Visto a partir daí, o modo ativo de vida é “laborioso”, o modo contemplativo é pura quietude; o modo de vida ativo dá-se em público, o contemplativo, no “deserto”; o modo ativo é devotado às “necessidades do próximo”, o modo contemplativo, à “visão de Deus”. (Duae sunt vitae, activa et contemplativa. Activa est in labore, contemplativa in requie. Activa in publico, contemplativa in deserto. Activa in necessitate proximi, contemplativa in visioni Dei.) Citei um autor medieval [Hugo de São Vítor] do século XII quase aleatoriamente porque a ideia de que a contemplação constitui o mais alto estado do espírito é tão antiga quanto a filosofia ocidental. A atividade do pensamento — segundo Platão, o diálogo sem som que cada um mantém consigo mesmo — serve apenas para abrir os olhos do espírito; e mesmo o nous aristotélico é um órgão para ver e contemplar a verdade. Em outras palavras, o pensamento visa à contemplação e nela termina, e a própria contemplação não é uma atividade, mas uma passividade; é o ponto em que as atividades espirituais entram em repouso. Segundo as tradições da Era Cristã, quando a filosofia se tornou serva da teologia, o pensamento passou a ser meditação, e a meditação passou novamente a terminar na contemplação, uma espécie de estado abençoado da ALMA em que o espírito não mais se esforçava por conhecer a verdade, mas por antecipar um estado futuro, recebendo-o temporariamente na intuição. (Descartes, de modo característico, ainda influenciado por essa tradição, chamou o tratado no qual se dispôs a demonstrar a existência de Deus de Méditations.) Com o surgimento da Era Moderna, o pensamento tornou-se principalmente um servo da ciência, do conhecimento organizado; e ainda que tenha ganho muito em atividade, segundo a convicção crucial da modernidade pela qual só posso conhecer o que eu mesmo produzo, foi a matemática, a ciência não empírica por excelência, em que o espírito parece lidar apenas consigo mesmo, que passou a ser a ciência das ciências, fornecendo a chave para as leis da natureza e do universo que se encontram ocultas pelas aparências. Se era um axioma para Platão que o olho invisível da ALMA era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento, tornou-se axiomático para Descartes — durante a famosa noite de sua “revelação” — que havia “um acordo fundamental entre as leis da natureza [que estão ocultas pelas aparências e por percepções sensoriais enganosas] e as leis da matemática”; [André Bridoux, Descartes: Oeuvres et Lettres, Pléiade, Paris, 1937, Introduction, p. viii. Cf. Galileu: “les mathématiques sont la langue dans laquelle est écrit l’univers”, p. xiii. [as matemáticas são a língua na qual o Universo está escrito]] ou seja, entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera “semblância”. E ele acreditava realmente que com esse tipo de pensamento — que Hobbes denominava “cálculo de consequências” — poderia produzir conhecimento seguro sobre a existência de Deus, da natureza da ALMA e de outros assuntos do gênero. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand, “razão” e “intelecto” (e não “entendimento”, o que me parece uma tradução equivocada; Kant usava o alemão Verstand para traduzir o latim intellectus, e, embora Verstand seja o substantivo de verstehen, o “entendimento” das traduções usuais não tem nenhuma das conotações inerentes ao alemão das Verstehen) é crucial para nossa empreitada. Kant traçou essa distinção entre as duas faculdades espirituais após haver descoberto o “escândalo da razão”, ou seja, o fato de que nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais, no entanto, ele mesmo não se pode impedir de pensar. Para ele, esses assuntos — aqueles dos quais apenas o pensamento se ocupa — restringiam-se ao que agora chamamos habitualmente de as “questões últimas” de Deus, da liberdade e da imortalidade. Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões, e embora Kant ainda acreditasse que “nunca houve uma ALMA honesta que tenha suportado pensar que tudo termina com a morte” [Werke, vol. I, p. 989], ele também estava bastante consciente de que a “necessidade urgente” da razão não só é diferente, mas é “mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento” [“Prolegomena”, Werke, vol. III, p. 245]. Assim, a distinção entre as duas faculdades, razão e intelecto, coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no segundo. Embora houvesse insistido nessa distinção, Kant estava ainda tão fortemente tolhido pelo enorme peso da tradição metafísica que não pôde afastar-se de seu tema tradicional, ou seja, daqueles tópicos que se podiam provar incognoscíveis; e embora justificasse a necessidade de a razão pensar além dos limites do que pode ser conhecido, permaneceu inconsciente ao fato de a necessidade humana de reflexão acompanhar quase tudo o que acontece ao homem, tanto as coisas que conhece como as que nunca poderá conhecer. Por tê-la justificado unicamente em termos dessas questões últimas, Kant não se deu conta inteiramente da medida em que havia liberado a razão, a habilidade de pensar. Afirmava, defensivamente, que havia “achado necessário negar o conhecimento […] para abrir espaço para a fé” [Critique of Pure Reason, Bxxx]. Mas não abriu espaço para a fé, e sim para o pensamento, assim como não “negou o conhecimento”, mas separou conhecimento de pensamento. Nas notas de suas lições sobre a metafísica, escreveu: “O propósito da metafísica […] é estender, embora apenas negativamente, nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado aos sentidos; isto é, eliminar os obstáculos que a razão cria para si própria” (grifos nossos) [Kant’s handschriftlicher Nachlass, vol. V, Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 48-49]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]
As dificuldades são, contudo, muito mais do que meramente terminológicas. Elas estão intimamente ligadas às crenças problemáticas que mantemos com referência à nossa vida psíquica e à relação entre corpo e ALMA. De fato, inclinamo-nos a concordar em que nenhuma parte do interior de nosso corpo jamais aparece autenticamente, por si mesma; mas, se falamos de uma vida interior que se expressa em aparências exteriores, referimo-nos à vida da ALMA; a relação interior-exterior, verdadeira para nossos corpos, não é verdadeira para nossas almas, mesmo que falemos de nossa vida psíquica e de sua localização “interna” a nós por meio de metáforas obviamente retiradas de informações e experiências corporais. Além do mais, o mesmo emprego de metáforas caracteriza nossa linguagem conceitual, própria para tornar manifesta a vida do espírito. As palavras que usamos em linguagem estritamente filosófica também são invariavelmente derivadas de expressões originalmente relacionadas com o mundo tal como ele é dado aos nossos cinco sentidos, de cuja experiência elas são, então, como registrou Locke, “transferidas” — metapherein, transportadas — “para significações mais abstrusas, passando a representar ideias que não chegam ao conhecimento de nossos sentidos”. Só por meio de tal transferência poderiam os homens “conceber aquelas operações que experimentaram em si mesmos e que não aparecem externamente aos sentidos” [Of Human Understanding, livro III, cap. 1, nº 5]. Locke apoia-se aqui no velho pressuposto tácito da identidade entre ALMA e espírito segundo o qual ambos opõem-se ao corpo em virtude da invisibilidade que os caracteriza. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
Se olharmos mais de perto, entretanto, verificamos que o que é verdadeiro para o espírito, a saber, que a linguagem metafórica é a única maneira que ele tem de “aparecer externamente para os sentidos” — mesmo essa atividade muda, que não aparece, já constitui uma espécie de discurso, o diálogo silencioso de mim comigo mesmo —, não é verdadeiro para a vida da ALMA. O discurso metafórico conceitual é, de fato, adequado para a atividade do pensamento, para as operações do nosso espírito; mas a vida da ALMA, em sua enorme intensidade, é muito melhor expressa em um olhar, em um som, em um gesto, do que em um discurso. O que fica manifesto quando falamos de experiências psíquicas nunca é a própria experiência, mas o que quer que pensemos dela quando sobre ela refletimos. Diversamente dos pensamentos e das ideias, os sentimentos, as paixões e as emoções têm a mesma dificuldade dos nossos órgãos interiores para se tornar parte essencial do mundo das aparências. O que aparece no mundo externo além dos sinais físicos é apenas o que deles fazemos por meio do pensamento. Toda demonstração de raiva distinta da raiva que sinto já contém uma reflexão que dá à emoção a forma altamente individualizada, significativa para todos os fenômenos de superfície. Demonstrar raiva é uma forma de autoapresentação: eu decido o que deve aparecer. Em outras palavras, as emoções que sinto não são mais apropriadas para ser exibidas, em seu estado não adulterado, do que os órgãos interiores pelos quais vivemos. É verdade que eu jamais poderei transformar as emoções em aparências se elas não me impelissem a isso e se eu não as sentisse como sinto outras sensações que me mantêm cônscio do processo vital interior. Mas o modo como elas se manifestam sem a intervenção da reflexão e a transferência para a linguagem — pelo olhar, pelo gesto, pelo som inarticulado — não é diferente da maneira pela qual as espécies animais superiores comunicam emoções similares entre si ou para nós. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
