar a si mesmo como seu próprio inimigo e formidável obstáculo.” [Reason in History. Tradução do autor] Mas esses insights da razão especulativa sobre o que ela está realmente fazendo quando, do ponto de vista das aparências, não está fazendo nada, ele transformou-os em peças de conhecimento dogmático, tratando-os como resultados da cognição. Dessa maneira, foi possível adequá-los a um sistema abrangente em que então teriam a mesma realidade que os resultados das demais ciências; resultados que, por outro lado, ele denunciou como produtos essencialmente desimportantes do raciocínio do senso comum, ou “conhecimento defeituoso”. E de fato o sistema, com sua organização estritamente arquitetônica, pode dar pelo menos uma impressão da realidade aos fugazes insights da razão especulativa. Se a verdade é tomada como o mais elevado objeto do pensamento, então o “verdadeiro é real apenas como sistema”. Apenas como um artefato mental desse tipo ele tem alguma chance de aparecer e adquirir aquele mínimo de durabilidade que exigimos de qualquer real — como mera proposição, ele dificilmente sobreviverá à batalha de opiniões. Para ter certeza de que eliminou a noção de senso comum, segundo a qual o pensamento lida com abstrações e irrelevâncias — o que de fato ele não faz —, Hegel afirmou, sempre no mesmo tom polêmico, “que o Ser é Pensamento” (dass das Sein Denken ist), que “apenas o espiritual é real” e que apenas aquelas generalidades com as quais lidamos no pensamento realmente são [Prefácio à Phenomenology of Mind]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Em agudo contraste com todas essas teorias, formuladas como um tipo de apologia do pensamento especulativo, encontra-se a famosa, estranhamente desconhecida e sempre mal traduzida observação que está no mesmo prefácio à Fenomenologia, e que expressa diretamente, de modo não sistemático, as experiências originais de Hegel com o pensamento especulativo: “O verdadeiro é sempre a festa báquica, onde nenhum participante [ou seja, nenhum pensamento particular] deixa de estar bêbado; e já que cada participante [cada pensamento] não se separa [da linha de pensamento da qual ele é mera parte] sem se dissolver imediatamente, a festa é, por isto mesmo, um estado de quietude transparente e inquebrantável.” Para Hegel, essa é a maneira pela qual a própria “vida da verdade” — verdade que se tornou viva no processo do pensamento — manifesta-se para o EGO pensante. Esse EGO pode não saber se homem e mundo são reais ou — veja-se especialmente a filosofia hindu — pura miragem; ele só sabe estar “vivo” em uma exaltação que sempre beira a “intoxicação” — como disse uma vez Nietzsche. Pode-se avaliar como esse sentimento marca profundamente todo o “sistema” quando o reencontramos no fim da Fenomenologia: lá ele aparece em contraste com o “sem vida” — a ênfase é sempre na vida — e se expressa através dos versos de Schiller, citados erroneamente: “Do cálice deste reino espiritual/ espuma a infinitude do espírito.” [Aus dem Kelche dieses Geisterreiches/ schäumt ihm seine Unendlichkeit.] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Mas o problema está em que não podemos encontrar tal localidade incontestável quando nos perguntamos onde estamos quando pensamos ou quando exercemos a vontade; cercados, por assim dizer, por coisas que não são mais ou que ainda não existem; ou, finalmente, por coisas-pensamento usadas cotidianamente, tais como justiça, liberdade, coragem, e que no entanto se encontram totalmente fora da experiência sensível. É bem verdade que o EGO volitivo encontrou cedo uma residência, uma região que era propriamente sua; tão logo essa faculdade foi descoberta, nos primeiros séculos da Era Cristã, ela foi localizada em nosso interior; e caso alguém se pusesse a escrever a história da interioridade em termos de uma vida interna, esse alguém logo perceberia que essa história coincide com a história da Vontade. Mas a interioridade, como já indicamos, tem seus próprios problemas, mesmo quando concordamos que a alma e o espírito não são a mesma coisa. Além disso, a peculiar natureza reflexiva da vontade, às vezes identificada com o coração e quase sempre considerada o órgão do nosso eu mais profundo, tornou essa região ainda mais difícil de ser isolada. Quanto ao pensamento, a questão de saber onde estamos quando pensamos parece ter sido levantada apenas por Platão no Sofista [Sophist, 254]; lá, depois de ter determinado o lugar do sofista, ele promete determinar também o lugar do próprio filósofo — o topos noetos mencionado nos primeiros diálogos [Republic, 517b, e Phaedrus, 247c] —, mas jamais cumpriu a promessa. Pode ser que simplesmente tenha fracassado na tarefa de completar a trilogia do Sofista-Político-Filósofo; ou que tenha chegado a acreditar que a resposta estivesse dada implicitamente no Sofista, em que retrata o sofista como estando “em casa na escuridão do Não-ser”, o que “o torna tão difícil de ser percebido”, “ao passo que o filósofo […] é difícil de ser visto, porque sua região é tão luminosa; pois o olho da multidão não pode manter o olhar fixo no divino” [Sophist, 254a-b]. Essa resposta podia de fato ser esperada por parte do autor da República e da alegoria da Caverna. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 11]
Esse último ponto é de especial importância. Se a linguagem do pensamento é essencialmente metafórica, o mundo das aparências insere-se no pensamento independentemente das necessidades de nosso corpo e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder. Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe, por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão, obviamente o EGO pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências. A teoria dos dois mundos, como já disse, é uma falácia metafísica, mas não é absolutamente arbitrária ou acidental. É a falácia mais razoável a atormentar a experiência do pensamento. A linguagem, prestando-se ao uso metafórico, torna-nos capazes de pensar, isto é, de ter trânsito em assuntos não sensíveis, pois permite uma transferência, metapherein, de nossas experiências sensíveis. Não há dois mundos, pois a metáfora os une. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
As atividades do espírito trazidas à linguagem como único meio de sua manifestação retiram cada uma de suas metáforas de um sentido corporal diferente, e sua plausibilidade depende de uma afinidade inata entre certos dados mentais e certos dados sensíveis. Assim, desde o início da filosofia formal, o pensamento foi concebido em termos de visão. E como o pensamento é a mais fundamental e a mais radical das atividades espirituais, a visão “tendeu a servir de modelo para a percepção em geral, e, portanto, de medida para os outros sentidos” [Hans Jonas, The Phenomenon of Life, Nova York, 1966, p. 135. Seu estudo “The Nobility of Sight” é a única ajuda no esclarecimento da história do pensamento ocidental]. A predominância da visão impregna tão profundamente o discurso grego e, portanto, nossa linguagem conceitual, que raramente se encontra qualquer consideração a seu respeito, como se ela pertencesse às coisas óbvias demais para serem notadas. Uma breve observação de Heráclito, “Os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos” [Diels e Kranz, frag. 101a], é uma exceção, e não das mais úteis. Pelo contrário, quando levamos em conta como é fácil para a visão — diferentemente dos outros sentidos — deixar de fora o mundo exterior, e quando examinamos a antiga noção de bardo cego, cujas histórias são ouvidas, podemos nos indagar por que não foi a audição a metáfora do pensamento. [Aristóteles parece ter pensado, nessas linhas, em um de seus tratados científicos: “Dessas faculdades, o olhar é a mais importante simplesmente pelas necessidades da vida; mas para o espírito (nous), e indiretamente (kata symbóbekos), a mais importante é o ouvido […]. [É ele que] mais contribui para a sabedoria. O discurso, que é a causa do aprendizado, só o é porque é audível; mas não é audível em si, mas indiretamente, porque a fala é composta de palavras, e cada palavra é um símbolo racional. Por conseguinte, para aqueles que estão privados de um sentido ou outro desde o nascimento, o cego é mais inteligente do que o surdo ou o mudo.” O caso é que ele parece nunca ter lembrado dessa observação quando escreveu filosofia. Aristóteles, On Sense and Sensible Objects, 437a4-17.] Não é de todo verdade, contudo, que, nas palavras de Hans Jonas, “o espírito foi onde a visão apontou.” [Op. cit., p. 152] As metáforas utilizadas pelos teóricos da Vontade raramente são extraídas da esfera da visão; seu modelo ou é o desejo como propriedade quintessencial de todos os nossos sentidos — já que servem ao apetite geral de um ser que precisa e que quer —, ou é extraída da audição, na linha da tradição judaica de um Deus que se ouve mas não se vê. (As metáforas retiradas da audição são muito raras na história da filosofia; a mais notável exceção moderna são os últimos escritos de Heidegger, nos quais o EGO pensante “ouve” o chamado do Ser. Os esforços medievais para reconciliar o ensino bíblico com a filosofia grega atestam a completa vitória da intuição e da contemplação sobre toda forma de audição; tal vitória foi, por assim dizer, pressagiada pela antiga tentativa de Fílon de Alexandria de afinar seu credo judaico com uma filosofia platonizante. Ele estava, todavia, ciente da distinção entre uma verdade hebraica, que era escutada, e a visão grega do verdadeiro. Transformou a primeira em simples preparação para a segunda, a ser alcançada pela intervenção divina que transformara os ouvidos do homem em olhos, permitindo a maior perfeição da cognição humana.) [Ver Hans Jonas, cap. 3, sobre Fílon da Alexandria, especialmente pp. 94-97, do Vos der Mythologie zur mystischen Philosophie, Göttingen, 1954, que é a segunda parte de Gnosis und spätantiker Geist, Göttingen, 1934.] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Em outras palavras, a principal dificuldade parece, aqui, ser que, para o próprio pensamento — cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceitual depende inteiramente do dom da metáfora, que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível, o mundo das aparências e o EGO pensante —, não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito, na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo. Todas as metáforas extraídas dos sentidos irão desembocar em dificuldades, pela simples razão de que todos os nossos sentidos são essencialmente cognitivos; portanto, concebidas como atividades, essas metáforas têm uma finalidade exterior; elas não são energeia, um fim em si mesmas, mas instrumentos que nos possibilitam conhecer e lidar com o mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
O pensamento está fora de ordem porque a busca do significado não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim. Em outras palavras, o prazer de que fala Aristóteles, apesar de manifesto para o EGO pensante, é inefável por definição. A única metáfora que se pode conceber para a vida do espírito é a sensação de estar vivo. Sem o sopro de vida, o corpo humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto. De fato, é esta a metáfora posta à prova por Aristóteles no famoso capítulo sétimo do livro Lambda da Metafísica: “A atividade do pensamento [energeia, que tem seu fim em si mesma] é vida.” [1072b27] A lei a ela inerente, que somente um deus pode tolerar para sempre — e o homem só vez por outra, nos momentos em que ele se diviniza —, “é um movimento incessante, que é um movimento circular” [1072a21], o único movimento, ou seja, o movimento que não tem fim ou que nunca resulta em produto final. Surpreende que essa estranhíssima noção do autêntico processo de pensamento, isto é, a noesis noeseos, como um girar em círculos — a mais gloriosa justificativa para o argumento circular na filosofia — jamais tenha preocupado nem aos filósofos nem aos intérpretes de Aristóteles — em parte, talvez, por causa das frequentes más traduções de nous e theoria por “conhecimento”, ou seja, o que sempre alcança um fim e o que sempre produz um resultado final [Essa má tradução estraga o Aristotle, de W. D. Ross. Meridian Books. Nova York, 1959, mas está misericordiosamente ausente de sua tradução de Metaphysics, em The Basic Works of Aristotle, de Richard McKeon.]. Se o pensar fosse um empreendimento cognitivo, ele teria que seguir um movimento retilíneo que partisse da busca de seu objeto e terminasse com sua cognição. O movimento circular aristotélico, tomado em conjunto com a metáfora da vida, sugere uma busca do significado que, para o homem, enquanto ser pensante, acompanha a vida e termina somente com a morte. O movimento circular é uma metáfora retirada do processo vital, o qual, embora indo do nascimento à morte, também gira em círculos enquanto o homem vive. A simples experiência do EGO pensante mostrou-se impressionante a ponto de a noção de movimento circular ser repetida por outros pensadores, ainda que ela estivesse em flagrante contradição com suas hipóteses tradicionais de que a verdade é o resultado do pensar, de que existe algo como a “cognição especulativa” de Hegel [Philosophy of History, Introdução, p. 9]. Vemos Hegel dizer, sem qualquer referência a Aristóteles: “A filosofia forma um círculo […] [ela] é uma sequência que não está solta no ar; ela não é algo que comece a partir de absolutamente nada; pelo contrário, ela retorna a si mesma em círculos” (grifos nossos) [Hegel’s Philosophy of Right, trad. T. M. Knox. Londres. Oxford. Nova York, 1967, acréscimo ao parágrafo 2, p. 225]. Encontramos a mesma noção no final de “O que é a Metafísica?” de Heidegger, onde ele define a “questão básica da metafísica” como: “Por que existe algo, e não o nada?” — de certo modo, a primeira questão do pensar, mas, ao mesmo tempo, o pensamento no qual ela “sempre volta a mergulhar” [Wegmarken, p. 19]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Ainda assim, tais metáforas, embora correspondam ao modo especulativo e não-cognitivo de pensar e permaneçam leais às experiências do EGO pensante, uma vez que não se relacionam com qualquer capacidade cognitiva, permanecem singularmente vazias; e o próprio Aristóteles não as utilizou em lugar algum — a não ser quando afirma que estar vivo é energein, isto é, estar ativo para o seu próprio bem [Nicomachean Ethics, 1175a12]. Além disso, a metáfora obviamente se nega a responder à questão inevitável, “Por que pensamos?”, uma vez que não existe resposta para a questão: “Por que vivemos?” [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Admite-se em geral que a filosofia — que a partir de Aristóteles é a área de investigações sobre as coisas que ultrapassavam os objetos físicos e os transcendiam (tón meta ta physika, “sobre o que vem depois do físico”) — tem uma origem grega. E tendo origem grega, ela coloca para si mesma o objetivo original grego, a imortalidade, que parecia até mesmo linguisticamente o propósito mais natural para homens que se compreendiam como mortais, thnétoi ou brotoi. Os mortais, para quem, segundo Aristóteles, a morte era “o maior dos males”, eram parentes de sangue, pertenciam ao mesmo clã que os deuses imortais, como se diz: “devendo a vida à mesma mãe”. A filosofia nada fez para mudar esse objeto natural, apenas propôs um novo caminho para alcançá-lo. Dito de uma maneira sucinta, esse objetivo desapareceu com o declínio e a queda do povo grego; e desapareceu totalmente da filosofia com o advento do cristianismo, que anunciou a “boa-nova”, dizendo aos homens que eles não eram mortais. Ao contrário das crenças pagãs, o mundo estaria condenado ao fim, mas os homens ressuscitariam encarnados após a morte. O último traço da busca grega de eternidade pode ser visto no nunc stans, o “agora permanente” da contemplação dos místicos medievais. Essa fórmula é impressionante, e veremos, mais adiante, que ela sem dúvida corresponde a uma experiência altamente característica do EGO pensante. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 14]
Essa suspensão da realidade — esse desvencilhar-se da realidade, tratando-a como nada mais do que uma “impressão” — permaneceu uma das grandes tentações dos “pensadores profissionais”, até que um dos maiores dentre eles, Hegel, foi ainda adiante e construiu sua filosofia do Espírito do Mundo a partir de experiências do EGO pensante. Ao reinterpretar esse EGO no modelo da consciência, ele trouxe, para dentro da consciência, o mundo todo, como se este fosse essencialmente um simples fenômeno do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]