Nossas atividades espirituais, ao contrário, são concebidas em palavras antes mesmo de ser comunicadas, mas a fala é própria para ser ouvida e as palavras são próprias para ser compreendidas por outros que também têm a habilidade de falar, assim como uma criatura dotada do sentido da visão é própria para ver e ser vista. É inconcebível pensamento sem discurso, “pensamento e discurso antecipam um ao outro. Continuamente um toma o lugar do outro” [Merleau-Ponty, Signs, introdução, p. 17]; realmente contam um com o outro. E embora a capacidade discursiva possa ser fisicamente localizada com melhor precisão do que muitas emoções — amor e ódio, vergonha e inveja —, seu locus não é um “órgão” e ela não tem nenhuma das propriedades estritamente funcionais tão características de todo o processo orgânico da vida. É verdade que todas as atividades espirituais retiram-se do mundo das aparências, mas essa retirada não se dá em direção a um interior, seja ele do eu, seja da ALMA. O pensamento, e a linguagem conceitual que o acompanha, necessita — à medida que ocorre em e é pronunciado por um ser que se sente em casa no mundo das aparências — de metáforas que lhe possibilitem preencher a lacuna entre um mundo dado à experiência sensorial e um domínio em que tais apreensões imediatas de evidência não podem existir. Mas as nossas experiências de ALMA são de tal modo corporalmente limitadas, que falar de uma “vida interna” da ALMA é tão pouco metafórico quanto falar de um sentido interno graças ao qual temos claras sensações sobre o funcionamento ou o não funcionamento dos órgãos interiores. É óbvio que uma criatura privada de espírito não pode viver nada semelhante a uma experiência de identidade pessoal; ela está completamente à mercê de seu processo vital interno, de seus humores e emoções, cuja mudança contínua não é de modo algum diferente das contínuas transformações de nossos órgãos corporais. Toda emoção é uma experiência somática; meu coração dói quando estou magoado, aquece quando sinto simpatia, abre-se nos raros momentos em que o amor e a alegria me dominam, e sensações físicas similares apoderam-se de mim junto com a raiva, o ódio, a inveja e outros afetos. A linguagem da ALMA em seu estágio meramente expressivo, anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento, não é metafórica; ela não se afasta dos sentidos, nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas. Merleau-Ponty, que eu saiba, o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana, mas que tentou firmemente dar início a uma “filosofia da carne”, confundiu-se ainda com a antiga identificação entre espírito e ALMA quando definiu “o espírito como o outro lado do corpo”, já que “há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre eles” [The Visible and the Invisible, p. 259]. Precisamente a ausência de tais quiasmas ou conexões é o enigma principal dos fenômenos espirituais, e o próprio Merleau-Ponty, em outro contexto, reconheceu essa ausência com bastante clareza. O pensamento, escreve ele, “é ‘fundamental’ porque não está fundado em nada, mas não fundamental porque com ele não chegamos a um fundamento no qual devemos nos basear e ali permanecer. Por princípio, o pensamento fundamental não tem fundo. Ele é, se se quiser, um abismo” [Signs, p. 21]. Mas o que é verdadeiro para o espírito não é verdadeiro para a ALMA, e vice-versa. A ALMA, embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser, não é desprovida de fundo; ela realmente “transborda” do corpo; “ultrapassa seus limites, esconde-se nele — e ao mesmo tempo precisa dele, termina nele, está ancorada nele” [The Visible and the Invisible, p. 259]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
A propósito, essas ideias sobre o sempre difícil problema das relações corpo-alma são muito antigas. O De Anima de Aristóteles está repleto de tantalizadoras referências a fenômenos psíquicos e às suas estritas interconexões com o corpo, em contraste com a relação, ou melhor, a não-relação entre corpo e espírito. Discutindo tais temas de um modo incerto e peculiar, Aristóteles declara: “[…] parece que não há caso em que a ALMA possa atuar ou ser atuada sem o corpo; verifiquem-se os exemplos de cólera, coragem, apetite e sensação em geral. [Estar ativo sem envolver o corpo] parece ser antes uma propriedade do espírito [noein]. Mas se o espírito [noein] é também uma espécie de imaginação [phantasia], ou não é possível sem a imaginação, ele [noein] também não poderá ser sem o corpo.” [De Anima, 403a5-10] E, mais adiante, resumindo: “Nada é evidente sobre o espírito [nous] e a faculdade teórica, mas ele parece ser um tipo diferente de ALMA, e só esse tipo pode ser separado [do corpo], como o eterno é separável do perecível.” [Ibidem, 413b24ss] E em um dos tratados biológicos, sugere que a ALMA — sua parte vegetativa, bem como suas partes nutritiva e sensitiva — “veio a ser no embrião, não existindo previamente fora dele, mas o nous entrou na ALMA vindo de fora, garantindo assim ao homem um tipo de atividade sem conexão com as atividades do corpo” [De generatione animalium, II, 3, 736b5-29, citado em Lobkowicz, op. cit., p. 24]. Em outras palavras, não há sensações que correspondam às atividades espirituais; e as sensações da psique, da ALMA, são realmente sentimentos que experimentamos como nossos órgãos corporais. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
Além do impulso de autoexposição, pelo qual as coisas vivas se acomodam a um mundo de aparências, os homens também apresentam-se por feitos e palavras, e, assim, indicam como querem aparecer, o que, em sua opinião, deve ser e não deve ser visto. Esse elemento de escolha deliberada sobre o que mostrar e o que ocultar parece ser especificamente humano. Até certo ponto podemos escolher como aparecer para os outros; e essa aparência não é de forma alguma a manifestação exterior de uma disposição interna; se fosse, todos nós provavelmente agiríamos e falaríamos do mesmo modo. Também aqui devemos a Aristóteles as distinções cruciais. “O que é proferido”, diz ele, “são símbolos de afecções da ALMA, e o que é escrito são símbolos de palavras faladas. Como a escrita, também a fala não é a mesma para todos. Entretanto aquilo de que estas [a escrita e a fala] são símbolos, as afecções [pathé/mata] da ALMA, são as mesmas para todos.” Essas afecções são “naturalmente” expressas por “sons inarticulados [que] também revelam algo, como, por exemplo, o que é produzido pelos animais”. Distinção e individuação ocorrem no discurso, no uso de verbos e substantivos, e esses não são produtos ou “símbolos” da ALMA, mas do espírito: “Os substantivos e os verbos assemelham-se [eoiken] […] aos pensamentos [noémasin]” (grifos nossos) [De Interpretatione, 16a3-13]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
A monótona mesmice e a feiura penetrante altamente características das descobertas da moderna psicologia — em contraste tão óbvio com a enorme variedade e riqueza da conduta humana pública — dão testemunho da diferença radical entre o interior e o exterior do corpo humano. As paixões e emoções de nossa ALMA não estão apenas restritas ao corpo, mas parecem ter as mesmas funções de sustentação da vida e da preservação de nossos órgãos internos, com os quais compartilham a circunstância de que apenas a desordem e a anormalidade podem individualizá-los. Sem o impulso sexual, que se origina em nossos órgãos reprodutivos, o amor não seria possível; mas enquanto o impulso é sempre o mesmo, como é grande a variedade das aparências reais do amor! Decerto é possível compreender o amor como a sublimação do sexo; mas isso apenas quando se pensa que não há nada a ser compreendido como sexo sem amor; e que nem mesmo a seleção de um parceiro sexual seria possível sem a intervenção do espírito, ou seja, sem uma escolha deliberada entre o que apraz e o que não apraz. De forma similar, o medo é uma emoção indispensável à sobrevivência; ele indica perigo e sem esse sentido de advertência nenhuma coisa viva poderia durar muito tempo. O homem corajoso não é aquele cuja ALMA carece dessa emoção, ou que a pode superar de uma vez por todas; mas aquele que decidiu que não a quer demonstrar. A coragem pode tornar-se então uma segunda natureza ou um hábito, mas não no sentido do destemor substituir o medo, como se também ela pudesse tornar-se uma emoção. Tais escolhas são determinadas por vários fatores; muitas delas são determinadas pela cultura em que nascemos — são feitas porque queremos agradar aos outros. Mas há também escolhas que não estão inspiradas em nosso ambiente; podemos fazê-las porque queremos agradar a nós mesmos ou porque queremos estabelecer um exemplo, isto é, persuadir os demais a ter prazer com o que nos dá prazer. Quaisquer que sejam os motivos, o sucesso e o fracasso da iniciativa de autoapresentação dependem da consistência e da duração da imagem assim apresentada ao mundo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]
O ego pensante é pura atividade e, portanto, não tem idade, sexo ou qualidades, e não tem uma história de vida. Quando sugeriram que escrevesse sua autobiografia, Étienne Gilson respondeu: “Um homem de 75 anos deveria ter muitas coisas a dizer sobre seu passado, mas […] se ele viveu apenas como filósofo, percebe imediatamente que não tem nenhum passado.” [The Philosopher and Theology, Nova York, 1962, p. 7. No mesmo espírito, Heidegger costumava contar, na sala de aula, a biografia de Aristóteles. “Aristóteles”, ele dizia, “nasceu, trabalhou [passou a vida pensando] e morreu.”] Pois o ego pensante não é o eu. Há uma observação incidental em Tomás de Aquino — uma das de que tanto dependemos em nossa pesquisa — que soa de forma misteriosa, a não ser quando se está consciente dessa distinção entre o ego pensante e o eu: “Minha ALMA [em Tomás, o órgão do pensamento] não sou eu; e se apenas as almas forem salvas, nem eu nem homem algum estará salvo.” [Em seu Commentary a I Corinthians 15] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
Em Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik (1766), Kant sublinha a “imaterialidade” do mundus intelligibilis, o mundo em que se move o ego pensante, em contraste com a “inércia e a constância” da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências. Nesse contexto, ele distingue a “noção que a ALMA do homem tem de si mesma como espírito [Geist], por meio de uma intuição imaterial, e a consciência por meio da qual ela se apresenta como homem, utilizando-se de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais. É sempre, portanto, o mesmo sujeito que é membro tanto do mundo visível quanto do mundo invisível, mas não a mesma pessoa, já que […] o que como espírito penso não é lembrado por mim como homem e, ao contrário, meu estado real como homem não participa da noção que tenho de mim como espírito”. E, em uma estranha nota de rodapé, Kant fala de uma “certa dupla personalidade que é própria da ALMA, mesmo nesta vida”; ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo, “quando os sentidos externos encontram-se em total repouso”. Ele suspeita de que as ideias, durante o sono, “podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as ideias em estado de vigília”, precisamente porque “o homem, em tais ocasiões, não é sensível ao seu corpo”. E não recordamos nada dessas ideias quando despertamos. Os sonhos são algo ainda diferente; eles “não são daqui. Pois, nesse caso, o homem não adormece completamente […], e entrelaça as ações de seu espírito com as impressões de seus sentidos exteriores” [A última e supostamente a melhor tradução para o inglês, feita por John Manolesco, apareceu sob o título de Dreams of a Spirit Seer, and Other Writings, Nova York, 1969. Eu mesma traduzi a passagem do alemão, in Werke, vol. I. pp. 946-951.]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]
De fato, nenhuma dessas descobertas, ou melhor, redescobertas, foi em si mesma de grande relevância para Descartes. Seu interesse principal era encontrar algo — o ego pensante ou, em suas próprias palavras, “la chose pensante”, que ele identificava à ALMA — cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita, para além das ilusões da percepção sensorial. Mesmo o poder de um Dieu trompeur onipotente não seria capaz de abalar a certeza de uma consciência que abandonou toda a experiência sensível. Embora tudo o que seja dado possa ser sonho e ilusão, o sonhador, quando concorda em não exigir realidade do sonho, deve ser real. Assim, “Je pense, donc je suis”, “Penso, logo existo”. Por um lado, era tão forte a experiência da própria atividade de pensar, e, por outro, tão apaixonado o desejo de encontrar certeza e algum tipo de permanência duradoura depois que a nova ciência descobriu “la terre mouvante” (a areia movediça que constitui o próprio solo sobre o qual nos pomos de pé), que nunca lhe ocorreu que nenhuma cogitatio e nenhum cogito me cogitare — nenhuma consciência de um eu ativo que suspendeu toda a fé na realidade de seus objetos intencionais — poderia convencê-lo de sua própria realidade, de que ele teria realmente nascido em um deserto, sem um corpo e sem os sentidos necessários para perceber coisas “materiais”; e sem outras criaturas que lhe assegurassem que o que ele percebia também era percebido por elas. A res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem corpo, sem sentidos e abandonada, nem sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sonhos. O que Merleau-Ponty tinha a dizer contra Descartes, disse-o de modo brilhante e correto: “Reduzir a percepção ao pensamento de perceber […] é fazer um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais onerosos do que a perda pela qual eles devem nos indenizar; pois é […] passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o ‘há’ do mundo.” [The Visible and the Invisible, pp. 36-37] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]
Talvez seja por essa mesma razão que Kant equaciona o que aqui chamamos de significado com propósito e até com intenção (Zweck e Absicht): a “mais elevada unidade formal, a que repousa unicamente sobre conceitos da razão, é a unidade das coisas com um propósito. O interesse especulativo da razão torna necessário encarar toda a ordem do mundo como se ela tivesse se originado na [intenção] de uma razão suprema”. [Ibidem, B714] Consequentemente, a razão persegue fins específicos e possui intenções específicas quando se serve de suas ideias; é a necessidade da razão humana e seu interesse por Deus, pela liberdade e pela imortalidade que fazem os homens pensar. Não obstante, algumas páginas depois, Kant irá admitir que o “interesse meramente especulativo da razão” com relação aos três objetos principais do pensamento — “a liberdade da vontade, a imortalidade da ALMA e a existência de Deus” — “é muito pequeno; e apenas por causa dele dificilmente nos daríamos ao trabalho das investigações transcendentais […], já que quaisquer que fossem as descobertas sobre esses temas, não seria possível que delas extraíssemos alguma utilidade, algum uso in concreto”. [Ibidem, B826] Mas não precisamos ir buscar pequenas contradições na obra desse grande pensador. Bem no meio das passagens anteriormente citadas está a sentença que apresenta o maior contraste possível com relação à própria equação que ele faz entre razão e finalidade: “A razão pura não se ocupa de nada a não ser de si mesma. Ela não pode ter qualquer outra vocação.” [Ibidem, B708] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]
Denominei essas atividades espirituais de básicas porque elas são autônomas; cada uma delas obedece às leis inerentes à própria atividade, embora todas elas dependam de uma certa quietude das paixões que movem a ALMA, daquela “tranquilidade desapaixonada” (“leidenschaftslose Stille”) que Hegel atribuiu à “cognição meramente pensante” [Science of Logic, prefácio à 2ª edição]. Uma vez que é sempre a mesma pessoa cujo espírito pensa, quer e julga, a natureza autônoma dessas atividades produz grandes dificuldades. A incapacidade da razão para mobilizar a vontade, mais o fato de que o pensamento só pode “compreender” o que já é passado, sem removê-lo ou “rejuvenescê-lo” — “a coruja de Minerva só começa o seu voo quando cai o crepúsculo” [Philosophy of Right, prefácio] —, deu origem a várias doutrinas que afirmam a impotência do espírito e a força do irracional, em suma, deu origem ao famoso pronunciamento de Hume segundo o qual “a Razão é e deve ser somente a escrava das paixões”; isto é, levou a uma inversão bastante ingênua da noção platônica de reinado incontestável da razão no domínio da ALMA. O que é notável, em todas essas teorias e doutrinas, o monismo implícito, a suposição de que por trás da óbvia multiplicidade das aparências do mundo e, de modo mais pertinente ainda para o nosso contexto, por trás da óbvia pluralidade das faculdades e das capacidades humanas, deve haver uma unidade — o velho hen pan, “o todo é um” —, uma única origem ou um único soberano. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
A autonomia das atividades espirituais, além disso, implica também que essas atividades não são condicionadas; nenhuma das condições da vida ou do mundo lhes é diretamente correspondente. Pois a “tranquilidade desapaixonada” da ALMA não é, propriamente falando, uma condição; a mera tranquilidade não apenas jamais produz a atividade espiritual, a premência de pensar, como também a “necessidade da razão”, na maior parte das vezes, silencia as paixões, e não o contrário. É certo que os objetos do meu pensar, querer ou julgar, aquilo de que o espírito se ocupa, são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo; mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo, quer pela minha vida no mundo. Os homens, embora totalmente condicionados existencialmente — limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a morte, submetidos ao trabalho para viver, levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes —, podem espiritualmente transcender todas essas condições, mas só espiritualmente; jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade. Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados; podem querer o impossível, como, por exemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é, especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível. E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade — como de fato não há, em nosso mundo, oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer —, os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem, em última instância, da vida do espírito. Em suma, dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados e “não nos dotam diretamente com o poder de agir” (Heidegger). A ausência de pensamento é realmente um poderoso fator nos assuntos humanos; estatisticamente, é o mais poderoso deles, não apenas na conduta de muitos, mas também na conduta de todos. A premência, a a-scholia dos assuntos humanos, requer juízos provisórios, a confiança no hábito e no costume, isto é, nos preconceitos. Sobre o mundo das aparências, que afeta os nossos sentidos bem como a nossa ALMA e o nosso senso comum, Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia: “O espírito é separado de todas as coisas” (sophon esti pantón kechórismenon) [Frag. 108]. E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo, a saber, criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional, ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral, isto é, sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