É essa impotência do EGO pensante para explicar-se que fez dos filósofos, dos pensadores profissionais, uma tribo tão difícil de lidar. Porque o problema é que o EGO pensante, como vimos — à diferença do eu que evidentemente coabita em todo pensador —, não tem qualquer impulso próprio para aparecer em um mundo de aparências. Ele é um personagem escorregadio, invisível não apenas para os outros, mas também para o próprio eu, impalpável e impossível de ser apreendido. Isso em parte se dá porque ele é pura atividade, e em parte porque — como disse Hegel uma vez — “[como] EGO abstrato, ele está liberado da particularidade de todas as outras propriedades, disposições etc.; e é ativo apenas em relação ao geral, ao que é o mesmo para todos os indivíduos” [Hegel, Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften, ed. Lasson, Leipzig, 1923, 23: “Das Denken… sich als abstraktes Ich als von aller Partikularität sonstiger Eigenschaften, Zustände, usf, befreites verhält und nur das Allgemeine tut in welchem es mit allen Individuen identisch ist.”]. Em todo caso, visto a partir do mundo das aparências, da praça do mercado, o EGO pensante vive escondido, lathé biósas. E nossa questão (“o que nos faz pensar?”) de fato pergunta pela maneira como podemos trazê-lo à luz do dia, como provocá-lo, por assim dizer, a manifestar-se. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]
O que chamei de “busca” do significado aparece, na linguagem socrática, como o amor, no sentido grego de Eros, não no sentido cristão de agape. O amor, como Eros, é antes de tudo uma falta; deseja o que não tem. Os homens amam a sabedoria e começam a filosofar porque não são sábios. Amam a beleza e fazem o belo, por assim dizer — philokaloumen, como disse Péricles na Oração fúnebre [Tucídides, II, 40] —, porque eles não são belos. O amor é o único assunto do qual Sócrates se diz conhecedor; e essa habilidade guia-o também na escolha de companheiros e amigos: “Embora eu seja inútil para todas as outras coisas, este dom eu tenho: reconheço imediatamente o amante e o amado.” [Lysis, 204b-c] Ao desejar o que não tem, o amor estabelece uma relação com o que não está presente. Para trazer à luz e fazer aparecer essa relação, os homens procuram falar dela — assim como o amante procura falar do amado. É porque a busca empreendida pelo pensamento é um tipo de amor desejante que os objetos do pensamento só podem ser coisas merecedoras de amor — beleza, sabedoria, justiça etc. O mal e a feiura quase por definição estão excluídos da consideração do pensamento. Eles podem apresentar-se como deficiências, consistindo a feiura na ausência da beleza, e o mal, kakia, na ausência de bem. Em si, não têm raízes próprias nem essências onde o pensamento possa se firmar. Se o pensamento dissolve conceitos positivos até o seu significado original, então o mesmo processo tem que dissolver tais conceitos “negativos” até a sua ausência de significado original, isto é, até o nada, do ponto de vista do EGO pensante. Eis por que Sócrates acreditava que ninguém pudesse fazer o mal voluntariamente — o mal, como diríamos nós, não tem estatuto ontológico: ele consiste em uma ausência, um algo que não é. Demócrito, que compreendia o logos, a palavra, como acompanhamento da ação — da mesma maneira como a sombra acompanha todas as coisas reais, distinguindo-as assim da mera semblância —, por isso mesmo desaconselhava a que se falasse dos maus atos: ao ignorarmos o mal, privando-o de qualquer manifestação na fala, ele se torna uma mera semblância que não projeta nenhuma sombra [Frags.145, 190]. Quando abordamos o espanto admirativo e afirmativo de Platão, encontramos a mesma exclusão do mal tal como ele se desdobra em pensamento; e a encontramos em quase todos os filósofos ocidentais. Ao que parece, a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o mal e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza, a justiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto, reciprocamente, aqueles que amam a investigação e, assim, “fazem filosofia” são incapazes de fazer o mal. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]
Em outras palavras, é a experiência do EGO pensante que está sendo transferida para as coisas. Pois nada pode ao mesmo tempo ser em si e para si mesmo senão o dois-em-um que Sócrates descobriu ser a essência do pensamento, e que Platão traduziu em linguagem conceitual como o diálogo sem som — eme emauto — de mim comigo mesmo [Theaetetus, 189e; Sophist, 263e]. Mas, novamente, não é a atividade de pensar que constitui a unidade, que unifica o dois-em-um; ao contrário, o dois-em-um torna-se novamente Um quando o mundo exterior impõe-se ao pensador e interrompe bruscamente o processo do pensamento. Quando o pensador é chamado de volta ao mundo das aparências, onde ele sempre é Um, é como se a dualidade em que tinha sido dividido pelo pensamento se unisse, violentamente, voltando de novo à unidade. Existencialmente falando, o pensamento é um estar-só, mas não é solidão; o estar-só é a situação em que me faço companhia. A solidão ocorre quando estou sozinho, mas incapaz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-me companhia, quando, como Jaspers dizia, “eu falto a mim mesmo” (ich bleibe mir aus), ou, em outras palavras, quando sou um e sem companhia. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
O critério do diálogo espiritual não é mais a verdade, que exigiria respostas para as perguntas que me coloco, esteja ela sob a forma da Intuição que compele com a força da evidência sensorial ou sob a forma das conclusões necessárias de um cálculo de consequências, como o raciocínio matemático ou lógico, cuja força de coerção repousa sobre a estrutura do nosso cérebro com seu poder natural. O único critério de pensamento socrático é a conformidade, o ser consistente consigo mesmo, homologein autos heauto [Protagoras, 339c]. O seu oposto, o estar em contradição consigo mesmo, enantia legein autos heauto [Ibidem, 339b, 340b], de fato significa tornar-se seu próprio adversário. Eis por que Aristóteles, em sua primeira formulação do famoso princípio da não-contradição, afirma explicitamente que ele é um axioma: “Temos que acreditar nele porque […] ele não se dirige à palavra externa [exo […] logos, isto é, à palavra falada e endereçada a outra pessoa, amiga ou adversária], mas ao discurso interno à alma; e embora possamos sempre levantar objeções contra a palavra externa, nem sempre podemos fazê-lo contra o discurso interior”, porque o parceiro é a própria pessoa, e é impossível que eu queira tornar-me meu próprio adversário [Posterior Analytics, 76b22-25]. (Podemos observar, neste caso, como um insight, feito a partir da experiência factual do EGO pensante, perde-se quando é generalizado em uma doutrina filosófica — como “A não pode ser B e A sob as mesmas condições e ao mesmo tempo” —, uma transformação realizada pelo próprio Aristóteles quando discute o mesmo assunto em sua Metafísica.) [1005b23-1008a2] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
Em poucas palavras, a realização, especificamente humana, da consciência no diálogo pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferença e a alteridade, características tão destacadas do mundo das aparências tal como é dado ao homem, seu hábitat em meio a uma pluralidade de coisas, são também as mesmas condições da existência do EGO mental do homem, já que ele só existe na dualidade. E esse EGO — o eu-sou-eu — faz a experiência da diferença na identidade precisamente quando ele não está relacionado às coisas que aparecem, mas apenas a si mesmo. (Essa dualidade original, aliás, explica a futilidade da busca de identidade, tão em voga. Nossa moderna crise de identidade só poderia ser resolvida se nunca ficássemos a sós e nunca tentássemos pensar.) Sem aquela lição original, a afirmação de Sócrates sobre a harmonia em um ser que segundo todas as aparências é Um não teria sentido. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
A consciência não é o mesmo que o pensamento; os atos de consciência têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos “intencionais” e, portanto, cognitivos, ao passo que o EGO pensante não pensa alguma coisa, mas sobre alguma coisa; e este ato é dialético: ele se desenrola sob a forma de um diálogo silencioso. Sem a consciência, no sentido da consciência de si mesmo, o pensamento seria impossível. O que o pensamento torna real, no meio desse processo infinito, é a diferença na consciência, diferença dada como um simples fato bruto (factum brutum); é apenas sob essa forma humanizada que a consciência torna-se a característica notória de um homem, e não de um deus ou de um animal. Do mesmo modo como a metáfora preenche a lacuna entre o mundo das aparências e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele, o dois-em-um socrático cura o estar só do pensamento; sua dualidade inerente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
Para o EGO pensante e para sua experiência, a consciência moral que “deixa o homem cheio de embaraços” é um efeito colateral acessório. Não importa em que séries de pensamentos o EGO pensante se engage; para o eu que nós todos somos, importa cuidar de não fazer nada que torne impossível para os dois-em-um serem amigos e viverem em harmonia. É isso o que Espinosa entende por “aquiescência do próprio eu” (acquiescentia in seipso): “Ela pode brotar da razão [raciocínio], e esse contentamento é a maior alegria possível.” [Ethics, IV, 52; III, 25] Seu critério de ação não será o das regras usuais, reconhecidas pelas multidões e acordadas pela sociedade, mas a possibilidade de eu viver ou não em paz comigo mesmo quando chegar a hora de pensar sobre meus atos e palavras. A consciência moral é a antecipação do sujeito que aguarda quando eu voltar para casa. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
Em segundo lugar, as manifestações das experiências autênticas do EGO pensante são múltiplas. Entre elas encontram-se as falácias metafísicas, como a teoria dos dois mundos e as ainda mais interessantes descrições não-teóricas do pensamento como uma espécie de morrer ou, inversamente, a noção de que, enquanto pensamos, somos membros de um outro mundo, numênico — que se nos insinua mesmo na obscuridade do aquie-agora real —, ou ainda a definição de Aristóteles do bios theórétikos como um bios xenikos, a vida do estrangeiro. As mesmas experiências refletem-se na dúvida cartesiana sobre a realidade do mundo, no “às vezes sou, às vezes penso” de Valéry (como se ser real e pensar fossem opostos), nas palavras de Merleau-Ponty: “Só estamos realmente sós quando não o sabemos, é essa ignorância mesma que é o nosso estar-só [o do filósofo].” [Merleau-Ponty, Signs, “The Philosopher and His Shadow”, p. 174] É bem verdade que o EGO pensante, quaisquer que sejam as suas realizações, jamais poderá alcançar a realidade enquanto tal ou convencer a si mesmo de que algo realmente existe e de que a vida, a vida humana, é mais do que um sonho. (A suspeita de que a vida seja apenas um sonho é, evidentemente, um dos traços mais característicos da filosofia asiática; inúmeros exemplos podem ser tirados da filosofia indiana. Escolhi um exemplo chinês bastante eloquente por sua concisão. Ele conta uma história sobre o filósofo taoista [isto é, anticonfuciano] Chuang Chou. Ele “uma vez sonhou que era uma borboleta esvoaçando alegremente de um lado para o outro, satisfeita consigo mesma, fazendo o que lhe aprazia. Ele não sabia que era Chuang Chou. Subitamente despertou, e lá estava sólida e inequivocamente Chuang Chou. Mas ele não sabia se Chuang Chou tinha sonhado ser uma borboleta ou se uma borboleta estava sonhando ser Chuang Chou. Entre Chuang Chou e uma borboleta, deve haver alguma distinção!”.) [Citado de Sebastian de Grazia, “About Chuang Tzu”, Dalhousie Review, verão, 1974] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 19]
Em terceiro lugar, estas curiosas características ligadas à atividade de pensar surgem da retirada, inerente a todas as atividades do espírito: o pensamento sempre lida com ausências e abandona o que está presente e ao alcance da mão. Isso evidentemente não prova a existência de um mundo diferente daquele do qual fazemos parte na vida cotidiana, mas quer dizer que a realidade e a existência que só podemos conceber em termos espaço-temporais podem ser temporariamente suspensas. Elas podem ser despojadas de seu peso e, deste modo, também do seu significado para o EGO pensante. Durante a atividade de pensar, o que se torna significativo são extratos, produtos da dessensorialização, e tais extratos não são meros conceitos abstratos; eles eram outrora chamados de “essências”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 19]
As essências não podem ser localizadas. O pensamento humano, ao apossar-se delas, deixa o mundo dos particulares e dá início à busca de algo significativo de uma maneira geral, embora não necessariamente universalmente válido. O pensamento sempre “generaliza”, comprime os muitos particulares — os quais, graças ao processo dessensorializante, ele pode compactar para uma rápida manipulação — para encontrar o significado que possam ter. A generalização é inerente a todo pensamento, mesmo que este ou aquele pensamento insista na primazia universal do particular. Em outras palavras, o “essencial” é o que se aplica em toda parte, e esse “em toda parte”, que confere ao pensamento seu peso específico, é, espacialmente falando, um “lugar nenhum”. O EGO pensante, movendo-se entre universais e essências invisíveis, não se encontra, em sentido estrito, em lugar algum. Ele não tem lar, no sentido enfático da expressão — o que talvez explique o surgimento precoce de um espírito cosmopolita entre os filósofos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 19]
Em outras palavras, quando perguntávamos pelo lugar do EGO pensante, podíamos bem estar colocando uma pergunta errada e imprópria. O “em toda parte” do EGO pensante — chamando à sua presença, de qualquer ponto do tempo ou do espaço, tudo o que lhe apraz, com velocidade maior do que a da luz —, considerado da perspectiva do mundo cotidiano das aparências, é um lugar nenhum. E uma vez que este lugar nenhum não é de modo algum idêntico ao duplo lugar nenhum de onde subitamente aparecemos ao nascer e no qual quase tão subitamente desaparecemos ao morrer, ele só pode ser concebido como o Vazio. E o vazio absoluto pode ser um conceito-limite; embora não inconcebível, ele é impensável. Obviamente, se não existe absolutamente nada, nada há sobre o que pensar. O fato de que tenhamos esses conceitos-limites que encerram nosso pensamento dentro de muros intransponíveis — entre eles, as noções de começo e de fim absoluto — diz-nos apenas que somos realmente seres finitos. Supor que essas limitações pudessem servir para demarcar uma região onde o EGO pensante pudesse ser localizado seria apenas dar uma outra variante para a teoria dos dois mundos. A finitude humana, irrevogavelmente determinada por nosso curto tempo de vida, compreendido em uma infinidade de tempo que se estende para o passado e para o futuro, constitui, por assim dizer, a infraestrutura de todas as atividades do espírito. A finitude manifesta-se como a única realidade da qual o pensamento enquanto tal está cônscio, mesmo quando o EGO pensante retirou-se do mundo das aparências e perdeu o sentido de realidade [realness] inerente ao sensus communis que nos orienta nesse mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 19]