Nesse e em outros aspectos, o espírito é decisivamente diferente da ALMA, o seu principal competidor ao cargo de legislador de nossa vida não-visível interior. A ALMA, em que surgem nossas paixões, sentimentos e emoções, é um torvelinho de acontecimentos mais ou menos caóticos que não encenamos ativamente, mas que sofremos (pahein) e que, nos casos de grande intensidade, pode nos dominar, como a dor ou o prazer; sua invisibilidade assemelha-se à dos nossos órgãos internos, cujo funcionamento ou não-funcionamento também percebemos, sem controlar. A vida do espírito, ao contrário, é pura atividade. E essa atividade, assim como qualquer outra, pode ser iniciada e paralisada à vontade. Além disso, embora seu lugar seja invisível, as paixões têm uma expressividade própria: coramos de vergonha ou de constrangimento, empalidecemos de medo ou de raiva, nos iluminamos de felicidade ou aparentamos tristeza ou desânimo, e precisamos de um considerável treino de autocontrole para impedir que as paixões se mostrem e apareçam. A única manifestação externa do espírito é o alheamento, uma óbvia desatenção em relação ao mundo que nos cerca, algo de inteiramente negativo que nem sequer chega a sugerir o que está de fato se passando internamente. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
A simples invisibilidade, o fato de que algo possa ser sem ser manifesto aos olhos, deve ter sido sempre surpreendente. Podemos avaliar isso pela estranha indisposição de toda a nossa tradição em traçar nítidas fronteiras entre ALMA, espírito e consciência, elementos frequentemente equiparados como objetos do nosso sentido interno pela simples razão de que não se manifestam para os sentidos externos. Desse modo, Platão concluiu que a ALMA é invisível porque ela é feita para a cognição do invisível em um mundo de coisas visíveis. E mesmo Kant, o mais crítico dos filósofos em relação aos preconceitos metafísicos tradicionais, enumera ocasionalmente dois tipos de objetos: ‘‘‘Eu’, como pensamento, sou um objeto de sentido interno, e me chamam ‘ALMA’. O objeto dos sentidos externos é chamado ‘corpo’.” [Critique of Pure Reason, B400] Isso, evidentemente, é apenas uma variante da velha teoria metafísica dos dois mundos. Faz-se uma analogia em relação à exterioridade da experiência sensível baseada na suposição de que um espaço interno abriga o que está em nosso interior do mesmo modo que o espaço externo faz com os nossos corpos — de modo que um “sentido interno”, a saber, a intuição da introspecção, é concebido como capaz de determinar o que quer que ocorra “internamente” com a mesma segurança dos nossos sentidos externos ao lidarem com o mundo exterior. No que diz respeito à ALMA, a analogia não é totalmente ilusória. Uma vez que sentimentos e emoções não são autocriados, mas são “paixões” provocadas por eventos externos que afetam a ALMA e produzem certas reações, a saber, as pathemata da ALMA — seus humores e estados passivos —, essas experiências internas podem de fato estar abertas ao sentido interno da introspecção precisamente porque são possíveis, como observou Kant, “somente com base na suposição da experiência externa” [Ibidem, B275]. Ademais, a sua própria passividade, o fato de não estarem sujeitas a mudanças produzidas por qualquer intervenção deliberada, resulta em uma impressionante semblância de estabilidade. Essa semblância produz, então, certas ilusões da introspecção, que, por sua vez, levam à teoria de que o espírito não somente é senhor de suas próprias atividades, como também pode governar as paixões da ALMA — como se o espírito fosse apenas o órgão mais elevado da ALMA. Essa teoria é muito antiga e alcançou seu clímax com as doutrinas estoicas do controle da dor e do prazer pelo espírito; sua falácia — de que é possível sentir-se feliz ao ser assado no Touro de Falera — repousa, em última instância, sobre a equação da ALMA com o espírito, isto é, reside em atribuir à ALMA e à sua passividade essencial a poderosa soberania do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
A vida do espírito na qual faço companhia a mim mesmo pode ser sem som; mas nunca é silenciosa; e jamais pode se esquecer completamente de si, pela natureza reflexiva de todas as suas atividades. Todo cogitare, não importa qual seja seu objeto, é também um cogito me cogitare; toda volição é um volo me velle; mesmo o juízo só é possível por um “retour secret sur moi-même”, como observou Montesquieu. Essa reflexividade parece apontar para um lugar de interioridade dos atos do espírito, construído sob o princípio do espaço externo no qual os meus atos não-espirituais têm lugar. Mas a ideia de que essa interioridade, diferentemente da interioridade passiva da ALMA, só pode ser entendida como um lugar de atividades é uma falácia cuja origem histórica é a descoberta, nos primeiros séculos da Era Cristã, da Vontade e das experiências do ego volitivo. Pois só estou consciente das faculdades do espírito e de sua reflexividade durante sua atividade. É como se os próprios órgãos do pensamento, da vontade ou do juízo só viessem a existir quando penso, quero ou julgo; em seu estado latente, supondo que tal latência exista anteriormente à sua efetivação, não estão abertos à introspecção. O ego do pensamento, do qual tenho perfeita consciência enquanto dura a atividade do pensamento, desaparecerá como se fosse uma simples miragem, tão logo o mundo real volte a se impor. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]
“Tome a cor dos mortos” — deve ser assim que o alheamento do filósofo e o estilo de vida do profissional que devota toda a sua vida ao pensamento, monopolizando e elevando a um nível absoluto o que é apenas uma dentre muitas faculdades humanas, aparecem para o senso comum dos homens, já que normalmente nos movemos em um mundo em que a mais radical experiência do desaparecer é a morte e em que se retirar da aparência é morrer. O próprio fato de sempre ter havido homens — ao menos desde Parmênides — que escolheram deliberadamente esse modo de vida sem ser candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a morte não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio ego pensante. É muito mais o próprio senso comum do filósofo — o fato de ser ele “um homem como você e eu” — que o torna consciente de estar “fora de ordem” quando se empenha em pensar. Ele não está imune à opinião comum, pois, afinal, compartilha a “qualidade do ser comum” [commonness] a todos os homens; e é seu próprio senso de realidade [realness] que o faz suspeitar da atividade de pensar. Como o pensamento é impotente contra os argumentos do raciocínio do senso comum e contra a insistência na “falta de sentido” de sua busca por significado, o filósofo sente-se inclinado a responder nos termos do senso comum, termos que ele simplesmente inverte com esse objetivo. Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a “morte é o maior dentre todos os males”, o filósofo (da época de Platão, quando a morte era compreendida como a separação entre ALMA e corpo) é tentado a dizer: pelo contrário, “a morte é uma divindade, uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre ALMA e corpo” [Phaedo, 64-67]. Desse modo, ele parece libertar o espírito da dor e do prazer corporais que impedem nossos órgãos espirituais de desenvolver suas atividades, da mesma forma que a consciência impede nossos órgãos corporais de funcionar apropriadamente [Cf. Valéry, op. cit., loc. cit]. Toda a história da filosofia — que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante — encontra-se atravessada por uma luta interna entre o senso comum, esse sexto sentido que “irá adequar nossos cinco sentidos a um mundo comum, e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão, que obrigam o homem a afastar-se, por períodos consideráveis, deste mundo”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Tudo isso é naturalmente dito com certa ironia — ou, mais academicamente, está posto em linguagem metafórica. Os filósofos não são famosos por seus suicídios, nem mesmo quando afirmam, com Aristóteles (em uma surpreendente observação pessoal no Protreptikos) [Ibidem, B110], que os que querem divertir-se deveriam filosofar ou deixar a vida, pois tudo o mais parece tolo e sem sentido. Mas a metáfora da morte, ou melhor, a inversão metafórica da vida e da morte — o que usualmente chamamos vida é morte; o que habitualmente chamamos morte é vida —, não é arbitrária, embora possa ser considerada de um modo um pouco menos dramático. Se o pensamento estabelece suas próprias condições, se ele cega a si mesmo para o sensorialmente dado, quando remove tudo o que está à mão, isso acontece para que o distante se torne manifesto. Formulando de maneira simples: no alheamento proverbial do filósofo, todo o presente está ausente, porque algo realmente ausente está presente em seu espírito, e entre as coisas ausentes está o seu próprio corpo. Tanto a hostilidade do filósofo em relação à política, “os pequenos assuntos humanos” [Republic, 500c], quanto sua hostilidade diante do corpo têm pouco a ver com convicções e crenças pessoais. Elas são inerentes à própria experiência. Enquanto pensa, a pessoa não tem consciência de sua corporalidade. Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à ALMA quando ela se separa do corpo; e foi isso também que fez Descartes concluir que “a ALMA pode pensar sem o corpo, com a ressalva de que, enquanto ela estiver ligada ao corpo, pode ser importunada, em suas operações, pela má disposição dos órgãos corporais” [Cartas de março de 1638. Descartes: Oeuvres et Lettres, p. 780]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
A busca de significado não só está ausente e é inteiramente inútil no curso rotineiro dos negócios humanos como também, ao mesmo tempo, seus resultados permanecem incertos e não verificáveis. O pensamento é, de alguma forma, autodestrutivo. Na privacidade das notas postumamente publicadas, Kant escreveu: “Não concordo com a regra segundo a qual algo que ficou provado pelo uso da razão pura não está mais sujeito à dúvida, como se isso fosse um sólido axioma”; ou ainda: “Não compartilho a opinião segundo a qual […], depois que se está convencido de alguma coisa, não se pode duvidar dela. Na filosofia pura isso é impossível. Nosso espírito tem uma aversão natural a isso” (grifos nossos) [Akademie Ausgabe, vol. XVIII, 5019 e 5036]. Daí se depreende que o pensamento é como a teia de Penélope: desfaz-se toda manhã o que se terminou de fazer na noite anterior [Platão, em Phaedo, 84a, menciona a teia de Penélope, mas no sentido oposto. A “ALMA do filósofo”, liberada do cativeiro do prazer e da dor, não deve agir como Penélope, desmanchando sua própria teia. Uma vez desembaraçada (por meio de logismos) do prazer e da dor que “cravam” a ALMA no corpo, a ALMA (o ego pensante de Platão) muda sua natureza e até mesmo suas razões (logizesthai), mas estima (theasthai) “a verdade e o divino”, e aí permanece para sempre.]. Pois a necessidade de pensar jamais pode ser satisfeita por insights supostamente precisos de “homens sábios”. Essa necessidade só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento, e os pensamentos que tive ontem irão satisfazer essa necessidade hoje apenas porque quero e porque sou capaz de pensá-los novamente. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]
Mas o problema está em que não podemos encontrar tal localidade incontestável quando nos perguntamos onde estamos quando pensamos ou quando exercemos a vontade; cercados, por assim dizer, por coisas que não são mais ou que ainda não existem; ou, finalmente, por coisas-pensamento usadas cotidianamente, tais como justiça, liberdade, coragem, e que no entanto se encontram totalmente fora da experiência sensível. É bem verdade que o ego volitivo encontrou cedo uma residência, uma região que era propriamente sua; tão logo essa faculdade foi descoberta, nos primeiros séculos da Era Cristã, ela foi localizada em nosso interior; e caso alguém se pusesse a escrever a história da interioridade em termos de uma vida interna, esse alguém logo perceberia que essa história coincide com a história da Vontade. Mas a interioridade, como já indicamos, tem seus próprios problemas, mesmo quando concordamos que a ALMA e o espírito não são a mesma coisa. Além disso, a peculiar natureza reflexiva da vontade, às vezes identificada com o coração e quase sempre considerada o órgão do nosso eu mais profundo, tornou essa região ainda mais difícil de ser isolada. Quanto ao pensamento, a questão de saber onde estamos quando pensamos parece ter sido levantada apenas por Platão no Sofista [Sophist, 254]; lá, depois de ter determinado o lugar do sofista, ele promete determinar também o lugar do próprio filósofo — o topos noetos mencionado nos primeiros diálogos [Republic, 517b, e Phaedrus, 247c] —, mas jamais cumpriu a promessa. Pode ser que simplesmente tenha fracassado na tarefa de completar a trilogia do Sofista-Político-Filósofo; ou que tenha chegado a acreditar que a resposta estivesse dada implicitamente no Sofista, em que retrata o sofista como estando “em casa na escuridão do Não-ser”, o que “o torna tão difícil de ser percebido”, “ao passo que o filósofo […] é difícil de ser visto, porque sua região é tão luminosa; pois o olho da multidão não pode manter o olhar fixo no divino” [Sophist, 254a-b]. Essa resposta podia de fato ser esperada por parte do autor da República e da alegoria da Caverna. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 11]
As atividades mentais, invisíveis e ocupadas com o invisível, tornam-se manifestas somente através da palavra. Assim como os seres que aparecem e habitam o mundo de aparências têm em si o ímpeto de se mostrarem, os seres pensantes — ainda que pertencentes ao mundo das aparências, mesmo depois de haverem dele se retirado mentalmente — têm em si o ímpeto de falar, e, assim, tornar manifesto aquilo que, de outra forma, não poderia absolutamente pertencer ao mundo das aparências. Mas enquanto o aparecer pressupõe e exige, em si, a presença de espectadores, o pensar, em sua necessidade de discurso, não exige nem pressupõe ouvintes: a linguagem humana, com uma intrincada complexidade gramatical e sintática, não seria necessária na comunicação entre semelhantes. A linguagem dos animais — sons, sinais, gestos — serviria bastante bem para as nossas necessidades imediatas, não só de autopreservação e preservação da espécie, como também para tornar evidentes as disposições da ALMA. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Não é nossa ALMA, mas nosso espírito que exige o discurso. Referi-me a Aristóteles quando estabeleci uma distinção entre espírito e ALMA, os pensamentos de nossa razão e as paixões de nosso aparato emocional, e chamei a atenção sobre como é reforçada essa distinção-chave em De anima por uma passagem na introdução do pequeno tratado sobre a linguagem, De interpretatione. [Ver cap. 1 do presente volume. No início de De Interpretatione, Aristóteles refere-se ao seu De Anima como tratando de alguns dos mesmos pontos; mas nada, no De Anima, parece corresponder aos pontos levantados no De Interpretatione. Se minha leitura do texto é correta, Aristóteles deve ter pensado na passagem por mim usada no cap. 1, e que é: De Anima, 403a5-10.] Voltarei a esse tratado, já que seu ponto mais interessante é a afirmação de que o critério do logos, do discurso coerente, não é a verdade ou a falsidade, mas sim o significado. As palavras em si não são nem verdadeiras nem falsas. A palavra “centauro”, por exemplo (Aristóteles usa o exemplo de “veado-bode”, um animal que é metade veado, metade bode), “significa algo, embora não signifique nada que seja falso ou verdadeiro, a não ser que se acrescente ‘não ser’ ou ‘ser’ a essa palavra”. O logos é o discurso no qual as palavras são reunidas para formar uma sentença que seja totalmente significativa em virtude da síntese (syntheke). Palavras significativas em si mesmas e pensamentos (noemata) assemelham-se (eioken). Disso se depreende que o discurso, ainda que sempre “som com significado” (phone semantike), não é necessariamente apophantikos, um enunciado ou uma proposição em que aletheuein e pseudesthai, verdade e falsidade, ser e não-ser estão em jogo. Não é sempre esse o caso: uma prece, como vimos, é um logos, mas não é falsa nem verdadeira [De Interpretatione, 16a4-17a9]. Assim, implícita no ímpeto da fala, está a busca do significado, e não necessariamente a busca da verdade. É interessante notar também que, em nenhum momento da discussão da relação que a linguagem mantém com o pensamento, Aristóteles suscita a questão da prioridade; não decide se o pensamento é a origem da fala, tomado o discurso como mero instrumento de comunicação de nossos pensamentos; ou se o pensamento é uma consequência do fato de que o homem é um animal falante. De qualquer forma, uma vez que palavras — portadoras de significados — e pensamentos assemelham-se, seres pensantes têm o ímpeto de falar, seres falantes têm o ímpeto de pensar. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Essas observações sobre a interconexão de linguagem com pensamento, que nos fazem suspeitar de que não há possibilidade de existir um pensamento não discursivo, obviamente não se aplicam a civilizações em que o signo escrito, em lugar da palavra falada, é decisivo; e em que, consequentemente, o pensamento em si não é discurso silencioso, mas sim um lidar mental com imagens. Isso vale claramente para a China, cuja filosofia pode muito bem equiparar-se à filosofia do Ocidente. Lá, “o poder das palavras é sustentado pelo poder do signo escrito, da imagem”, e não o oposto, como ocorre com as linguagens alfabéticas, em que a escrita é considerada secundária, nada além de um conjunto convencional de símbolos [Para o que aqui segue, baseei-me rigorosamente no primeiro capítulo, sobre“Language and Script”, do grande livro de Marcel Granet, La Pensée Chinoise, Paris, 1934. Usei a nova edição alemã, que foi recém-publicada por Manfred Porkert: Das chinesische Denken-Inhalt, Form, Charakter, Munique, 1971.]