Na esperança de descobrir onde o EGO pensante está temporalmente situado e se a sua incansável atividade pode ser temporalmente determinada, recorrerei a uma parábola de Kafka que, em minha opinião, trata especificamente desse tema. A parábola faz parte de uma coleção de aforismos intitulada “ELE” [Gesammelte Schriften, Nova York, 1946, vol. V, p. 289. Trad. inglesa de Willa e Edwin Muir, The Great Wall of China, Nova York, 1946, p. 276-277]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Para mim, essa parábola descreve a sensação temporal do EGO pensante. Ela analisa poeticamente nosso “estado interno” em relação ao tempo, do qual nos damos conta quando nos retiramos das aparências e encontramos nossas atividades espirituais voltando-se, de modo característico, sobre si mesmas — cogito me cogitare, volo me velle etc. A sensação interna do tempo surge não quando estamos inteiramente absorvidos pelos invisíveis ausentes sobre os quais pensamos, mas quando começamos a dirigir nossa atenção para a própria atividade. Nessa situação, passado e futuro estão igualmente presentes, precisamente porque estão igualmente ausentes da nossa percepção. Assim, o não-mais do passado é transformado, graças à metáfora espacial, em algo que se encontra atrás de nós, e o ainda-não do futuro, em algo que se aproxima pela frente (a palavra alemã Zukunft bem como a francesa avenir significam, literalmente, “o que vem”). Em Kafka, esse cenário é um campo de batalha onde as forças do passado e do futuro chocam-se uma contra a outra. Entre elas encontramos o homem que Kafka chama “Ele”, que, se pretende manter sua posição, tem que enfrentar ambas as forças. Elas são “seus” antagonistas; elas não são apenas opostas, e dificilmente entrariam em luta se “ele” não estivesse no meio delas, opondo resistência. Mesmo que tal antagonismo fosse de alguma forma inerente às duas e elas pudessem lutar uma contra a outra, sem “ele”, há muito tempo elas já teriam se neutralizado e destruído reciprocamente, já que, como forças, são claramente equipotentes. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Para voltar a Kafka, é preciso lembrar que nenhum desses exemplos tematiza uma doutrina ou teoria, mas pensamentos ligados às experiências do EGO pensante. Vista da perspectiva de um fluxo eterno e constante, a inserção do homem, lutando em ambas as direções, produz uma ruptura que, por ser defendida em duas direções, abre uma lacuna, o presente definido como um campo de batalha. Esse campo de batalha é, para Kafka, uma metáfora do lar do homem sobre a Terra. Visto da perspectiva do homem, a cada momento capturado e encerrado entre seu passado e seu futuro, em que passado e futuro dirigem-se àquele que está criando o seu presente, o campo de batalha é um intervalo, um Agora prolongado em que ele passa sua vida. O presente, que na vida cotidiana é o mais fútil e escorregadio dos tempos modais — quando eu digo “agora” e o aponto, ele já não é mais —, é apenas o choque entre o “passado”, que não é mais, e o “futuro”, que vem se aproximando e, no entanto, ainda não é. O homem vive nesse intervalo, e o que ele chama de “presente” é uma luta que dura toda a vida contra o peso morto do passado, que o impulsiona com a esperança, e contra o medo do futuro (cuja única certeza é a morte), que o empurra para trás, para “a serenidade do passado”, com a nostalgia e a lembrança da única realidade de que o homem pode ter certeza. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
O fato de que essa imagem do tempo seja totalmente distinta da sequência temporal da vida cotidiana, em que os três tempos se sucedem suavemente e o próprio tempo pode ser entendido fazendo-se uma analogia com a sequência numérica, fixada pelo calendário, de acordo com a qual o presente é hoje, o passado começa ontem e o futuro, amanhã, não deveria nos assustar em demasia. Aqui também o presente está rodeado pelo passado e pelo futuro, à medida que ele permanece o ponto fixo a partir do qual nos orientamos, olhamos para trás ou para a frente. Devemos não ao próprio tempo, mas à continuidade de nossas ocupações e atividades no mundo e ao fato de que continuamos o que ontem começamos e que esperamos terminar amanhã a possibilidade de dar ao fluxo eterno da pura mudança a forma de um continuum temporal. Em outras palavras, o continuum do tempo depende da continuidade de nossa vida cotidiana; e o conjunto das ocupações que formam a vida cotidiana é sempre espacialmente condicionado e determinado, ao contrário da atividade do EGO pensante, sempre independente das circunstâncias espaciais que o cercam. Graças a essa penetrante especialidade da nossa vida cotidiana é que podemos falar com plausibilidade do tempo usando categorias espaciais; é que o passado pode aparecer como algo que se encontra “atrás” de nós e o futuro como algo que se encontra “à frente”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
A parábola de Kafka sobre o tempo não se aplica ao homem em suas ocupações cotidianas, mas apenas ao EGO pensante, à medida que ele se retirou da rotina diária. A lacuna entre passado e futuro só se abre na reflexão, cujo tema é aquilo mesmo que está ausente — ou porque já desapareceu ou porque ainda não apareceu. A reflexão traz essas “regiões” ausentes à presença do espírito; dessa perspectiva, a atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo. É apenas porque “ele” pensa, e, portanto, deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em um mundo de aparências, que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma que “ele” pode tomar consciência de um não-mais que o empurra para a frente e de um ainda-não que o empurra para trás. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
O conto de Kafka está evidentemente redigido em linguagem metafórica. E suas imagens, tiradas da vida cotidiana, são tomadas como analogias sem as quais, como foi dito, os fenômenos do espírito não podem de modo algum ser descritos. E isso sempre apresenta dificuldades para a interpretação. A dificuldade específica aqui é que o leitor tem que estar consciente de que o EGO pensante não é o eu que aparece e se move no mundo, recordando o próprio passado biográfico como se “ele” estivesse à la recherche du temps perdu ou planejando o futuro. Porque o EGO pensante não tem idade nem localização, o passado e o futuro podem tornar-se, como tais, manifestos para ele, esvaziados, por assim dizer, de seu conteúdo concreto e liberados de todas as categorias espaciais. O que o EGO pensante vê como os “seus” dois antagonistas são o próprio tempo e a mudança constante que ele implica, o movimento inexorável que transforma todo Ser em Devir, em vez de deixá-lo ser, destruindo assim, incessantemente, seu estar presente. Como tal, o tempo é o maior inimigo do EGO pensante, porque o tempo — pela encarnação do espírito em um corpo cujos movimentos internos nunca podem ser imobilizados — regula e implacavelmente interrompe a quietude imóvel na qual o espírito está ativo, sem nada fazer. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Sem “ele” não haveria nenhuma diferença entre passado e futuro, mas apenas uma eterna mudança. Ou então essas forças bateriam de frente e se aniquilariam mutuamente. Mas graças à entrada de uma presença combativa, elas formam um ângulo, e a imagem correta teria que ser então o que os físicos chamam de paralelogramo de forças. A vantagem dessa imagem é que a região do pensamento não teria mais que se situar além e acima do mundo e do tempo humano; o lutador não teria mais que pular da linha de combate para encontrar a calmaria e a quietude necessárias para o pensamento. “Ele” reconheceria que “sua” luta não foi em vão, já que o próprio campo de batalha oferece a região onde “ele” pode descansar quando está exausto. Em outras palavras, a localização do EGO pensante no tempo seria o intervalo entre passado e futuro, ou seja, o presente, agora misterioso e fugidio, uma mera lacuna no tempo em direção ao qual, não obstante, passado e futuro se dirigem, à medida que indicam o que não é mais e o que ainda não é. O fato de que eles, de alguma forma, sejam deve-se obviamente ao homem, que instalou sua presença entre eles. Uma vez tendo corrigido a imagem, permitam-me acompanhar sucintamente as suas implicações. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Essa atemporalidade não é certamente a eternidade; ela brota, por assim dizer, do choque entre passado e futuro, ao passo que eternidade é o conceito-limite, impensável porque assinala o colapso de todas as dimensões temporais. A dimensão temporal do nunc stans, experimentada na atividade de pensar, reúne na sua própria presença os tempos ausentes, o ainda-não e o não-mais. É o que Kant chama de “terra do puro intelecto” (Land des reinen Verstandes), “uma ilha, encerrada dentro de limites inalteráveis pela própria natureza” e “rodeada por um vasto e tempestuoso oceano”, o mar da vida cotidiana [Critique of Pure Reason, B3294 s]. E embora não acredite que esta é a “terra da verdade”, ela é certamente o único domínio em que o conjunto de uma vida humana e seu significado — de resto inacessível a homens mortais (nemo ante mortem beatus esse dici potest), cuja existência, ao contrário de todas as outras coisas que só começam a ser em sentido enfático quando estão terminadas, termina quando não é mais —, em que esse conjunto inapreensível pode se manifestar como a pura continuidade do eu-sou, uma presença que permanece em meio à transitoriedade sempre mutável do mundo. É por causa dessa experiência do EGO pensante que o primado do presente, no mundo das aparências, o mais transitório dos tempos, tornou-se quase um alvo dogmático da especulação filosófica. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]
Em Kant, o juízo emerge como “um talento peculiar que somente pode ser praticado, e não ensinado”. O juízo lida com particulares, e quando o EGO pensante que se move entre generalidades emerge da sua retirada e volta ao mundo das aparências particulares, o espírito necessita de um novo “dom” para lidar com elas. Kant acreditava que “uma pessoa tacanha ou obtusa […] pode de fato ser treinada pelo estudo, até mesmo chegar ao ponto de se tornar erudita. Mas como geralmente ainda falta o exercício do juízo a tais pessoas, é comum encontrar-se homens cultos que, na aplicação do seu conhecimento científico, traem-se e revelam aquela falta original que jamais pode ser compensada” [Critique of Pure Reason, B172-B173]. Em Kant, é a razão, com as suas “ideias regulativas”, que vem em socorro do juízo. Mas se a faculdade é uma faculdade do espírito separada das outras, então teremos que lhe atribuir o seu próprio modus operandi, a sua própria maneira de proceder. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]
O segundo volume de A vida do espírito será dedicado à faculdade da Vontade e, por conseguinte, ao problema da Liberdade, o qual, como disse Bergson, “foi para os modernos o que os paradoxos dos Eleatas foram para os antigos”. Os fenômenos com os quais temos de lidar estão em grande parte encobertos por uma camada de argumentos que não são de modo algum arbitrários e que, por isso, não devem ser desprezados, mas que acabam se desvinculando das experiências reais do EGO volitivo, favorecendo doutrinas e teorias não necessariamente interessadas em “salvar os fenômenos”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Faz parte da natureza de todo exame crítico da faculdade da Vontade ser empreendido por “pensadores profissionais” (os Denker von Gewerbe de Kant); isso levanta a suspeita de que as denúncias da Vontade como uma mera ilusão da consciência e as refutações da existência da faculdade — que vemos sustentadas por argumentos quase idênticos em filósofos que partem de pressupostos bastante diferentes — podem dever-se a um conflito básico entre as experiências do EGO pensante e as do EGO volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do EGO pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis, mas é também um “dado imediato da consciência” (nas palavras de Bergson) — tanto quanto o eu-penso de Kant ou o cogito em Descartes, cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional. Para antecipar: o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade?”, no dizer de Agostinho. A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos — algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão. A Vontade, ao que parece, tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento, que mesmo em sua forma mais livre, mais especulativa, não pode escapar ao princípio de não contradição. Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção. Os pensadores muitas vezes consideraram-no uma maldição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Formulada em termos espaciais, a questão recebeu uma resposta negativa. Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o EGO pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. Retirou-se do mundo das aparências, inclusive de seu próprio corpo e, portanto, também do eu, do qual não mais tem consciência. E isso a ponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela morte, e de Valéry poder dizer “Tantôt je pense et tantôt je suis”, dando a entender que o EGO pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real, aparente, não pensa. Segue-se daí que nossa pergunta — “onde estamos quando pensamos?” — foi feita de fora da experiência de pensamento e foi, portanto, imprópria. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Quando então resolvemos investigar a experiência temporal do EGO pensante, deixamos de julgar que nossa questão estava mal colocada. A memória, o poder que o espírito possui de ter presente aquilo que irrevogavelmente já passou e que está, portanto, ausente dos sentidos, foi sempre o exemplo paradigmático mais plausível do poder que o espírito tem de tornar presentes os invisíveis. Porque tem esse poder, o espírito parece ser até mais forte que a realidade; opõe sua força à futilidade inerente a tudo o que está sujeito à mudança; recupera e relembra o que de outra forma estaria condenado à ruína e ao esquecimento. A região temporal em que se dá esse salvamento é o Presente do EGO pensante, uma espécie de “hoje” [todayness] duradouro (hodiernos, “do dia de hoje”, era como Agostinho chamava a eternidade de Deus) [Confessions, Livro XI, cap. 13], o “agora permanente” [nunc stans] da meditação medieval, um presente que dura [o présent qui dure de Bergson] [La Pensée et le Mouvant (1934), Paris, 1950, p. 170] ou “a lacuna entre o passado e o futuro”, conforme a designação que demos ao explicarmos a parábola kafkiana do tempo. Mas é somente quando aceitamos a interpretação medieval dessa experiência temporal como um indício da eternidade divina que somos forçados a concluir que não só a espacialidade, mas também a temporalidade é provisoriamente suspensa nas atividades do espírito. Tal interpretação envolve toda a nossa vida espiritual em uma aura de misticismo e estranhamente desconsidera exatamente o que há de comum na experiência em si. A constituição de um “presente que dura” é “o ato habitual, normal, banal do nosso intelecto” [Ibidem, p. 26], realizado em qualquer tipo de reflexão, seja quando ela tem como objeto as ocorrências comuns do dia a dia, seja quando a atenção se concentra em coisas eternamente invisíveis, que ficam de fora da esfera do poder humano. A atividade do espírito sempre cria para si mesma un présent qui dure, uma “lacuna entre o passado e o futuro”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Disse anteriormente que as atividades do espírito e especialmente a atividade do pensamento sempre estão “fora de ordem” quando vistas da perspectiva da continuidade incólume de nossos negócios no mundo das aparências. A cadeia de “agoras” aí desenrola-se inexoravelmente, fazendo com que se compreenda o presente como unindo precariamente passado e futuro: no momento em que tentamos defini-lo, ele já é ou um “não mais” ou um “ainda não”. Desse ângulo, o presente que dura se parece com um “agora” prolongado — uma contradição em termos —, como se o EGO pensante fosse capaz de esticar o momento, produzindo, assim, uma espécie de hábitat espacial para si. Mas essa aparente espacialidade de um fenômeno temporal é um erro causado pelas metáforas que usamos habitualmente na terminologia que trata do fenômeno do Tempo. Como nos diz Bergson, que descobriu isso, são todos termos “tomados de empréstimo à linguagem espacial. Se desejamos refletir sobre o tempo, é o espaço que responde”. Assim, “a duração é sempre expressa como extensão” [Op. cit., p. 5], e o passado é entendido como algo que fica atrás de nós, o futuro fica em algum lugar à nossa frente. A razão para preferir a metáfora espacial é óbvia: para nossas atividades cotidianas no mundo, sobre as quais o EGO pensante pode refletir, mas nas quais ele não está envolvido, precisamos de medidas de tempo: e só podemos medir o tempo medindo distâncias espaciais. Mesmo a distinção comum entre justaposição espacial e sucessão temporal pressupõe um espaço estendido no qual a sucessão se deve dar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Essas considerações preliminares — e de modo algum satisfatórias — sobre o conceito de tempo parecem-me necessárias em nossa discussão sobre o EGO volitivo, porque a Vontade, se é que ela existe — e uma quantidade desconfortável de grandes filósofos que nunca duvidaram da razão ou do pensamento sustentaram que a Vontade não passa de uma ilusão —, é obviamente o nosso órgão espiritual para o futuro, do mesmo modo que a memória é o nosso órgão espiritual para o passado. (A estranha ambivalência da língua inglesa, na qual will como auxiliar designa o futuro enquanto o verbo to will indica volições, atesta em realidade nossas incertezas quanto a esses assuntos.) Em nosso contexto, o problema básico com a Vontade é que ela não lida simplesmente com coisas que estão ausentes de nossos sentidos e que precisam se fazer presentes através do poder de re-presentação do espírito, mas lida também com coisas, visíveis e invisíveis que absolutamente nunca existiram. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