. Para os chineses, todo signo torna visível aquilo a que chamaríamos um conceito ou uma essência — conta-se que Confúcio disse, uma vez, que o signo chinês para “cachorro” é a imagem perfeita do cachorro em si, enquanto, para nosso entendimento, “não há imagem que se possa adequar ao conceito” de cachorro em geral. “Essa imagem jamais conteria aquela universalidade do conceito que o torna válido” para todos os cachorros [Kant, Critique of Pure Reason, B180]. “O conceito ‘cachorro’’’, segundo Kant — autor que no capítulo sobre “Esquematismo”, na Crítica da razão pura, esclarece uma das hipóteses básicas de todo o pensamento ocidental —, “significa a regra de acordo com a qual minha imaginação é capaz de delinear a figura de um animal de quatro patas de uma maneira geral, sem limitar-se por qualquer figura determinada, que possa de fato ser apresentada pela experiência, ou por qualquer imagem que eu possa representar in concreto.” E acrescenta: “Esse esquematismo de nosso intelecto […] é uma arte escondida nas profundezas da ALMA humana, é pouquíssimo provável que a natureza venha algum dia a permitir que descubramos os modos reais de atividade dessa arte, que eles se desvelem ao nosso olhar.” [B180-181] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Todos os termos filosóficos são metáforas, analogias congeladas, por assim dizer, cujo verdadeiro significado se desvela quando dissolvemos o termo em seu contexto original, que estava muito nítido no espírito do primeiro filósofo a utilizá-lo. Quando Platão introduziu as palavras cotidianas “ALMA” e “ideia” na linguagem filosófica — conectando um órgão invisível no homem, a ALMA, com algo invisível no mundo dos invisíveis, as ideias —, ele ainda deve ter ouvido as palavras no sentido em que eram utilizadas na linguagem ordinária e pré-filosófica; Psyche é o “sopro da vida” que os moribundos expiram, e ideia, ou eidos, é a forma ou esboço que está no olho espiritual do artesão antes de iniciar seu trabalho — uma imagem que sobrevive tanto ao processo de fabricação quanto ao objeto fabricado, adquirindo assim uma perenidade que a prepara para a eternidade no céu das ideias. A analogia subjacente à doutrina da ALMA de Platão desenvolve-se da seguinte maneira: assim como o sopro de vida está relacionado com o corpo que ele abandona, isto é, ao cadáver, a ALMA, daí em diante, está em princípio relacionada com o corpo que vive. A analogia subjacente à sua doutrina das ideias pode ser reconstruída de maneira semelhante; assim como a imagem espiritual do artesão guia sua mão na fabricação e é a medida do sucesso ou do fracasso do objeto, também a totalidade dos dados sensíveis e materiais no mundo das aparências relaciona-se com um padrão invisível situado no céu das ideias e é avaliada de acordo com ele. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
A metáfora, servindo de ponte no abismo entre as atividades espirituais interiores e invisíveis e o mundo das aparências, foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e, consequentemente, à filosofia; mas a metáfora em si é, na origem, poética, e não filosófica. Não é de espantar, portanto, que poetas e escritores afinados com a poesia, e não com a filosofia, conhecessem sua função essencial. Daí lermos em um ensaio pouco conhecido de Ernest Fenollosa, publicado por Ezra Pound e, ao que eu saiba, jamais mencionado na literatura sobre metáfora: “A metáfora é […] a própria substância da poesia”; sem ela, “não haveria ponte que permitisse a travessia da verdade menor do que é visto para a verdade maior do que não se vê”. [O ensaio “The Chinese Written Character as a Medium for Poetry”, editado por Ezra Pound em Instigations, Freeport, Nova York, 1967, contém um curioso pedido em favor da escrita chinesa: “Sua etimologia é constantemente visível.” Uma palavra fonética “não carrega sua metáfora na face. Esquecemos que personalidade já significou não a ALMA, mas a máscara da ALMA [por meio da qual a ALMA soava, como era per-sonare]. Esse é o tipo de coisa de que não podemos esquecer quando usamos o símbolo chinês… Para nós, o poeta é aquele para quem os tesouros acumulados das palavras das raças são reais e ativos” (p. 25).] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
Kurt Riezler, o primeiro a associar “o símile homérico com o início da filosofia”, insiste na tertium comparationis necessária a qualquer comparação, que permite “ao poeta perceber e tornar conhecida a ALMA como mundo e o mundo como ALMA” [“Das Homerische Gleichnis und der Anfang der Philosophie”, in Die Antike, vol. XII, 1936]. Por trás da oposição entre mundo e ALMA, deve haver uma unidade que torne possível a correspondência, uma “lei ignorada”, como diz Riezler, citando Goethe, presente tanto no mundo dos sentidos quanto no domínio da ALMA. É a mesma unidade que reúne todos os opostos — dia e noite, luz e escuridão, frio e calor —, cada um dos quais inconcebíveis em separado, impensáveis a não ser quando misteriosamente relacionados à sua antítese. Tal unidade oculta torna-se, segundo Riezler, o tópico dos filósofos, a koinos logos de Heráclito, a hen pan de Parmênides; a percepção dessa unidade distingue a verdade do filósofo das opiniões dos homens comuns. E, a título de reforço, Riezler cita Heráclito: “O deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome [todos os opostos, ele é o nous]; ele se modifica assim como o fogo, quando misturado aos aromas, é nomeado pelo perfume que a ele se mistura.” [Diels e Kranz, frag. B67] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 12]
No Fedro [275d-277a], Platão contrasta a palavra escrita com a palavra falada, usada na arte de “discorrer sobre as coisas” (techne dialektike), a “fala viva, o original do qual o discurso escrito pode bem ser chamado de uma espécie de imagem”. A arte do discurso vivo é exaltada porque ele sabe como selecionar seus ouvintes; ele não é estéril (akarpoi), mas contém um sêmen a partir do qual diferentes logoi, palavras e argumentos, crescem em diferentes ouvintes, de modo que a semente se torne imortal. Mas se quando pensamos levamos a cabo esse diálogo interior, é como se estivéssemos “escrevendo palavras em nossas almas”; em momentos como esses, “nossa ALMA é como um livro”, mas um livro que já não contém mais palavras [Philebus, 38e-39b]. Depois do escritor, um segundo artesão intervém quando pensamos: trata-se de um “pintor”, que pinta em nossa ALMA aquelas imagens correspondentes às palavras escritas. “Isso acontece quando afastamos essas opiniões e afirmações faladas da visão ou de qualquer outro tipo de percepção, de modo que então passamos, de alguma maneira, a ver as imagens daquilo sobre o que inicialmente opinamos e falamos.” [Ibidem, 39b-c] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Na Sétima carta, Platão nos diz brevemente como essa dupla transformação pode chegar a acontecer, como é que se pode falar sobre nossa percepção sensível e como esse falar sobre (dialegesthai) é, em seguida, transformado em uma imagem visível somente para a ALMA. Temos nomes para o que vemos, como, por exemplo, o nome “círculo” para algo redondo; esse nome pode ser explicado em discurso (logos), em sentenças “compostas de substantivos e verbos”, e dizemos que o círculo é “uma coisa cujas distâncias entre o centro e as extremidades são sempre iguais”. Tais frases podem levar à confecção de círculos, de imagens (eidólon) que podem ser “desenhadas e apagadas, viradas e destruídas”, processos que obviamente não afetam o círculo em si, que é diferente de todos esses círculos. O conhecimento e o espírito (nous) apreendem o círculo essencial, isto é, aquilo que todos os círculos têm em comum, algo que “não reside nem nos sons [da fala] nem nas formas dos corpos, mas na ALMA”, e tal círculo é claramente “diferente do círculo real”, percebido primeiramente na natureza pelos olhos do corpo, e diferente também dos círculos desenhados de acordo com uma explicação verbal. Esse círculo na ALMA é percebido pelo espírito (nous), que está mais próximo dele por afinidade e semelhança. E essa intuição interna pode em si ser chamada de verdade [342]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
À verdade do tipo da evidência, construída conforme o princípio das coisas percebidas pelos nossos olhos do corpo, pode-se chegar através da orientação (diagógé) de palavras na dialegesthai, o fio discursivo de pensamento que pode ser silencioso ou falado entre mestre e discípulo, “movendo-se para cima e para baixo”, interrogando sobre “o que é verdadeiro e o que é falso”. Mas o resultado, que se supõe ser uma intuição, e não uma conclusão, virá de súbito, depois de uma longa série de perguntas e respostas: “quando um instante de insight (phronésis) geral fulgura, e o espírito […] é inundado de luz” [Ibidem, 344b]. Essa própria verdade está além das palavras; os nomes a partir dos quais se inicia o processo de pensamento não são confiáveis — “nada impede que as coisas que agora são chamadas de redondas passem a ser chamadas de retas, e as retas, de redondas” [Ibidem, 343b] —, e as palavras, o discurso argumentado da fala que busca explicar, são “débeis”: não oferecem mais do que uma “pequena orientação” para reavivar a luz na ALMA, como a de uma centelha tremulante, a qual, uma vez gerada, se torna autossustentável [Ibidem, 341e]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]