A filosofia de Nietzsche, centrada na Vontade de Potência, parece, à primeira vista, constituir o clímax da ascendência da Vontade na reflexão teórica. Penso que essa interpretação de Nietzsche é um equívoco, em parte causado pelas circunstâncias bastante infelizes que cercaram as primeiras edições não críticas de suas publicações póstumas. Devemos a Nietzsche muitos insights decisivos a respeito da natureza da faculdade da Vontade e do EGO volitivo, aos quais voltaremos mais tarde; em seus trabalhos, contudo, a maior parte das passagens sobre a Vontade dá testemunho de uma declarada hostilidade em relação à “teoria da ‘liberdade da Vontade’, refutada centenas de vezes, [teoria que] deve sua permanência” precisamente ao fato de ser “refutável”: “Sempre aparece alguém que se sente forte o suficiente para refutá-la uma vez mais.” [Beyond Good and Evil (1885), traduzido por Marianne Cowan, Chicago, 1955, seção 18.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 2]
O propósito dessas observações preliminares é facilitar nossa abordagem das complexidades do EGO volitivo; em nossa preocupação metodológica, dificilmente podemos nos permitir desconsiderar o fato simples de que toda filosofia da Vontade é produto do EGO pensante, e não do EGO volitivo. Embora, é claro, seja sempre o mesmo espírito que pensa e quer, vimos que não se pode confiar em que a avaliação das outras faculdades do espírito pelo EGO pensante permaneça imparcial; com certeza ficamos desconfiados quando encontramos pensadores com filosofias gerais bastante diferentes levantando argumentos idênticos contra a Vontade. Esboçarei brevemente as principais objeções assim como elas aparecem na filosofia pós-medieval, antes de entrar em uma discussão sobre a posição de Hegel. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
No mais, as mesmas objeções poderiam facilmente ser levantadas — mas quase nunca foram — contra a existência da faculdade do pensamento. Sem dúvida o cálculo das consequências de Hobbes, quando entendido como pensamento, não dará margem a tais suspeitas; mas esse poder de imaginar e fazer cálculos futuros coincide, em vez disso, com as deliberações do EGO volitivo sobre os meios para alcançar um fim, ou com a capacidade usada na resolução de enigmas e problemas matemáticos. (Um equacionamento do gênero está claramente por trás da refutação que Ryle faz da “doutrina de que existe uma Faculdade […] da ‘Vontade’ e que, portanto, ocorram processos ou operações correspondentes ao que ela descreve como ‘volições’’’. Nas palavras do próprio Ryle: “Ninguém diz jamais coisas como […] ele desempenhou cinco volições rápidas e fáceis e duas volições lentas e difíceis entre o meio-dia e a hora do lanche.” [Op. cit., pp. 63-64] Não se pode sustentar a sério que produtos-de-pensamento duráveis, tais como A crítica da razão pura, de Kant, ou a Fenomenologia do espírito, de Hegel, pudessem algum dia ser compreendidos nesses termos.) Os únicos filósofos que conheço que ousaram duvidar da faculdade do pensamento foram Nietzsche e Wittgenstein. Este, em seus primeiros experimentos de pensamento, sustentava que o EGO pensante (o que ele chamava de vorstellendes Subjekt, derivando sua teoria de Schopenhauer) poderia “em última instância ser mera superstição”, provavelmente “uma ilusão vazia, mas o sujeito volitivo existe”. Justificando sua tese, Wittgenstein reitera os argumentos comumente levantados no século XVII contra a negação da Vontade de Espinosa, a saber, “se a Vontade não existisse, tampouco existiria […] o portador da ética” [Notebooks 1914-1916, ed. bilíngue, traduzido por G. E. M. Anscombe, Nova York, 1961, item com a data de 5 de agosto, 1916, p. 80c; também pp. 86e-88e]. Quanto a Nietzsche, é preciso dizer que tinha suas dúvidas tanto em relação à vontade quanto ao pensamento. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Nossa terceira dificuldade está ligada a esse dilema. Aos olhos dos filósofos que advogaram o EGO pensante, foi sempre a maldição da contingência o que condenou o campo dos assuntos meramente humanos a um status bastante baixo na hierarquia ontológica. Mas antes da Era Moderna existiram — não muitas, mas algumas — vias de escape bastante trilhadas pelo menos pelos filósofos. Na Antiguidade havia o bios theoretikos: o pensador habitava a vizinhança das coisas necessárias e perenes, tomando parte em seu Ser até o ponto em que isso é possível para os mortais. Na era da filosofia cristã, havia a vita contemplativa dos monastérios e das universidades, mas também o pensamento consolador da divina Providência, conjugado à expectativa de uma vida após a morte, quando aquilo que parecera contingente e sem sentido neste mundo se tornaria muito claro, a alma vendo “cara a cara”, em vez de “por espelho, obscuramente”, não mais conhecendo só “em parte” — pois ela “conhecerá tanto quanto [é] conhecida”. Sem tal esperança de um Além, até mesmo Kant julgava a vida infeliz demais, por demais destituída de sentido para ser suportada. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
É óbvio que a progressiva secularização, ou melhor, descristianização do mundo moderno, ligada, como estava, a uma ênfase inteiramente nova no futuro, no progresso e, portanto, nas coisas que não são nem necessárias nem eternas, acabaria por expor os pensadores à contingência de todas as coisas humanas de uma maneira mais radical e impiedosa do que nunca. O que, desde o fim da Antiguidade, fora o “problema da liberdade” agora estava incorporado, por assim dizer, ao acaso da história — “cheia de som e de fúria”, “uma história narrada por um idiota […] significando nada” — a que correspondia o caráter fortuito das decisões pessoais que se originam em uma vontade livre que não foi guiada nem pela razão nem pelo desejo. Esse velho problema, reaparecendo na roupagem de uma nova era, a Era do Progresso — que só agora, em nosso próprio tempo, está alcançando o fim (à medida que o Progresso aproxima-se rapidamente dos limites dados pela condição humana na Terra) —, encontrou sua pseudossolução na filosofia da história do século XIX, cujo maior representante produziu uma teoria engenhosa de uma Razão e de um Significado escondidos no curso dos acontecimentos do mundo, guiando as vontades dos homens em toda sua contingência na direção de um objetivo final que eles jamais pretenderam alcançar. Uma vez que se complete esta história — e Hegel parece ter acreditado que o início do fim da história era contemporâneo à Revolução Francesa —, o olhar retrospectivo do filósofo, pelo puro esforço do EGO pensante, pode internalizar e relembrar (ex-innern) a falta de sentido e a necessidade do movimento que se desenrola, de modo que possa novamente lidar com o que é e não pode não-ser. Afinal, em outras palavras, o processo do pensamento mais uma vez coincide com o autêntico Ser: o pensamento depurou a realidade daquilo que é meramente acidental. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Essas especulações surgiram quando os padres da Igreja já tinham começado a explicar a fé cristã em termos da filosofia grega, isto é, quando foram confrontados com o Ser, para o qual a língua hebraica não tem uma palavra. Parece bastante óbvio, pela lógica, que um equacionamento do Universo e do Ser deve implicar “o nada” como seu oposto; ainda assim, a transição de Nada para Algo é logicamente tão difícil que se pode suspeitar que foi o novo EGO volitivo que — a despeito de doutrinas ou credos — considerou a ideia de um começo absoluto apropriada para a sua experiência de fazer projetos. Pois há algo de fundamentalmente errado no exemplo de Kant. Somente quando ele, ao levantar-se da cadeira, tem em mente algo que deseja fazer é que este “acontecimento” começa uma “nova série”; se não é esse o caso, se ele habitualmente se levanta a essa hora ou se se levanta para pegar alguma coisa de que precisa para sua ocupação do momento, este acontecimento é, ele mesmo, “a continuação de uma série precedente”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Visto desse ângulo, que é o ângulo do EGO volitivo, não é a liberdade, mas a necessidade que parece ser uma ilusão da consciência. O insight de Bergson me parece ao mesmo tempo elementar e altamente significativo; mas não será também significativo o fato de essa observação, apesar de sua plausibilidade simples, nunca ter tido qualquer importância nas intermináveis discussões sobre necessidade versus liberdade? Ao que eu saiba, o ponto foi levantado somente uma vez antes de Bergson. Trata-se de Duns Scotus, o solitário defensor da primazia da Vontade sobre o Intelecto e — mais que isso — do fator contingência em tudo o que é. Se há algo como uma filosofia cristã, então Duns Scotus teria de ser reconhecido não só como “o mais importante pensador da Idade Média cristã” [Assim escreveu Wilhelm Windelband em seu famoso History of Philosophy (1982), Nova York, 1960, p. 314. Ele também chama Duns Scotus de “o maior dos escolásticos” (p. 425)], mas talvez também como o único que não buscou um meio-termo entre a fé cristã e a filosofia grega, e que ousou, portanto, tornar um símbolo dos “verdadeiros cristãos [dizer] que Deus age contingentemente”. “Aqueles que negam que algum ser é contingente”, disse Scotus, “deveriam ser expostos a tormentos, até reconhecer que é possível para eles não ser atormentados.” [John Duns Scotus, Philosophical Writings: A Selection. Trad. Allan Wolter, Library of Liberal Arts, Indianápolis, Nova York, 1962, pp. 84 e 10] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
O primeiro que se recusou consciente e deliberadamente a tratar da não plausibilidade da vontade livre foi Descartes: “Seria absurdo duvidar daquilo que experimentamos e percebemos interiormente como existente em nós, só porque não compreendemos uma coisa que sabemos ser, pela própria natureza, incompreensível.” [Principles of Philosophy, prin. XLI, in The Philosophical Works of Descartes, op. cit., p. 235] Pois “essas coisas são tais que cada um deve experimentá-las em si mesmo, em vez de persuadir-se delas pelo raciocínio; mas vós […] pareceis não cuidar e não notar a maneira como o espírito age no interior de si mesmo. Não sejais, então, livres, se essa liberdade não vos apraz” (grifos nossos) [Resposta a Objeções à Meditação V, op. cit., p. 225]. Pode ser tentador, aqui, retorquir que o Cogito cartesiano certamente nada mais é do que “uma ação do espírito no interior de si mesmo”; mas jamais ocorreu a Descartes ou àqueles que levantaram objeções à sua filosofia falar de pensamento ou de cogitare como algo que é pressuposto sem uma prova, como um mero dado da consciência. O que então concede ao cogito me cogitare ascendência sobre o “volo me velle” — mesmo em Descartes, que era um “voluntarista’’? Será que “aprazia” menos aos pensadores profissionais, ao basearem suas especulações na experiência do EGO pensante, a liberdade do que a necessidade? Essa suspeita parece inevitável quando consideramos a estranha reunião de teorias conhecidas, teorias que tentam negar completamente a experiência da liberdade “dentro de nós”, ou enfraquecer a liberdade, conciliando-a com a necessidade através de especulações dialéticas que são inteiramente “especulativas”, já que não podem apelar para qualquer experiência. A suspeita é reforçada quando se considera quão estreita é a ligação entre todas as teorias da vontade livre e o problema do mal. Desse modo, Agostinho inicia seu tratado De libero arbitrio voluntatis (O livre-arbítrio da vontade) com a seguinte questão: “Diga-me, por favor, se não é Deus o autor do mal?” Trata-se de uma questão primeiramente proposta em toda a sua complexidade por Paulo (na Epístola aos romanos) e em seguida generalizada para “qual é a causa do mal?”, com muitas variações que envolvem a existência tanto do dano físico causado pela natureza destrutiva quanto da maldade deliberada produzida pelo homem. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]
Se olharmos para esse registro com olhos não embaçados por teorias e tradições, religiosas ou seculares, é certamente difícil escapar à conclusão de que os filósofos parecem geneticamente incapazes de aprender a lidar com certos fenômenos do espírito e com sua posição no mundo, de que os pensadores não são mais confiáveis para chegar a uma avaliação razoável da Vontade do que o foram para chegar a uma avaliação razoável do corpo. Mas a hostilidade dos filósofos contra o corpo é muito conhecida e pode ser registrada pelo menos desde Platão. Ela não é primordialmente motivada pela falibilidade da experiência sensorial — pois esses erros podem ser corrigidos —, ou pela notória ingovernabilidade das paixões — pois estas podem ser domadas pela razão —, mas sim pela simples e incorrigível natureza de nossas necessidades e desejos corporais. O corpo, como enfatiza corretamente Platão, sempre “quer ser cuidado”; e até mesmo nas melhores condições — saúde e prazer, por um lado, e uma comunidade equilibrada, por outro —, ele interromperá, com suas repetidas exigências, as atividades do EGO pensante; nos termos da alegoria da Caverna, o corpo forçará o filósofo a retornar do céu das ideias para a Caverna dos assuntos humanos. (É comum atribuir essa hostilidade ao antagonismo cristão em relação à carne. Mas não só essa hostilidade é muito mais antiga, como também se pode até argumentar que um dos dogmas cristãos fundamentais, a ressurreição da carne, diferentemente de especulações mais antigas sobre a imortalidade da alma, manteve-se em um nítido contraste não só com as crenças gnósticas comuns mas também com as noções da filosofia clássica.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
É claro que o antagonismo do EGO pensante em relação à Vontade é de uma espécie bem diferente. O conflito aqui se dá entre duas atividades espirituais que parecem incapazes de coexistir. Quando produzimos uma volição, isto é, quando nos concentramos em um projeto futuro, não nos retiramos menos do mundo das aparências do que quando estamos seguindo uma linha de pensamento. Pensamento e Vontade antagonizam-se somente no que afetam nossos estados psíquicos; ambos, é verdade, tornam presente para o nosso espírito o que na realidade está ausente; mas o pensamento traz para seu presente duradouro aquilo que ou é ou, pelo menos, foi; enquanto a Vontade, estendendo-se para o futuro, movese em uma região em que tais certezas não existem. Nosso aparato psíquico — a alma em contraposição ao espírito — está equipado para lidar com o que vem da região do desconhecido em sua direção por meio da expectativa, cujas modalidades principais são esperança e medo. Essas duas maneiras de sentir estão intimamente relacionadas, uma vez que ambas estão propensas a dar uma guinada em direção a seu aparente oposto; e, dadas as incertezas desta região, tais mudanças são quase automáticas. Toda esperança traz consigo um medo, e todo medo cura-se ao tornar-se a esperança correspondente. Foi por sua natureza mutável, instável e inquieta que esses sentimentos foram incluídos, pela Antiguidade Clássica, entre os males da caixa de Pandora. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Não é o futuro enquanto tal, mas o futuro como projeto da Vontade que nega o que é dado. Em Hegel e Marx, o poder da negação, cujo motor faz avançar a História, deriva da habilidade que a Vontade pode ter para realizar um projeto: o projeto nega o agora e o passado, ameaçando, assim, o presente duradouro do EGO pensante. Uma vez que o espírito, retirado do mundo das aparências, traz para sua própria presença aquilo que está ausente — o que já não é mais, assim como o que não é ainda —, é como se o passado e o futuro pudessem unir-se em um denominador comum, podendo assim ser salvos, juntos, do fluxo do tempo. Mas o nunc stans, a lacuna entre o passado e o futuro em que localizamos o EGO pensante, embora possa absorver aquilo que não é mais, sem qualquer perturbação do mundo exterior, já não pode responder com a mesma serenidade a projetos que a vontade produz para o futuro. Toda volição, ainda que seja uma atividade do espírito, relaciona-se com o mundo das aparências no qual seu projeto deve realizar-se; em contraste flagrante com o pensamento, nenhum querer jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade. Qualquer volição não só envolve particulares como também — e isso é de grande importância — anseia por seu próprio fim, o momento em que o querer algo terá se transformado no fazê-lo. Em outras palavras, o humor habitual do EGO volitivo é a impaciência, a inquietude e a preocupação (Sorge), não somente porque a alma reage ao futuro com esperança e medo, mas também porque o projeto da vontade pressupõe um “eu-posso” que não está absolutamente garantido. A inquietação preocupada da Vontade só pode ser apaziguada por um “eu-quero-e-faço”, isto é, por uma interrupção de sua própria atividade e liberação do espírito de sua dominação. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Em resumo, a Vontade sempre quer fazer algo, menosprezando assim implicitamente o pensamento puro cuja atividade depende totalmente de “não fazer nada”. Veremos, quando examinarmos a história da Vontade, que nunca um teólogo ou filósofo exaltou a “doçura” da experiência do EGO volitivo, doçura que os filósofos costumavam exaltar na experiência do EGO pensante. (Há duas exceções importantes: Duns Scotus e Nietzsche, que entendiam a Vontade como uma espécie de poder — “voluntas est potentia quia ipsa aliquid potest”. Ou seja, o EGO volitivo compraz-se consigo mesmo — “condelectari sibi” — a ponto de o “eu-quero” antecipar um “eu-posso”; o “eu-quero-e-eu-posso” é o prazer da Vontade.) [Ver cap. III, p. 142 e n° 89] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Quanto a este aspecto — que vamos chamar de “tonalidade” das atividades do espírito —, a habilidade que a vontade tem de tornar presente o ainda-não é exatamente oposta à lembrança. A lembrança tem uma afinidade natural com o pensamento; todo pensamento, como dissemos, é um re-pensar. Cadeias de pensamento surgem naturalmente da atividade de relembrar quase de forma automática, sem que haja qualquer interrupção. Essa é a razão pela qual a anamnesis, em Platão, pôde tornar-se uma hipótese tão plausível para a capacidade humana de aprender, e a razão pela qual Agostinho pôde equacionar de maneira tão convincente espírito e memória. A lembrança pode afetar a alma com um anseio pelo passado; mas essa nostalgia, embora possa conter dor e pesar, não perturba a serenidade do espírito, pois envolve coisas que estão além de nosso poder de mudar. O EGO volitivo, ao contrário, olhando para a frente, e não para trás, lida com coisas que estão em nosso poder, mas cuja realização não está absolutamente assegurada. A tensão daí resultante, em contraposição à excitação bastante estimulante que pode acompanhar as atividades de resolução de problemas, causa uma espécie de inquietação na alma que beira facilmente a confusão, uma mistura de medo e esperança que se torna insuportável quando se descobre que, na formulação de Agostinho, querer e ser capaz de realizar, velle e posse, não são a mesma coisa. A tensão pode ser superada somente pelo fazer, isto é, pela desistência da atividade espiritual como um todo; uma mudança do querer para o pensar produz apenas uma paralisação temporária da vontade, exatamente como uma mudança do pensar para o querer é sentida pelo EGO pensante como uma paralisação temporária da atividade do pensamento. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Para falar em termos de tonalidade — isto é, em termos do modo como o espírito afeta a alma e produz seus humores, independentemente dos acontecimentos externos, criando assim uma espécie de vida do espírito —, o humor predominante do EGO pensante é a serenidade, o simples prazer de uma atividade que nunca tem que superar a resistência da matéria. À medida que essa atividade está intimamente ligada à lembrança, seu humor inclina-se para a melancolia — segundo Kant e Aristóteles, o humor característico do filósofo. O humor predominante da Vontade é a tensão, que arruína a “tranquilidade do espírito”, a “animi tranquilitas”, de Leibniz, na qual, segundo ele, todos os filósofos sérios insistem [Op. cit., p. 110] e a qual foi por ele mesmo encontrada em cadeias de pensamento que provavam ser este o “melhor dos mundos possíveis”. Desse ângulo, a única tarefa que resta à Vontade é, na verdade, “querer não querer”, uma vez que todo ato voluntário só pode interferir na “harmonia universal” do mundo, em que “tudo o que é, visto da perspectiva do Todo, é o melhor”. [Ibidem, p. 122] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Assim, Leibniz, com uma consistência admirável, chega à conclusão de que o pecado de Judas não está em sua traição a Jesus, mas em seu suicídio: ao condenar-se, ele condenou implicitamente o todo da criação de Deus; ao odiar-se, ele odiou o Criador [Ibidem, pp. 42, 44, 76, 92, 98, 100]. Encontramos o mesmo pensamento, na sua versão mais radical, em uma das sentenças condenadas do Mestre Eckhart: “Tenha um homem cometido mil pecados mortais, se teve uma intenção correta, não deve desejar não os ter cometido” (Wenn jemand tausend Todsünden begangen hätte, dürfte er, wäre es recht um ihn bestellt, nicht wollen, sie nicht begangen zu haben”). [Citado por Walter Lehmann em sua Introdução para uma Antologia de Escritos Alemães, Meister Eckhart, Göttingen, 1919, sentença 15, p. 16.] Podemos nos permitir conjecturar que esta rejeição surpreendente do arrependimento por parte de dois pensadores cristãos, em Eckhart foi motivada por uma superabundância de fé que exigia, à maneira de Jesus, que o pecador perdoasse a si mesmo assim como se esperava que perdoasse aos outros, “sete vezes ao dia”, porque a alternativa seria declarar que teria sido melhor — não só para ele como também para toda a Criação — nunca ter nascido (“Que uma mó fosse pendurada em seu pescoço, e que fosse lançado ao mar”); enquanto, em Leibniz, podemos vê-la como uma vitória final do EGO pensante sobre o EGO volitivo, porque a vã tentativa que este último faz de querer retroativamente, quando bem-sucedida, poderia apenas resultar na aniquilação de tudo o que é. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Nenhum filósofo descreveu o EGO volitivo em seu confronto com o EGO pensante com maior simpatia, insight e significação para a história do pensamento do que Hegel. Temos aqui um assunto um tanto complexo, não somente pela terminologia esotérica e altamente idiossincrática de Hegel, mas também porque ele trata o problema todo no decorrer de suas especulações sobre o tempo, e não nas escassas, embora de modo algum insignificantes, passagens — na Fenomenologia do Espírito, na Filosofia do Direito, Enciclopédia e na Filosofia da História — que lidam diretamente com a Vontade. Tais passagens foram reunidas e interpretadas por Alexandre Koyré em um ensaio pouco conhecido e muito importante (publicado em 1934 sob o título enganador Hegel à Iéna) [O ensaio está agora disponível em Etudes d’Histoire de la Pensée Philosophique, Paris, 1961], dedicado aos textos fundamentais de Hegel sobre o tempo — do Jenenser Logik e Jenenser Realphilosophie da fase inicial à Fenomenologia, à Enciclopédia e aos vários manuscritos pertencentes à Filosofia da História. A tradução e os comentários de Koyré tornaram-se “a fonte e a base” da interpretação altamente influente da Fenomenologia feita por Alexandre Kojève [Agora disponível em inglês: Introduction to the Readings of Hegel, ed. Allan Bloom, Nova York, 1969, p. 134]. Acompanharei de perto, a seguir, a argumentação de Koyré. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
A tese central é de que a “maior originalidade” de Hegel está em sua “insistência no futuro, na primazia atribuída ao futuro em relação ao passado” [Op. cit., p. 177]. Isso não nos surpreenderia se não se referisse a Hegel. Por que um pensador do século XIX, tendo em comum com seus predecessores dos séculos XVII e XVIII e com seus contemporâneos a confiança no progresso, não haveria de chegar também à conclusão apropriada, atribuindo ao futuro a primazia sobre o passado? Afinal, o próprio Hegel disse que “todo mundo é filho de seu próprio tempo, e, portanto, a filosofia é seu tempo compreendido em pensamento”. Mas ele também disse, no mesmo contexto, que entender o que existe é a tarefa da filosofia, pois o que existe é razão, ou “o que é pensado é, e o que é existe somente à medida que é pensamento” (“Was gedacht ist, ist; und was ist, ist nur, insofern es Gedanke ist”) [Philosophy of Right, Preface; Encyclopedia, n° 465, 2ª edição]. E é nessa premissa que está baseada a mais importante e decisiva contribuição de Hegel. Pois Hegel é acima de tudo o primeiro pensador a conceber uma filosofia da história, isto é, do passado: reunido pelo olhar retrospectivo do EGO pensante e rememorativo, ele é “internalizado” (er-innert), torna-se parte inseparável do espírito através do “esforço do conceito” (“die Anstrengung des Begriffs”), e, desta maneira internalizadora, alcança a “reconciliação” entre Espírito e Mundo. Já houve maior triunfo do EGO pensante do que o representado neste panorama? Nessa retirada do mundo das aparências, o EGO pensante não tem mais que pagar o preço da “falta de atenção” e da alienação do mundo. Segundo Hegel, o espírito, por simples força de reflexão, pode assimilar para si — sugar para si, por assim dizer — certamente não todas as aparências, mas qualquer coisa que, nelas, tenha tido significado, considerando tudo o que não é assimilável como acidente irrelevante, sem significação para o curso da História ou para a linha do pensamento discursivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
A primazia do passado, entretanto — como Koyré descobriu —, desaparece inteiramente quando Hegel passa a discutir o Tempo, para ele, acima de tudo, “o tempo humano” [Op. cit., loc. cit], cujo fluxo o homem inicialmente, por assim dizer, experimenta sem pensar, como puro movimento, até que acontece de ele refletir sobre os acontecimentos exteriores. A atenção do espírito fica então dirigida essencialmente para o futuro, isto é, para o tempo que está no processo de vir em nossa direção (como indica, conforme já foi dito, o termo alemão Zukunft, vindo de zu kommen, semelhante ao francês avenir, cuja origem é à venir); e esse futuro antecipado nega o “presente permanente” do espírito, transformando-o em um “não-mais” antecipado. Nesse contexto, “a dimensão dominante do tempo é o futuro, que ganha prioridade sobre o passado”. “O Tempo encontra sua verdade no futuro, já que é o futuro que terminará e realizará o Ser. Mas o Ser, terminado e realizado, pertence como tal ao Passado.” [Ibidem, p. 177 e 185, nota] Essa reversão da sequência de tempo mais comum — passado-presente-futuro — é causada pela negação que o homem faz de seu presente: ele “diz não ao seu Agora”, criando assim seu próprio futuro [Ibidem, p. 188]. O próprio Hegel não menciona a Vontade nesse contexto, nem tampouco Koyré; mas parece óbvio que a faculdade que está por trás do espírito que nega não é o pensar, mas o querer, e que a descrição de Hegel do tempo experimentado humanamente relaciona-se à sequência de tempo adequada ao EGO volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
É adequada porque o EGO volitivo, quando produz seus projetos, vive de fato para o futuro. Nas famosas palavras de Hegel, a razão pela qual “o presente [o Agora] não pode resistir ao futuro” não é absolutamente a inexorabilidade com a qual cada hoje é seguido por um amanhã (pois esse amanhã, quando não projetado e dominado pela Vontade, poderia ser simplesmente uma repetição do que se passou antes — coisa que de fato acontece com frequência); o hoje é, na própria essência, ameaçado somente pela interferência do espírito que o nega e, através da Vontade, convoca o ainda-não que está ausente, cancelando espiritualmente o presente, ou melhor, considerando o presente como aquele espaço de tempo efêmero cuja essência é não ser: “O Agora é vazio […] ele se preenche no futuro. O futuro é sua realidade.” [Jenenser Logik, p. 204] Do ponto de vista do EGO volitivo, “o futuro está diretamente dentro do presente, pois nele está contido como seu fato negativo. O Agora é tanto o ser que desaparece quanto o não-ser [que ] […] se converte em Ser”. [Koyré, op. cit., p. 183, citando Hegel. Jenenser Realphilosophie, ed. Johannes Hoffmeister, Leipzig, 1932, vol. II, p. 10 e ss.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
À medida que o eu se identifica com o EGO volitivo — e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade —, ele existe em uma “transformação contínua de [seu próprio] futuro em um Agora; e para de ser no dia em que não há mais futuro, quando não há mais nada por vir [le jour où il n’y a plus d’avenir, où rien n’est plus à venir], quando tudo chegou e tudo está ‘realizado’” [Koyré, op. cit., p. 177]. Vista da perspectiva da Vontade, a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro; e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro. Essa perda, no entanto, coincide com a realização máxima da vida do indivíduo, que, em seu fim, tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro, se abre para a “tranquilidade do passado”, e, deste modo, para o exame, para a reflexão e para o olhar retrospectivo do EGO pensante em sua busca de significado. Assim, do ponto de vista do EGO pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e liberdade” [Platão, Republic, 329b-c] — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma, à paixão da vontade chamada “ambição”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Em outras palavras, o passado começa com o desaparecimento do futuro; em tal tranquilidade, o EGO pensante afirma-se. Mas isso só acontece quando tudo chega ao seu final, quando o Devir, em cujo processo o Ser se desdobra e desenvolve, é interrompido. Pois a “inexorabilidade é a base do Ser” [Koyré, op. cit., p. 166], é o preço pago pela Vida, assim como a morte, ou melhor, a antecipação da morte é o preço pago pela tranquilidade. E a inexorabilidade daquilo que vive não vem da contemplação do cosmo ou da história; não é o efeito de movimento externo — o movimento incessante das coisas naturais ou os altos e baixos incessantes dos destinos humanos; está localizada e é engendrada no espírito do homem. Aquilo que, em um pensamento existencial posterior, transformou-se na noção de autoprodução do espírito humano pode ser encontrado em Hegel como a “autoconstituição do Tempo” [Ibidem, p. 174]: o homem não é só temporal; ele é o Tempo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Em Hegel, o homem não se distingue das outras espécies animais por ser um animal rationale, mas por ser a única criatura viva que sabe de sua própria morte. É nesse ponto máximo da antecipação feita pelo EGO volitivo que o EGO pensante se constitui. Na antecipação da morte, os projetos da vontade tomam a aparência de um passado antecipado e, sendo assim, podem tornar-se objeto de reflexão; e é neste sentido que Hegel sustenta que somente o espírito que “não ignora a morte” capacita o homem para “dominar a morte”, “resistir a ela e preservar-se dentro dela” [Koyré, op. cit., p. 188, citando Phänomenologie des Geistes]. Para usar as palavras de Koyré: no momento em que o espírito se depara com o próprio fim, “o movimento incessante da dialética temporal é interrompido e o tempo ‘se preenche’; este tempo ‘preenchido’ cai natural e inteiramente no passado”, o que significa que o “futuro perdeu seu poder sobre ele” e ficou pronto para o presente permanente do EGO pensante. Assim, ocorre que “o verdadeiro Ser [do futuro] deve ser o Agora” [Koyré, op. cit., p. 183, citando Jenenser Realphilosophie]. Mas em Hegel este nunc stans não é mais temporal; é um nunc aeternitatis, já que a eternidade, para Hegel, é também a natureza quintessencial do Tempo, a “imagem de eternidade” platônica vista como “o eterno movimento do espírito” [Koyré, “Hegel à Iéna”, in op. cit., p. 188]. O próprio tempo é eterno na “união entre Presente, Futuro e Passado” [Koyré, op. cit., p. 185, citando Jenenser Realphilosophie]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Para simplificar ao máximo: se existe algo como a vida do espírito, isso se deve ao órgão do espírito próprio para o futuro e à “inquietude” daí resultante; se existe algo como a vida do espírito, isso se deve à morte que, prevista como um fim absoluto, paralisa a vontade e transforma o futuro em um passado antecipado; os projetos da vontade em objetos de pensamento; a expectativa da alma em uma lembrança antecipada. Assim resumida e supersimplificada, a doutrina de Hegel soa bem moderna; o primado do futuro, em suas especulações sobre o tempo, parece estar tão bem sintonizado com a fé dogmática que seu século tinha no Progresso; sua mudança do pensamento para a vontade, e depois de volta para o pensamento parece uma solução tão engenhosa para o problema que os filósofos modernos tinham para entrar em acordo com a tradição de uma maneira aceitável para a Idade Moderna, que é tentador encerrar as considerações sobre o constructo hegeliano encarando-o como contribuição autêntica aos problemas do EGO volitivo. Apesar disso, em suas especulações sobre o tempo, Hegel tem um predecessor estranho, para quem nada poderia ser mais alheio do que a noção de progresso; para quem nada poderia apresentar menos interesse do que descobrir uma lei que governasse os acontecimentos históricos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