Schelling citou enfaticamente as palavras de Kant; e provavelmente foi dessa passagem, e não da observação mais superficial de Leibniz, que ele derivou sua própria e repetida insistência nessa “questão última” de todo pensamento — “por que afinal existe algo, por que não existe o nada?” [Werke, 6. Ergänzungsband, ed. M. Schröter, Munique, 1954, p. 242] Schelling diz que é esta “a mais desesperadora das questões” [Ibidem, p. 7]. A referência ao puro desespero que surge do próprio pensamento aparece nos escritos tardios de Schelling; e isso é significativo porque o mesmo pensamento já o havia assombrado antes, em sua juventude, quando ele ainda acreditava que, para banir o nada, bastava a “afirmação absoluta”, que ele chamava “a essência da nossa ALMA”. Por meio dessa afirmação “reconhecemos que o não-ser é para sempre impossível”, incognoscível e incompreensível. E para o jovem Schelling essa questão última (“por que não há o nada, por que há algo?”) — colocada pelo intelecto tomado de vertigem, à beira do abismo — é para sempre suprimida pela percepção de que “o Ser é necessário, [feito de tal forma que] ele é, pela afirmação absoluta do Ser na cognição” [Ver o System der gesammten Philosophie (1804), publicado postumamente, in Sämtliche Werke, I, Stuttgart e Augsburg, 1860, vol. VI, p. 155]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]
De qualquer modo, é patente a profunda influência romana mesmo sobre um filósofo tão metafísico como Hegel, no primeiro livro que publicou, em que discute a relação entre filosofia e realidade: “A necessidade da filosofia surge quando o poder unificador desapareceu da vida dos homens, quando os opostos perderam a tensão viva de sua relação e sua dependência mútua para se tornarem autônomos. É da desunião, da desavença que nasce o pensamento”, ou seja, a necessidade de reconciliação [Entzweiung ist der Quell des Bedürfnisses der Philosophie] [Differenz des Fichte’schen und Schelling’schen Systems der Philosophie (1801), ed. Meiner, 1962, p. 12 ss]. O que há de romano na noção hegeliana de filosofia é que o pensamento não surge de uma necessidade da razão, mas tem uma raiz existencial na infelicidade. Hegel, com seu grande sentido histórico, reconheceu muito claramente o caráter tipicamente romano dessa raiz no seu tratamento do “mundo romano”, em suas conferências tardias publicadas sob o título de Filosofia da história. “O estoicismo, o epicurismo e o ceticismo […] embora… opostos um ao outro, tinham o mesmo propósito, a saber, tornar a ALMA absolutamente indiferente a tudo o que o mundo real tinha a oferecer.” [Trad. de J. Sibree, Nova York, 1956, p. 318] O que ele aparentemente não reconheceu, contudo, é até que ponto generalizou a experiência romana: “A História do Mundo não é o teatro da felicidade. Os períodos de felicidade são as suas páginas em branco, pois esses são períodos de harmonia.” [Ibidem, p. 26] O pensamento, então, surge da desintegração da realidade e da resultante des-união entre homem e mundo, da qual surge a necessidade de um outro mundo, mais harmonioso e significativo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]
O critério do diálogo espiritual não é mais a verdade, que exigiria respostas para as perguntas que me coloco, esteja ela sob a forma da Intuição que compele com a força da evidência sensorial ou sob a forma das conclusões necessárias de um cálculo de consequências, como o raciocínio matemático ou lógico, cuja força de coerção repousa sobre a estrutura do nosso cérebro com seu poder natural. O único critério de pensamento socrático é a conformidade, o ser consistente consigo mesmo, homologein autos heauto [Protagoras, 339c]. O seu oposto, o estar em contradição consigo mesmo, enantia legein autos heauto [Ibidem, 339b, 340b], de fato significa tornar-se seu próprio adversário. Eis por que Aristóteles, em sua primeira formulação do famoso princípio da não-contradição, afirma explicitamente que ele é um axioma: “Temos que acreditar nele porque […] ele não se dirige à palavra externa [exo […] logos, isto é, à palavra falada e endereçada a outra pessoa, amiga ou adversária], mas ao discurso interno à ALMA; e embora possamos sempre levantar objeções contra a palavra externa, nem sempre podemos fazê-lo contra o discurso interior”, porque o parceiro é a própria pessoa, e é impossível que eu queira tornar-me meu próprio adversário [Posterior Analytics, 76b22-25]. (Podemos observar, neste caso, como um insight, feito a partir da experiência factual do ego pensante, perde-se quando é generalizado em uma doutrina filosófica — como “A não pode ser B e A sob as mesmas condições e ao mesmo tempo” —, uma transformação realizada pelo próprio Aristóteles quando discute o mesmo assunto em sua Metafísica.) [1005b23-1008a2] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
Uma leitura minuciosa do Organon, do “Instrumento” — nome dado a partir do século VI d.C. ao conjunto dos primeiros tratados lógicos de Aristóteles —, mostra claramente que o que hoje chamamos “lógica” não era originalmente compreendido como um “instrumento do pensamento”, do diálogo interior empreendido “dentro da ALMA”. Ao contrário, “lógica” designa a ciência de falar e argumentar corretamente quando estamos tentando convencer os outros, ou explicar o que afirmamos, partindo sempre, como Sócrates, de premissas mais fáceis de serem aceitas pela maioria dos homens ou pela maioria dos considerados geralmente os mais sábios entre estes. O axioma da não-contradição, nos primeiros tratados apenas decisivos para o diálogo interno do pensamento, ainda não tinha sido estabelecido como a regra mais básica para o discurso em geral. Só depois que esse caso particular tornou-se o exemplo condutor para todo pensamento é que Kant, que na Antropologia tinha definido pensar como “conversar consigo mesmo […] e, portanto, também escutar interiormente” [N° 36, Werke, vol. VI, p. 500], pôde relacionar a prescrição de “pensar sempre consistentemente e de acordo consigo mesmo” (“Jederzeit mit sich selbst einstimmig denken”) entre as máximas que devem ser consideradas “mandamentos imutáveis para a classe dos pensadores” [N° 56, ibidem, p. 549]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
É característico das “pessoas moralmente baixas” estarem “em discordância consigo mesmas” (diapherontai heautois) e dos homens maus evitar a própria companhia; sua ALMA se rebela contra si mesma (stasiazei) [Ibidem, 1166b5-25]. Que diálogo se pode ter consigo mesmo quando a ALMA não está em harmonia, mas em guerra consigo mesma? É este o diálogo que se subentende quando Ricardo III, de Shakespeare, está só: What do I fear? Myself? There’s none else by: / Richard loves Richard: that is, I am I. / Is there a murderer here? No. Yes, I am: / Then fly: what! from myself? Great reason why: / Lest I revenge. What! myself upon myself? / Alack! I love myself. Wherefore? For any good / That I myself have done unto myself? / Oh! no: alas! I rather hate myself / For rateful deeds committed by myself. / I am a villain. Yet I lie, I am not / Fool, of thyself speak well: fool, do not flatter. [De que estou com medo? De mim mesmo? Não há mais ninguém aqui:/ Ricardo ama Ricardo: isto é, eu sou eu./ Há um assassino aqui? Não. Sim, eu:/ Então fujamos! Como? De mim mesmo? Boa razão essa:/ Por medo de que me vingue. Como? Eu de mim mesmo? Ora! Eu me amo. Por quê? Por algum bem/ Que possa ter feito a mim mesmo?/ Mas não, ai de mim! Eu deveria me odiar/ Pelos atos execráveis cometidos por mim?/ Sou um canalha. Não, minto; eu não sou./ Idiota, falas bem de ti mesmo: idiota, não te adules. (N. T.)] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]
A maior dificuldade enfrentada em qualquer discussão sobre a Vontade é o simples fato de que não há qualquer outra capacidade do espírito cuja própria existência tenha sido questionada e refutada de forma tão consistente e por uma sucessão de filósofos tão eminentes quanto esta. O mais recente é Gilbert Ryle, para quem a Vontade é um “conceito artificial”, que não corresponde a nada que jamais existiu e que cria enigmas inúteis como tantas das falácias metafísicas. Desconhecendo aparentemente seus ilustres predecessores, ele parte para refutar “a doutrina de que há uma Faculdade […] da ‘Vontade’, e que, portanto, ocorram processos ou operações correspondentes ao que ela descreve como volições”. Ryle não ignora o “fato de que Platão e Aristóteles nunca mencionaram [volições] em suas frequentes e elaboradas discussões acerca da natureza da ALMA e das origens da conduta”, porque não estavam familiarizados com a “hipótese especial [de tempos posteriores] cuja aceitação baseia-se não na descoberta, mas na postulação de [certas] verdades fantasmagóricas”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, ALMA e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis, mas é também um “dado imediato da consciência” (nas palavras de Bergson) — tanto quanto o eu-penso de Kant ou o cogito em Descartes, cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional. Para antecipar: o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade?”, no dizer de Agostinho. A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos — algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão. A Vontade, ao que parece, tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento, que mesmo em sua forma mais livre, mais especulativa, não pode escapar ao princípio de não contradição. Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção. Os pensadores muitas vezes consideraram-no uma maldição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