“O insight a que a filosofia deve nos levar, então, é o de que o mundo real é como deveria ser.” [Ibidem, p. 36] E uma vez que, para Hegel, a filosofia diz respeito ao “que é verdadeiro eternamente, nem o Ontem nem o Amanhã, mas o Presente enquanto tal, o ‘Agora’ no sentido de uma presença absoluta” [Ibidem, p. 79. Tradução da autora; cf. Werke, Berlim, 1940, vol. IX, p. 98]; uma vez que o espírito, assim como é percebido pelo EGO pensante, é “o Agora enquanto tal”, a filosofia tem que apaziguar o conflito entre o EGO pensante e o EGO volitivo. Tem que unir as especulações sobre o tempo que fazem parte da perspectiva da Vontade e sua concentração no futuro com o Pensamento e sua perspectiva de um presente que dura. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
A tentativa está longe de ser bem-sucedida. Como observa Koyré nas frases que concluem seu ensaio, a noção hegeliana de um “sistema” se choca com a primazia que Hegel confere ao futuro. Este exige que o tempo nunca termine enquanto houver o homem sobre a Terra; ao passo que a filosofia no sentido hegeliano — a coruja de Minerva que inicia seu voo no crepúsculo — exige uma interrupção no tempo real, e não simplesmente a suspensão do tempo durante a atividade do EGO pensante. Em outras palavras, a filosofia de Hegel poderia reivindicar a verdade objetiva somente sob a condição de que a história estivesse factualmente no fim, que a humanidade não tivesse mais futuro, que nada que trouxesse algo de novo pudesse ainda ocorrer. E Koyré acrescenta: “É possível que Hegel acreditasse nisso […], até mesmo que acreditasse […] que essa condição essencial [para uma filosofia da história] já fosse uma realidade […] e que esta fosse a razão pela qual ele próprio foi capaz — fora capaz — de completá-la [114. Op. cit., p. 189]. (Essa é, de fato, a convicção de Kojève, para quem o sistema hegeliano é a verdade e, portanto, o fim definitivo da filosofia, bem como da história.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Tal movimento, no qual as noções retilínea e cíclica de tempo são conciliadas ou unidas, formando uma Espiral, não se baseia nem nas experiências do EGO pensante nem nas do EGO volitivo; é o movimento não experienciado do Espírito do Mundo que constitui o Geisterreich, “o domínio dos espíritos […], assumindo forma definida na existência [por meio de] uma sequência em que um se desprende do outro, soltando-o, e em que cada um toma de seu predecessor o império do mundo espiritual” [Ibidem, p. 808]. Essa é sem dúvida uma solução muito engenhosa para o problema da Vontade e é sua reconciliação com o pensamento puro. Mas tal solução é alcançada com prejuízo de ambos — da experiência do EGO pensante de um presente duradouro e da insistência do EGO volitivo na primazia do futuro. Em outras palavras, não é mais do que uma hipótese. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
É apropriado que se façam algumas observações técnicas, tendo em vista a renovação do interesse por Hegel nas últimas décadas, renovação em que tiveram papel alguns pensadores altamente qualificados. O engenho do movimento dialético triádico — de Tese para Antítese para Síntese — impressiona especialmente quando aplicado à noção moderna de Progresso. Embora o próprio Hegel acreditasse em uma interrupção no tempo, em um fim da história que permitisse ao espírito intuir e conceituar todo o ciclo do Devir, este movimento dialético, visto em si mesmo, parece assegurar um progresso infinito, à medida que o primeiro movimento de Tese para Antítese resulta em uma Síntese, a qual imediatamente estabelece uma nova Tese. Embora o movimento original não seja de forma alguma progressivo, mas gire para trás e retorne sobre si, o movimento de Tese para Tese se estabelece por trás desses ciclos e constitui uma linha retilínea de progresso. Querendo visualizar o tipo de movimento, teremos como resultado a seguinte figura: A vantagem desse esquema como um todo é que ele assegura o progresso e, sem quebrar o contínuo do tempo, pode ainda dar conta do inegável fato histórico da ascensão e queda das civilizações. A vantagem do elemento cíclico, em particular, é que ele nos permite ver cada fim como um novo começo: Ser e Nada “são a mesma coisa, a saber, Devir […]. Uma direção é desaparecimento: o Ser passa a Nada; mas o Nada é, do mesmo modo, o seu próprio oposto, uma transição para o Ser, isto é, Surgimento” [Hegel, Science of Logic, trad. W. H. Johnston e L. G. Struthers, Londres, Nova York, 1966, vol. I, p. 118]. Além disso, a própria infinitude do movimento, embora de alguma forma em conflito com outras passagens hegelianas, está em perfeita harmonia com o conceito de tempo do EGO volitivo e com a primazia que ele dá ao futuro sobre o presente e o passado. A Vontade, que não se subjuga à Razão e à sua necessidade de pensar, nega o presente (e o passado), mesmo quando o presente a confronta com a realização de seus próprios projetos. Isolada, a Vontade do homem “preferiria querer o Nada a não querer”, como observou Nietzsche [Toward a Genealogy of Morals (1887), nº 28]; e a noção de um progresso infinito implicitamente nega todo objetivo e admite fins somente como meios para burlar-se a si mesma [Heidegger, “Überwindung der Metaphysik”, op. cit., set. xxiii, p. 89]. Em outras palavras, o famoso poder de negação inerente à Vontade e concebido como o motor da História (não somente em Marx mas, portanto, já em Hegel) é uma força aniquilante que poderia resultar tanto em um processo de aniquilação permanente quanto em um Progresso Infinito. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Em minha discussão sobre o Pensamento, utilizei o termo “falácias metafísicas”, mas sem tentar refutá-las, como se fossem o simples resultado de erro lógico ou científico. Em vez disso, procurei demonstrar sua autenticidade, derivando-as das experiências reais do EGO pensante em seu conflito com o mundo das aparências. Como vimos, o EGO pensante retira-se temporariamente deste mundo, sem nunca chegar a deixá-lo de todo, porque está incorporado a um eu corpóreo, a uma aparência entre aparências. As dificuldades que cercam qualquer discussão sobre a Vontade têm uma semelhança óbvia com aquilo que consideramos verdadeiro nessas falácias, isto é, com o fato de que provavelmente são causadas pela natureza dessa própria faculdade. Enquanto a descoberta da razão e de suas peculiaridades coincidiu com a descoberta do espírito e com o início da filosofia, a faculdade da Vontade só se tornou manifesta muito mais tarde. A questão que nos irá orientar será, portanto, a seguinte: que experiências fizeram com que os homens tomassem consciência de que eram capazes de constituir volições? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
A falácia que subjaz a essas questões reside em uma identificação quase automática do espírito com o cérebro. É o espírito que determina a existência tanto dos objetos de uso quanto das coisas-pensamento; e assim como o espírito daquele que faz objetos de uso é um espírito de ferramenteiro — isto é, o espírito de um corpo dotado de mãos —, também o espírito que origina pensamentos e os reifica em coisas-pensamento ou ideias é o espírito de uma criatura dotada de um cérebro humano e de potência cerebral. O cérebro, a ferramenta do espírito, não está mais sujeito a mudanças operadas pelo desenvolvimento de novas faculdades espirituais do que a mão humana, pela invenção de novas ferramentas, ou pela mudança enorme e tangível que realizam em nosso meio ambiente. Mas o espírito do homem — seus interesses e suas faculdades — é afetado tanto pelas mudanças no mundo, cuja significação ele examina, quanto, e talvez de forma até mais decisiva, por suas próprias atividades. Todas estas têm natureza reflexiva — maior, como veremos, no caso das atividades do EGO volitivo — e, contudo, jamais poderiam funcionar bem sem a ferramenta imutável da potência cerebral, o mais precioso talento de que o corpo dotou o animal humano. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
Tais experiências não eram de modo algum ignoradas na Antiguidade grega. No volume anterior falei com algum detalhe sobre a descoberta socrática do dois-em-um, a que daríamos hoje o nome de “consciência”, e que tinha originalmente a função do que hoje chamamos de “consciência moral”. Vimos como esse dois-em-um, um simples fato da consciência, realizava-se e articulava-se no “diálogo sem som” que, desde Platão, temos chamado de “pensamento”. Esse diálogo em pensamento de mim comigo mesmo tem lugar somente no estar-só, em uma retirada do mundo das aparências em que habitualmente estamos junto com os outros e aparecemos como unidade para nós mesmos, bem como para os outros. Mas a interioridade do diálogo em pensamento que faz da filosofia a “atividade solitária” de Hegel (embora tenha ciência de si — o cogito me cogitare de Descartes, o Ich denke de Kant acompanhando silenciosamente tudo o que faço) não se refere tematicamente ao eu, mas sim às experiências e às questões que esse eu, uma aparência entre aparências, elege para serem investigadas. Esse exame meditativo de tudo o que é dado pode ser perturbado pelas necessidades da vida, pela presença de outros, por todos os tipos de assuntos urgentes. Mas nenhum dos fatores que interferem na atividade do espírito surge do próprio espírito, pois os dois-em-um são amigos e parceiros, e manter essa “harmonia” intacta está acima de tudo para o EGO pensante. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
Falei anteriormente da natureza reflexiva das atividades do espírito: o cogito me cogitare, o volo me velle (mesmo o juízo, a faculdade menos reflexiva das três, repercute, atua sobre si mesma). Veremos depois que essa reflexividade fica mais forte do que nunca no EGO volitivo; a questão é que todo “eu-quero” surge de uma inclinação natural para a liberdade, isto é, de uma reação natural dos homens livres quando subjugados. A vontade sempre se dirige a si mesma; quando a lei diz: “tu deves”, a vontade responde “tu deves querer o que diz a ordem” — e não a executar inadvertidamente. É então que tem início a disputa interna, pois a contravontade, despertada, tem semelhante poder de ordem. Logo, a razão pela qual “os que observam a Lei estão sob o peso da maldição” (Gálatas 3:10) não é somente o “eu-quero-e-não-posso”, mas é também o fato de que o “quero” é inevitavelmente rebatido por um “não-quero”, de modo que até mesmo quando a lei é obedecida e cumprida ainda reste uma resistência interna. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
A Vontade, que se divide, produzindo automaticamente sua própria contravontade, precisa ser curada para tornar-se de novo uma só. Como o pensamento, a vontade dividiu o um em dois-em-um, só que, no caso do EGO pensante, “curar-se” da divisão seria a pior coisa que poderia acontecer; poria fim completo ao pensamento. Ora, seria bastante tentador concluir que a misericórdia divina, a solução de Paulo para a desgraça da Vontade, na verdade elimina a Vontade, destituindo-a, por milagre, de sua contravontade. Mas não se trata mais de volições, já que a misericórdia não pode ser almejada; a salvação “não depende do querer ou do esforço do homem, mas da misericórdia de Deus”, e Ele “usa de misericórdia com quem quer, e endurece o coração de quem quer” (Romanos 9:16, 18). Além disso, assim como “veio a lei” não somente para tornar o pecado identificável, mas para “aumentar a perdição”, também a graça “abundou” onde o “pecado cresceu” — trata-se, de fato, de felix culpa, pois como poderiam os homens conhecer a glória se não tivessem contato com a desgraça? Como conheceríamos o dia se não houvesse a noite? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
Em suma, a vontade é impotente não por causa de algo externo que a impeça de ter êxito, mas porque se torna um obstáculo para si mesma. E onde não é um obstáculo, como em Jesus, ela ainda não existe. Para Paulo, a explicação é relativamente simples: o conflito se dá entre carne e espírito, e o problema é que o homem é tanto carnal quanto espiritual. A carne vai morrer, e, portanto, viver de acordo com a carne significa uma espécie de morte. A tarefa principal do espírito não é só governar os desejos e fazer com que a carne obedeça, mas também causar sua mortificação — crucificá-la “com suas paixões e desejos” (Gálatas 5:24), coisa que, na verdade, está além do poder humano. Vimos que, do ponto de vista do EGO pensante, era bastante natural uma certa suspeita em relação ao corpo. A carnalidade do homem, embora não necessariamente origem do pecado, interrompe a atividade pensante do espírito e oferece uma resistência ao diálogo sem som e veloz que o espírito mantém consigo mesmo, um intercâmbio cuja própria “doçura” está em uma espiritualidade na qual nenhum fator material interfere. Isso está muito longe da hostilidade agressiva ao corpo que encontramos em Paulo, uma hostilidade que, além disso, sem falar nos preconceitos contra a carne, surge da própria essência da Vontade. A despeito de sua origem espiritual, a vontade toma ciência de si somente quando supera a resistência; e a “carne”, no raciocínio de Paulo (mesmo posteriormente, quando é disfarçada em “inclinação”), torna-se a metáfora para a resistência interna. Assim, até mesmo nesse esquema simplista, a descoberta da Vontade já terá aberto a autêntica caixa de Pandora das questões irrespondíveis, que o próprio Paulo de modo algum ignorava e que a partir daí viriam a infestar de absurdos qualquer filosofia rigorosamente cristã. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]
Uma vez que a razão descobre essa região interna em que o homem enfrenta somente as “impressões” que as coisas externas deixam em seu espírito, em vez de enfrentar sua existência factual, sua tarefa está cumprida. O filósofo não é mais o pensador que examina qualquer coisa que lhe apareça no caminho, mas sim o homem que se educou para jamais “se voltar para as coisas externas”, onde quer que ele esteja. Epiteto dá um exemplo esclarecedor desta atitude. Não impede seu filósofo de ir aos jogos como qualquer um; mas, ao contrário da multidão “vulgar” dos outros espectadores, ele está ali “interessado” somente em si mesmo e em sua própria “felicidade”; força-se portanto a “querer que aconteça somente o que acontece de fato e que só ganhe aquele que de fato ganha” [The Manual, 23 e 33]. Esse afastamento da realidade enquanto ainda se está em meio a ela — em contraste com a retirada do EGO pensante para o estar-só do diálogo sem som de mim comigo mesmo, em que todo pensamento é um re-pensar por definição — tem consequências muito importantes. Significa, por exemplo, que quando alguém vai a algum lugar, não presta atenção a seu objetivo, mas só se interessa pela “própria atividade” de caminhar; ou “quando a deliberação está [unicamente] interessada no ato de deliberar, e não em obter aquilo que se planeja” [Discourses, livro II, cap. xvi]. Nos termos da parábola do jogo, é como se esses espectadores, olhando com olhos que não veem, fossem meras aparições fantasmagóricas no mundo das aparências. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
A única força que pode obstruir esse consentimento básico e ativo dado pela vontade é ela mesma. Assim, o critério para a conduta correta é o seguinte: “Queira estar satisfeito, tu contigo mesmo” (“theléson aresai autos seautó”). E Epiteto acrescenta: “Queira aparecer nobre diante do deus” (Theléson kalos phanénai tó Theó”) [Discourses, livro II, cap. xviii], sendo que o adendo é, na verdade, redundante, já que Epiteto não acredita em um Deus transcendente, mas sustenta que a alma é semelhante a Deus e que o deus está “dentro de ti, tu és um fragmento dele” [Ibidem, livro II, cap. viii]. O EGO volitivo acaba, então, não sendo menos dividido em dois do que o dois-em-um socrático do diálogo de pensamento de Platão. Mas, como vimos em Paulo, os dois no EGO volitivo estão longe de manter entre si um relacionamento harmonioso e amigável, embora em Epiteto sua relação francamente antagônica não submeta o eu aos extremos de desespero que tanto ouvimos na lamentação de Paulo. Epiteto caracteriza a relação entre os dois como uma permanente “luta” (agón), uma competição olímpica que exige uma suspeita sempre alerta de mim para comigo: “Em uma palavra: [o filósofo, que sempre olha para si para o bem ou para o mal] mantém a guarda contra si mesmo como a mantém contra seu próprio inimigo [hós echthron heautou], quando está à sua espera.” [The Manual, 51, 48] Basta relembrarmos o insight de Aristóteles (“todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma”) para reavaliarmos a distância percorrida pelo espírito humano desde a Antiguidade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
O eu do filósofo, governado pelo EGO volitivo, que lhe diz que só a própria vontade pode obstruir-lhe o caminho ou servir-lhe de limite, engaja-se em uma luta sem fim com a contravontade, engendrada precisamente por sua própria vontade. O preço pago pela onipotência da Vontade é muito alto; o pior que poderia acontecer ao dois-em-um, do ponto de vista do EGO pensante, a saber, “estar em desacordo consigo mesmo”, torna-se parte inseparável da condição humana. E o fato de que esse destino não é mais atribuído ao “homem-vil” de Aristóteles, mas, ao contrário, ao homem bom e sábio que aprendeu a arte de conduzir a própria vida, quaisquer que sejam as circunstâncias externas, pode levantar uma indagação: se a “cura” da desgraça humana não será pior do que a doença. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
A despeito disso, há, nessa empreitada lamentável, somente uma descoberta que nenhum argumento pode eliminar e que no mínimo explica por que o sentimento de onipotência, bem como o de liberdade humana, puderam se originar das experiências do EGO volitivo. Um assunto que abordamos marginalmente na discussão sobre Paulo, a saber, o de que toda obediência presume o poder de desobedecer, está bem no centro das considerações de Epiteto. O cerne da questão aí é o poder da Vontade para assentir ou dissentir, dizer Sim ou Não, pelo menos no que me diz respeito. Eis por que as coisas que, em sua existência pura — isto é, “impressões” de coisas exteriores —, dependem somente de mim estão também em meu poder; não só posso ter vontade de mudar o mundo (embora essa proposta seja de interesse duvidável para alguém totalmente alienado do mundo em que se encontra), como posso também negar realidade a tudo e qualquer coisa através de um “deixo-de-querer”. Esse poder deve ter tido algo de muito terrível, de realmente esmagador para o espírito humano, pois nunca houve um filósofo ou teólogo que, depois de ter prestado a devida atenção ao “Não” implícito em cada “Sim”, não tenha imediatamente exigido um consentimento enfático, aconselhando o homem, como fez Sêneca em frase citada com grande aprovação pelo Mestre Eckhart, a “aceitar todas as ocorrências como se ele mesmo as tivesse desejado e tivesse rogado por elas”. Certamente se enxergamos nesse acordo universal somente o último e mais profundo ressentimento do EGO volitivo em relação à sua impotência existencial no mundo como ele é factualmente, veremos aqui também apenas mais um argumento para o caráter ilusório da faculdade, uma confirmação final de que ela é “um conceito artificial”. Ao homem, nesse caso, teria sido dada uma faculdade realmente “monstruosa” (Agostinho), compelida por sua natureza, a exigir um poder que é capaz de exercer somente na região dominada pela ilusão da mera fantasia — na interioridade de um espírito que conseguiu separar-se de toda aparência exterior em sua busca incansável pela tranquilidade absoluta. E como recompensa final e irônica para tanto esforço, terá obtido um relacionamento desconfortavelmente íntimo com o “depósito das dores e o tesouro dos males”, nas palavras de Demócrito, ou com o “abismo”, que, segundo Agostinho, se esconde “no coração bom e no coração mau”. [Frag 149. Enarrationes in Psalmos, Patrologiae Latina, J.-P. Migne, Paris, 185466, vol. 37, CXXXIV, 16] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
A cisão se dá na própria vontade; o conflito não surge de uma cisão entre o espírito e a vontade e tampouco de uma cisão entre a carne e o espírito. Isso comprova-se pelo simples fato de que a Vontade fala sempre no modo imperativo: “Tu Deves Querer”, diz a Vontade a si mesma. Somente a própria Vontade tem poder para emitir semelhantes ordens, e “se a vontade fosse plena, não ordenaria que fosse vontade”. É da natureza da Vontade duplicar-se, e, neste sentido, onde quer que haja uma vontade, há sempre “duas vontades, nenhuma das quais é plena [tota], e o que falta a uma está presente na outra”. Por essa razão, são sempre necessárias duas vontades antagônicas para se chegar a ter vontade; “não é, portanto, monstruoso querer em parte e em parte não-querer” (“Et ideo sunt duae voluntates. quia una earun tota non est. […] Non igitur monstrum partim velle, partim nolle”). O problema é que é o mesmo EGO volitivo que simultaneamente quer e não quer: “Era eu o que queria, era eu o que não queria; eu mesmo. Não era um querer total nem tampouco um não-querer completo” — e isso não significa que eu tivesse “dois espíritos, um bom e o outro mau”, mas que o tumulto das duas vontades em um só espírito “dilacerava-me” [Ibidem, caps. ix e x]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Os maniqueístas explicavam o conflito assumindo a existência de duas naturezas contrárias, uma boa e a outra má. Mas “se houvesse tantas naturezas contrárias quantas vontades em luta dentro de nós, não haveria só duas, mas sim muitas naturezas”. Pois encontramos o mesmo conflito de vontades onde nenhuma escolha entre o bem e o mal está em jogo, onde ambas as vontades devem ser ditas más ou ambas ditas boas. Sempre que um homem tenta chegar a uma decisão, “encontra-se um espírito oscilando entre muitas vontades”. Suponha que alguém tente se decidir entre “ir ao circo ou ao teatro, se ambos forem no mesmo dia; ou a um terceiro lugar, roubar a casa de alguém […], ou a um quarto lugar, cometer adultério […], e todas estas vontades se realizassem no mesmo momento, todas igualmente desejadas, sendo coisas que não podem acontecer ao mesmo tempo”. Temos aqui quatro vontades, todas más e todas em conflito, “dilacerando” o EGO volitivo. E o mesmo se dá com vontades que são boas [Ibidem, cap. x]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Essa solução é evidentemente uma exigência, uma vez que sabemos que tais conflitos do EGO volitivo são resolvidos no final. Na verdade, como irei demonstrar adiante, aquilo que parece um deus ex machina nas Confissões deriva de uma teoria diferente da Vontade. Mas antes de nos voltarmos para Sobre a Trindade, pode ser útil uma interrupção para vermos como o mesmo problema é tratado em termos de consciência por um pensador moderno. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
John Stuart Mill, ao examinar a questão da vontade livre, sugere que “a confusão de ideias”, comum nessa área da filosofia, “tem de […] ser muito natural para o espírito humano”, e descreve — de maneira menos vívida e também menos precisa, mas com palavras estranhamente semelhantes àquelas que acabamos de ouvir — os conflitos a que está sujeito o EGO volitivo. É errado, insiste, descrevê-los como se ocorressem entre mim e alguma força estranha, a qual conquisto ou pela qual sou sobrepujado. [Pois] é óbvio que “eu” sou ambas as partes nesta disputa; o conflito se dá de mim para comigo mesmo […]. O que faz com que eu, ou se preferir, a minha Vontade, me identifique com um dos lados, em vez de com o outro, é que um dos “eus” representa um estado mais permanente dos meus sentimentos do que o outro. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
A autonomia da Vontade, sua completa independência das coisas como elas são, o que os escolásticos chamam “indiferença” — com o que querem dizer que a vontade não é determinada (indeterminata) por qualquer objeto que se lhe apresente — tem uma só limitação: não pode negar o Ser como um todo. A limitação do homem nunca fica tão evidente como no fato de que seu espírito, aí incluída a faculdade da vontade, pode ter como objeto de fé que Deus criou o Ser ex nihilo, do nada, sem contudo ser capaz de conceber o “nada”. Assim, a indiferença da Vontade está relacionada a elementos contraditórios — voluntas autem sola habet indifferentiam ad contradictoria; somente o EGO volitivo sabe que “uma decisão que de fato se tomou poderia não ter sido tomada, e uma outra escolha diferente da que de fato se fez poderia ter sido feita”. [Ibidem] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
É esse o teste pelo qual a liberdade é demonstrada, e nem o desejo nem o intelecto podem equiparar-se a ela: um objeto apresentado ao desejo pode apenas atrair ou repelir, e uma questão apresentada ao intelecto pode apenas ser negada ou afirmada. Mas a qualidade básica de nossa vontade é que podemos querer ou não-querer o objeto apresentado pela razão ou pelo desejo: “In potestate voluntatis nostrae est habere nolle et velle, quae sunt contraria, respectu unius obiecti” (“Está em poder de nossa vontade querer e não-querer, que são contrários, com relação ao mesmo objeto”) [Citado de Kahl, op. cit., pp. 86-87]. Ao dizer isso, Scotus não está negando, é claro, que duas volições sucessivas são necessárias para querer e não querer o mesmo objeto; mas sustenta, sim, que o EGO volitivo, ao realizar uma delas, sabe ser livre para realizar também o seu contrário: “A característica essencial de nossos atos volitivos é […] o poder de escolher entre coisas opostas e de revogar a escolha, uma vez que tenha sido feita (grifos nossos) [Bettoni, Duns Scotus, p. 76]. É precisamente desta liberdade, que se manifesta apenas como atividade espiritual — o poder de revogar desaparece uma vez que se execute a volição —, que falamos anteriormente em termos de uma fragmentação da vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
De qualquer forma, o preço da liberdade da Vontade é ser livre frente a cada objeto; o homem pode “odiar a Deus e encontrar satisfação em tal ódio”, pois algum prazer (deletactio) acompanha cada volição [Bonansea, op. cit., p. 89]. A liberdade da Vontade não consiste na seleção dos meios para um fim predeterminado — eudaimonia ou beatitudo ou bem-aventurança — precisamente porque esse fim já é dado pela natureza humana; consiste em afirmar ou negar ou odiar livremente o que quer que lhe apareça. É essa liberdade da vontade de tomar uma posição espiritualmente que coloca o homem à parte do resto da criação; sem isso, ele seria um animal esclarecido (bonum animal), na melhor das hipóteses, ou, como dissera Olivi anteriormente, uma bestia intellectualis, uma besta intelectual [Stadter, op. cit., p. 193]. O milagre do espírito humano é que, através da Vontade, ele pode transcender tudo (“voluntas transcendit omne creatum”, como disse Olivi) [Ibidem], e este é o sinal de que o homem foi criado à imagem de Deus. A noção bíblica de que Deus mostrou a ele Sua preferência, concedendo-lhe domínio sobre todas as obras de Suas mãos (Salmo 8), apenas o tornaria a mais alta de todas as coisas criadas; não o colocaria absolutamente apartado delas. Quando o EGO volitivo diz em sua mais alta manifestação “Amo: Volo ut sis”, “eu te amo, quero que sejas” — e não “quero ter-te” ou “quero mandar em ti” —, ele mostra-se capaz do mesmo amor com que Deus supostamente ama os homens, a quem criou somente porque queria que existissem e a quem Ele ama sem desejar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Era assim que a questão se apresentava aos cristãos; é por isso que os “cristãos […] dizem que Deus age contingentemente […], livre e contingentemente” [Wolter, op. cit., p. 80]. Mas é possível também, segundo Scotus, chegar à mesma avaliação da contingência por meio da filosofia. Afinal, fora o Filósofo que definira o contingente e o acidental (to symbébekos) como “aquilo que poderia também não ser” (endechomenon mé einai) [Aristóteles, Phisics, 256b10]; e de que o EGO volitivo tinha mais ciência em cada volição do que o fato de que poderia também não querer (experitur enim qui vult se posse non velle [Auer, op. cit., p. 169])? Como o homem poderia chegar a ser capaz de distinguir um ato livre de vontade de um desejo irresistível sem aquele teste interno infalível? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Embora essa noção de contingência corresponda à experiência do EGO volitivo — que no ato de volição sabe-se livre, não coagido por suas metas a agir ou não agir em sua busca —, ela parece ao mesmo tempo opor-se de modo insolúvel a uma outra experiência do espírito igualmente válida e ao senso comum, que nos diz que na verdade vivemos em um mundo factual de necessidade. Uma coisa pode ter acontecido bastante ao acaso, mas uma vez que tenha vindo a ser e que tenha assumido realidade, perde seu aspecto de contingência e apresenta-se a nós com o aspecto de necessidade. E mesmo quando fomos nós mesmos que efetuamos o evento, ou quando somos pelo menos uma das causas que contribuíram para ele — como no caso de nos casarmos ou cometermos um crime —, o simples fato existencial de que ele agora é como veio a ser (sejam quais forem as razões) resistirá provavelmente a todas as reflexões sobre sua original casualidade. Uma vez que o contingente aconteceu, não podemos mais desembaraçar os fios que o enredaram até que se tornasse um evento — como se pudesse ainda ser ou não ser. [Cf. o insight de Bergson citado no capítulo 1 do presente volume] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Se, por outro lado, o espírito, no desconforto da aparente contradição com que se depara, decide orientar-se exclusivamente por sua própria interioridade e entra em um estado de reflexão sobre o passado, decobrirá que também aí, factualmente, como resultado do vir-a-ser, já terá reordenado os processos em um padrão de necessidade, tendo-lhes eliminado o acaso. Essa é a condição necessária da presença existencial do EGO pensante ponderando sobre o significado daquilo que veio-a-ser e que agora é. Sem se assumir a priori algum tipo de sequência linear de eventos que tenham sido causados necessária e não contingentemente, não seria possível qualquer explicação que tivesse alguma coerência. O modo óbvio e mesmo o único possível de preparar e contar uma história é eliminar do que realmente aconteceu os elementos “acidentais”, cuja enumeração fiel, seja ela qual for, é impossível até mesmo para um cérebro computadorizado. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Intimamente ligada a essa doutrina da contingência está a solução, de simplicidade surpreendente, que Scotus dá ao velho problema da liberdade, uma vez que o problema surge da própria faculdade da vontade. Discutimos com algum detalhe a curiosa fragmentação da vontade, o fato de que a divisão dois-em-um, característica de todos os processos do espírito e descoberta primeiramente — por Sócrates e Platão — no processo do pensamento, transforma-se em uma luta fatal entre o “eu-quero” e o “não-quero” (entre velle e nolle), que devem, ambos, estar presentes para assegurar a liberdade: “Experitur enim qui vult se posse non velle.” “Aquele que experimenta uma volição tem também a experiência de ser capaz de não querer.” [Auer, op. cit., p. 152] Os escolásticos, seguindo a filosofia da Vontade de Paulo, o Apóstolo, e de Agostinho, concordavam que a graça divina era necessária para curar o infortúnio da Vontade. Scotus, talvez o mais pio dentre eles, discordava disso. Não é necessária qualquer intervenção divina para redimir o EGO volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Ela própria sabe muito bem como se curar das consequências do dom inestimável e, ainda assim, altamente questionável da liberdade humana; questionável porque o fato de a vontade ser livre e de não ser determinada ou limitada por qualquer objeto dado, exterior ou interiormente, não significa que o homem como homem goze de liberdade ilimitada. O modo normal que o homem tem de escapar à sua liberdade é simplesmente agir conforme as proposições da vontade: “Por exemplo, é possível para mim estar escrevendo neste momento, assim como me é possível não estar escrevendo; ainda assim, meu ato de escrever exclui o seu oposto. Por um ato da vontade posso me determinar a escrever, e por outro ato posso decidir não escrever, mas não posso tomar uma atitude simultânea em relação às duas coisas.” [Bettoni, Duns Scotus, p. 158] Em outras palavras, a vontade humana é indeterminada, aberta a contrários e, portanto, fragmentada somente à medida que sua única atividade consiste em formar volições; no momento em que para de querer e começa a agir conforme uma das proposições da vontade, ela perde sua liberdade — e o homem, o possuidor do EGO volitivo, fica tão feliz com a perda quanto ficou o asno de Buridan quando resolveu o problema da escolha entre os dois montes de feno, decidindo seguir seu instinto: parar de escolher e começar a comer. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Scotus compara essas atividades do espírito à “atividade” da luz, “que se renova permanentemente em sua própria fonte e conserva, assim, sua constância interna e simplesmente perdura” [Hoeres, op. cit., p. 191]. Porque o dom da vontade livre foi entregue a um ens creatum, este ser, para poder se salvar, é forçado a passar do activum para o factivum, da atividade pura para a fabricação de algo que tem seu fim naturalmente com a emergência do produto. A mudança é possível porque há um “eu-posso” inerente em cada “eu-quero”, e este “eu-posso” impõe limitações ao “eu-quero” que não estão fora da própria atividade da vontade. “Voluntas est potentia quia ipsa aliquid potest”, “a Vontade é um poder porque pode alcançar algo”, e essa potência, inerente à Vontade, é, com efeito, o “oposto da potentia passiva dos aristotélicos. É um ‘eu-posso’ poderoso […] e ativo […] que o EGO experimenta” [Stadter, op. cit., pp. 288-289]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Séculos mais tarde, Nietzsche, ainda pensando na mesma linha, suspeitou que foi a nossa “crença [cartesiana] no ‘EGO’ [pensante] […] como única realidade [que nos fez] […] atribuir realidade às coisas em geral” [The Will To Power, n° 487, p. 269]. Com efeito, nada se tornou mais característico das últimas fases da metafísica do que essa espécie de inversão de papéis na qual Nietzsche, com seus experimentos de pensamento de uma honestidade implacável, era um mestre. Mas esse jogo — ainda um jogo de pensamento, mais do que um jogo de linguagem — só se tornou possível quando, com o surgimento do idealismo alemão, romperam-se todas as pontes, “a não ser a ponte arco-íris de conceitos” [Ibidem, n° 419, p. 225], ou, para falar menos poeticamente, quando ficou claro para os filósofos que a “novidade de nossa posição contemporânea em filosofia baseia-se na convicção, que nenhuma época teve antes de nós, de que não possuímos a verdade. Todas as gerações anteriores ‘possuíam a verdade’, até mesmo os céticos” [Heidegger, in “Überwindung der Metaphysik”, op. cit., p. 83]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]
Provavelmente foi por pura coincidência que a geração amadurecida sob o impacto das revoluções do século XVIII tenha também tido o espírito formado pela liberação kantiana do pensamento, por sua resolução do antigo dilema entre o dogmatismo e o ceticismo, ao introduzir uma autocrítica da Razão. E como a revolução encorajou essa geração a transportar a noção de Progresso do avanço científico para o campo dos assuntos humanos e a compreendê-la como progresso da História, era mais do que natural que sua atenção se voltasse para a Vontade como fonte da ação e como o órgão do Futuro. O resultado foi que “a ideia de fazer da liberdade a parte essencial da filosofia emancipou o espírito humano em todas as suas relações”, emancipou o EGO pensante para a especulação livre nas cadeias de pensamento cujo fim último era “provar […] que não só o EGO é tudo, mas também, ao contrário, tudo é EGO” [Schelling, Of Human Freedom, p. 351]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]
Aquilo que aparecera de forma restrita e provisória no conceito personificado de Humanidade de Pascal começava agora a proliferar com uma incrível intensidade. As atividades dos homens, seja de pensar seja de agir, foram transformadas em atividades de conceitos personificados — que tornavam a filosofia tanto infinitamente mais difícil (a dificuldade principal em Hegel é seu teor de abstração, suas pistas somente ocasionais sobre os dados e fenômenos reais que ele tinha em mente) quanto incrivelmente mais viva. Era uma verdadeira orgia de pura especulação que, em contraste nítido com a razão crítica de Kant, estava repleta de dados históricos disfarçados de abstração radical. Uma vez que é o próprio conceito personificado que deve supostamente agir, é como se (nas palavras de Schelling) a filosofia “se erguesse a um ponto de vista mais alto”, a um “maior realismo” em que as simples coisas-pensamento — os noumena de Kant, produtos desmaterializados da reflexão do EGO pensante sobre dados reais (dados históricos em Hegel e mitológicos ou religiosos em Schelling) — dessem início à sua curiosa dança incorpórea e espectral, cujos passos e ritmos não se regulam nem se limitam por qualquer ideia da razão. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]
Esta é, então, minha justificativa para ter omitido de nossas considerações esse corpo de pensamento, o idealismo alemão, no qual a especulação pura no campo da metafísica talvez tenha alcançado seu clímax junto com o fim. Não quis atravessar a “ponte arco-íris de conceitos” talvez porque não seja suficientemente nostálgica; em todo caso, porque não acredito em um mundo, quer seja um mundo passado ou um futuro, em que o espírito humano, equipado para retirar-se do mundo das aparências, poderia ou deveria chegar a sentir-se confortavelmente em casa. Além disso, pelo menos nos casos de Nietzsche e de Heidegger, foi precisamente um confronto com a Vontade como faculdade humana, e não como categoria ontológica, que os instou originalmente a repudiar a faculdade e, então, a se converter e depositar sua confiança nessa casa fantasmagórica de conceitos personificados que foi tão obviamente “construída” e decorada pelo EGO pensante, em oposição ao volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]
Ele explica em detalhes em Para além do bem e do mal: Aquele que quer dá ordens a alguma coisa que nele obedece […]. O aspecto mais estranho deste fenômeno múltiplo a que chamamos de “Vontade” é que só tenhamos uma palavra para ele, e, em especial, que tenhamos só uma palavra para o fato de que somos, em cada caso particular, ao mesmo tempo quem dá as ordens e quem lhes obedece; ao obedecermos, experimentamos os sentimentos de coerção, ânsia, pressão, resistência, que normalmente começaram a se manifestar imediatamente após o ato de querer; por estarmos, entretanto, […] no comando […] experimentamos uma sensação de prazer, e isso ainda mais intensamente porque estamos habituados a superar a dicotomia pela noção do Eu, o EGO, e isso de um modo que tomamos como certa em nós a obediência, e que identificamos querer e executar, querer e agir [grifos nossos]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Aqui, a princípio, é como se estivéssemos lidando com uma metáfora perfeita, uma “semelhança perfeita de duas relações entre coisas completamente diferentes” [Ver O Pensar, cap. II]. A relação entre as ondas e o mar, do qual elas se erguem sem intenção ou meta, criando uma euforia enorme e sem propósito, assemelha-se e, portanto, ilumina o turbilhão que a Vontade provoca na morada da alma — parecendo estar sempre em busca de algo, até que se acalma, ainda que sem se extinguir, sempre pronta para um novo levante. A Vontade aprecia o querer assim como o oceano aprecia as ondas, pois “a não querer, o homem prefere ainda querer o nada” [Toward a Genealogy of Morals, n° 28]. Em um exame mais detido, entretanto, parece que algo bastante decisivo aconteceu àquilo que era originalmente uma metáfora homérica. Aquelas metáforas, como vimos, eram sempre irreversíveis: olhando para as tempestades no oceano, nos lembraríamos de nossas emoções interiores; mas aquelas emoções nada nos informavam sobre o mar. Na metáfora nietzschiana, as duas coisas diferentes que a metáfora reúne não apenas se assemelham; para Nietzsche, elas são idênticas; e o “segredo” do qual ele tanto se orgulha é precisamente seu conhecimento dessa identidade. Vontade e Onda são a mesma coisa, e pode-se mesmo ficar tentado a supor que as experiências do EGO volitivo fizeram com que Nietzsche descobrisse o turbilhão do mar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Em outras palavras, as aparências do mundo transformaram-se em um mero símbolo das experiências interiores, com a consequência de que a metáfora, originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o EGO pensante ou o volitivo e o mundo das aparências, entra em colapso. O colapso ocorreu não por causa de um peso superior dado aos “objetos” que confrontam a vida humana, mas sim por uma adesão sectária ao aparato da alma humana, cujas experiências são entendidas como tendo absoluta primazia. Há inúmeras passagens em Nietzsche que apontam para este antropomorfismo fundamental. Para citar apenas um exemplo: “Todas as pressuposições da teoria mecanicista [que em Nietzsche é idêntica às “hipóteses científicas”] — matéria, átomo, gravidade, pressão e força — não são ‘fatos-em-si’, mas sim interpretações feitas com o auxílio de ficções físicas.” [The Will to Power, n° 689, p. 368] A ciência moderna chegou a suspeitas estranhamente semelhantes nas reflexões especulativas sobre seus próprios resultados: os “astrofísicos [de hoje] […] devem considerar a possibilidade de que seu mundo exterior seja somente o nosso mundo interior virado ao avesso” (Lewis Mumford). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Na confusão de aforismos, observações e experimentos de pensamento que constituem a coletânea póstuma intitulada Vontade de potência, a importância desta última passagem que citei um tanto extensamente é difícil de ser definida. A julgar por sua evidência interna, tendo a pensá-la como a palavra final de Nietzsche sobre o assunto; e essa última palavra significa claramente um repúdio à Vontade e ao EGO volitivo, cujas experiências internas levaram os homens pensantes ao engano de supor que há algo como causa e efeito, intenção e meta, na realidade. O super-homem é aquele que supera essas falácias, aquele cujos insights são fortes o bastante para resistir às urgências da Vontade ou para alterar o seu rumo, redimi-la de todas as oscilações, acalmá-la, levando-a àquela imobilidade em que “desviar o olhar” é “a única negação” [The Gay Science, livro IV, n° 276, p. 223] porque nada resta senão almejar ser “aquele que diz sim”, bendizer tudo o que é por ser, “bendizer e dizer Amém”. [Thus Spoke Zarathustra, parte III, “Before Sunrise”, também “The Seven Seals (or: The Yes and Amen Song)”, in The Portable Nietzsche, pp. 276-279 e 340-343.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Em outras palavras, o Esquecimento do Ser (Seinsvergessenheit) pertence à própria natureza da relação entre Homem e Ser. Heidegger agora não se satisfaz mais em eliminar o EGO volitivo em favor do EGO pensante — sustentando, por exemplo, como faz ainda em Nietzsche, que a insistência da Vontade no futuro força o homem ao esquecimento do passado, que rouba do pensamento a sua atividade mais importante, que é an-denken, lembrança: “A Vontade nunca possuiu o começo, ela o deixou e o abandonou essencialmente através do esquecimento.” [Vol. II, p. 468] Agora ele dessubjetiviza o pensamento em si, rouba-o de seu Sujeito, o homem como ser pensante, e transforma-o em uma função do Ser, no qual “reside toda eficácia […], fluindo daí em direção ao ente [das Seiende]”, determinando assim o curso real do mundo. “O Pensamento, por sua vez, deixa-se chamar pelo Ser [que é o significado real do que acontece através dos entes] para dar expressão à verdade do Ser.” [“Brief über den ‘Humanismus”’, p. 53; trad. citada de Mehta, op. cit., p. 114] Essa reinterpretação da “reviravolta”, mais do que a reviravolta em si, determina o desenvolvimento inteiro da filosofia final de Heidegger. Contida de forma resumida na Brief über den Humanismus (Sobre o humanismo), que interpreta Ser e Tempo como uma antecipação necessária e uma preparação para a “reviravolta”, ela centra-se na noção de que pensar, a saber, “dizer a palavra não dita do Ser”, é o único autêntico “fazer” (Tun) do homem; é aí que a “História do Ser” (Seinsgeschichte), que transcende todos os atos meramente humanos e é superior a eles, se passa na verdade. Este pensar é recordação, já que ouve a voz do Ser nas expressões dos grandes filósofos do passado; mas o passado vem a ele da direção oposta, de modo que a “descida” (Abstieg) ao passado coincida com a “expectativa paciente e pensativa pela chegada do futuro, o avenant” [“Brief über den ‘Humanismus’”, pp. 46-47]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]
Nessa compreensão radical de Nietzsche, a Vontade é essencialmente destrutiva; e é a essa destrutividade que a reversão original de Heidegger se contrapõe. Seguindo essa interpretação, a própria natureza da tecnologia é a vontade de querer, ou seja, de sujeitar o mundo todo à sua dominação e jugo, cujo fim natural só pode ser a destruição total. A alternativa a esse jugo é “deixar-ser, e o deixar-ser como atividade é o pensamento que obedece ao chamado do Ser”. A disposição que permeia o deixar-ser do pensamento é o oposto da disposição de finalidade no querer; mais tarde, em sua reinterpretação da “reviravolta”, Heidegger a chama de “Gelassenheit”, uma serenidade que corresponde ao deixar — ser e que “nos prepara” para “um pensamento que não é uma vontade” [Gelassenheit, p. 33; Discourse on Thinking, p. 60]. Esse pensamento está “além da distinção entre atividade e passividade” porque está além do “domínio da Vontade”, isto é, além da categoria da causalidade, que Heidegger, concordando com Nietzsche, deriva da experiência que o EGO volitivo tem de produzir efeitos e, portanto, de uma ilusão produzida pela consciência. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]
A diferença entre a posição de Heidegger e a de seus predecessores reside no seguinte: o espírito do homem, chamado pelo Ser para transpor para a linguagem a verdade do Ser, está sujeito a uma História do Ser (Seinsgeschichte), e essa História determina se os homens respondem ao Ser em termos de querer ou em termos de pensar. É a História do Ser, funcionando por trás dos homens de ação, que, como o Espírito do Mundo de Hegel, determina os destinos humanos e revela-se ao EGO pensante caso este último consiga superar a vontade e realizar o deixar-ser. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]
Mas se isso se aplica à coincidência entre pensar e agradecer, dificilmente aplica-se à fusão entre pensar e agir. Em Heidegger, ela não é só a eliminação da separação sujeito-objeto com a finalidade de dessubjetivizar o EGO Cartesiano, mas é a fusão real das mudanças na “História do Ser” (Seinsgeschichte) com a atividade de pensamento dos pensadores. “A história do Ser” inspira e guia secretamente o que se passa na superfície, enquanto os pensadores, escondidos e protegidos por “Eles”, respondem ao Ser e o realizam. Aqui o conceito personificado, cuja existência fantasmagórica produziu o último grande avivamento da filosofia no Idealismo Alemão, torna-se completamente encarnado; há um Alguém que transforma em ação o significado oculto do Ser, originando no curso desastroso dos eventos uma contracorrente salutar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]
Tais pensamentos e re-pensamentos não são, é claro, enunciados científicos; não pretendem fornecer verdades demonstráveis ou teoremas experimentais que seus autores possam ter a esperança de traduzir em proposições suscetíveis de prova. São reflexões inspiradas por uma busca de significado e, portanto, não são menos especulativas do que outros produtos do EGO pensante. O próprio Einstein, em uma observação muito citada, traçou bastante claramente o limite entre enunciados cognitivos e proposições especulativas: “O fato mais incompreensível da natureza é o fato de a natureza ser compreensível.” Aqui podemos quase observar o modo como o EGO pensante interfere na atividade cognitiva, interrompe-a e paralisa-a com suas reflexões. Coloca-se “fora de ordem” com a atividade habitual dos cientistas, repercutindo sobre si mesmo, meditando sobre a ininteligibilidade fundamental daquilo que está fazendo — ininteligibilidade que permanece um enigma sobre o qual vale a pena pensar, embora não possa ser resolvido. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
Mas isso não nos interessa aqui. Quando dirigimos nossa atenção para os homens de ação esperando encontrar neles uma noção de liberdade purgada das perplexidades causadas nos espíritos humanos pela reflexividade das atividades do espírito — a inevitável repercussão do EGO volitivo sobre si mesmo —, esperávamos mais do que finalmente alcançamos. O abismo de pura espontaneidade, que nas lendas fundadoras é superado pelo hiato entre liberação e constituição da liberdade, foi coberto com o mecanismo típico da tradição ocidental (a única tradição em que a liberdade sempre foi a raison d’être de toda política), através do qual compreendemos o novo como uma reafirmação melhorada do velho. A liberdade só sobreviveu em sua integridade original na teoria política — isto é, na teoria concebida com a finalidade da ação política — apenas nas promessas utópicas e infundadas de um “reino de liberdade” final que, na sua versão marxista, em todo caso, significaria de fato “o fim de todas as coisas”, uma paz eterna na qual todas as atividades especificamente humanas desapareceriam. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]