Começaremos nosso exame da natureza da capacidade da Vontade e de sua função na vida do espírito investigando a literatura pós-clássica e pré-moderna, que atesta as experiências do espírito causadoras da descoberta dessa faculdade, bem como as experiências que a própria descoberta causou — uma literatura que cobre o período entre a Epístola de Paulo aos romanos e o questionamento de Duns Scotus à posição de Tomás de Aquino. Mas antes irei tratar, de maneira breve, de Aristóteles, em parte pela influência decisiva que “O filósofo” exerceu sobre o pensamento medieval, em parte porque sua noção de proairesis, em minha opinião uma espécie de precursora da Vontade, pode servir como exemplo paradigmático de como certas questões da ALMA foram levantadas e respondidas antes da descoberta da Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]
É de alguma importância notar que essa curiosa lacuna na filosofia grega — “o fato de que Platão e Aristóteles nunca tenham mencionado [volições] em suas frequentes e elaboradas discussões sobre a natureza da ALMA e das origens da conduta” [Gilbert Ryle, The Concept of Mind, Nova York, 1949, p. 65] e, portanto, de que não é possível “sustentar a sério que o problema da liberdade tenha algum dia se tornado objeto de debate na filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles” [Henry Herbert Williams, artigo sobre a Vontade in Encyclopaedia Britannica, 11ª edição] — está em perfeita harmonia com o conceito de tempo vigente na Antiguidade, que identificava a temporalidade com os movimentos circulares dos corpos celestiais e com a não menos cíclica natureza da vida na Terra: a recorrente transformação de dia e noite, verão e inverno, a renovação constante de espécies animais através do nascimento e da morte. Quando Aristóteles sustenta que “vir-a-ser” necessariamente implica a preexistência de algo que é “em potência, mas não em ato” [De Generatione, Livro I, cap. 3, 317b16-18], ele está aplicando ao campo dos assuntos humanos o movimento cíclico que afeta tudo o que vive — em que de fato todo fim é um começo, e todo começo, um fim, de maneira que “o vir-a-ser continue, embora as coisas estejam constantemente sendo destruídas”. [Ibidem, 318a25-27 e 319a23-29; The Basic Works of Aristotle, Richard McKeon, Nova York, 1941, p. 483.] Isso a ponto de poder dizer que não só eventos, mas até mesmo opiniões (doxai), “ocorrendo entre os homens, repetem-se não só uma ou poucas vezes, mas com infinita frequência” [Meteorologica, 339b27]. Essa estranha visão dos assuntos humanos não era específica da especulação filosófica. A pretensão que Tucídides tinha de deixar para a posteridade um ktéma es aei — um paradigma eternamente útil para o modo de investigação do futuro através de um conhecimento claro do maior evento já conhecido na história — baseava-se implicitamente na mesma convicção de um movimento recorrente dos assuntos humanos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]
Nossa terceira dificuldade está ligada a esse dilema. Aos olhos dos filósofos que advogaram o ego pensante, foi sempre a maldição da contingência o que condenou o campo dos assuntos meramente humanos a um status bastante baixo na hierarquia ontológica. Mas antes da Era Moderna existiram — não muitas, mas algumas — vias de escape bastante trilhadas pelo menos pelos filósofos. Na Antiguidade havia o bios theoretikos: o pensador habitava a vizinhança das coisas necessárias e perenes, tomando parte em seu Ser até o ponto em que isso é possível para os mortais. Na era da filosofia cristã, havia a vita contemplativa dos monastérios e das universidades, mas também o pensamento consolador da divina Providência, conjugado à expectativa de uma vida após a morte, quando aquilo que parecera contingente e sem sentido neste mundo se tornaria muito claro, a ALMA vendo “cara a cara”, em vez de “por espelho, obscuramente”, não mais conhecendo só “em parte” — pois ela “conhecerá tanto quanto [é] conhecida”. Sem tal esperança de um Além, até mesmo Kant julgava a vida infeliz demais, por demais destituída de sentido para ser suportada. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]
Se olharmos para esse registro com olhos não embaçados por teorias e tradições, religiosas ou seculares, é certamente difícil escapar à conclusão de que os filósofos parecem geneticamente incapazes de aprender a lidar com certos fenômenos do espírito e com sua posição no mundo, de que os pensadores não são mais confiáveis para chegar a uma avaliação razoável da Vontade do que o foram para chegar a uma avaliação razoável do corpo. Mas a hostilidade dos filósofos contra o corpo é muito conhecida e pode ser registrada pelo menos desde Platão. Ela não é primordialmente motivada pela falibilidade da experiência sensorial — pois esses erros podem ser corrigidos —, ou pela notória ingovernabilidade das paixões — pois estas podem ser domadas pela razão —, mas sim pela simples e incorrigível natureza de nossas necessidades e desejos corporais. O corpo, como enfatiza corretamente Platão, sempre “quer ser cuidado”; e até mesmo nas melhores condições — saúde e prazer, por um lado, e uma comunidade equilibrada, por outro —, ele interromperá, com suas repetidas exigências, as atividades do ego pensante; nos termos da alegoria da Caverna, o corpo forçará o filósofo a retornar do céu das ideias para a Caverna dos assuntos humanos. (É comum atribuir essa hostilidade ao antagonismo cristão em relação à carne. Mas não só essa hostilidade é muito mais antiga, como também se pode até argumentar que um dos dogmas cristãos fundamentais, a ressurreição da carne, diferentemente de especulações mais antigas sobre a imortalidade da ALMA, manteve-se em um nítido contraste não só com as crenças gnósticas comuns mas também com as noções da filosofia clássica.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
É claro que o antagonismo do ego pensante em relação à Vontade é de uma espécie bem diferente. O conflito aqui se dá entre duas atividades espirituais que parecem incapazes de coexistir. Quando produzimos uma volição, isto é, quando nos concentramos em um projeto futuro, não nos retiramos menos do mundo das aparências do que quando estamos seguindo uma linha de pensamento. Pensamento e Vontade antagonizam-se somente no que afetam nossos estados psíquicos; ambos, é verdade, tornam presente para o nosso espírito o que na realidade está ausente; mas o pensamento traz para seu presente duradouro aquilo que ou é ou, pelo menos, foi; enquanto a Vontade, estendendo-se para o futuro, movese em uma região em que tais certezas não existem. Nosso aparato psíquico — a ALMA em contraposição ao espírito — está equipado para lidar com o que vem da região do desconhecido em sua direção por meio da expectativa, cujas modalidades principais são esperança e medo. Essas duas maneiras de sentir estão intimamente relacionadas, uma vez que ambas estão propensas a dar uma guinada em direção a seu aparente oposto; e, dadas as incertezas desta região, tais mudanças são quase automáticas. Toda esperança traz consigo um medo, e todo medo cura-se ao tornar-se a esperança correspondente. Foi por sua natureza mutável, instável e inquieta que esses sentimentos foram incluídos, pela Antiguidade Clássica, entre os males da caixa de Pandora. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
O que a ALMA exige do espírito, nessa situação desconfortável, não é tanto um dom profético para prever o futuro, e, assim, confirmar a esperança ou o medo. Bem mais tranquilizadora que as brincadeiras fraudulentas dos adivinhos — profetas, astrólogos e similares — é a não menos fraudulenta teoria que alega provar que tudo o que é ou vem a ser “era para ser”, na feliz expressão de Gibert Ryle. [Ver sua investigação exaustiva sobre o argumento fatalista, “‘It was to be’”, in Dilemmas, Cambridge, 1969, pp. 15-35.] O fatalismo, que, na verdade, “nenhum filósofo de primeiro ou segundo nível defendeu […] ou fez muito esforço para atacar”, realizou, no entanto, uma carreira assombrosamente bem-sucedida no pensamento popular através dos séculos; “temos, de fato, nossos momentos de fatalismo”, como diz Ryle [Ibidem, p. 28], e a razão é que não há outra teoria que possa acalmar com tanta eficácia qualquer ímpeto de ação, qualquer impulso para fazer um projeto, em suma, qualquer forma de “eu-quero”. Essas vantagens existenciais do fatalismo estão visivelmente esboçadas no tratado de Cícero Sobre o destino, que é ainda hoje a argumentação clássica sobre a questão. Para a proposição “tudo está predestinado”, ele usa o seguinte exemplo: quando adoecemos, “já está predestinado se vamos ou não nos recuperar, quer chamemos um médico, quer não” [De Fato, xiii, 30-14, 31], e é claro que também estaria predestinado se iremos chamar um médico ou não. Por conseguinte, o argumento leva a um “infinito regresso” [Ibidem, V, 35]. Designado como “argumento vão”, ele é rejeitado, porque obviamente “levaria à completa extinção de toda a ação na vida”. Seu grande atrativo é que, por meio dele, “o espírito libera-se de toda necessidade de movimento” [Como Chrysippus já apontou. Ver ibidem, xx, 48]. Em nosso contexto, o interesse da proposição reside no fato de que ela consegue extinguir totalmente o tempo verbal futuro, assimilando-o ao passado. O que será ou poderá ser “era para ser”, pois “tudo o que será, se vai mesmo ser, não pode ser concebido como se fosse para não ser” (quicquid futurum est, id intelligi non potest, si futurum sit, non futurum esse), como disse Leibniz [Confessio Philosophi, ed. bilíngue, ed. Otto Saame, Frankfurt, 1967, p. 66]. O caráter tranquilizador da formulação vem do que Hegel chamou de “a calma do passado” (“die Ruhe der Vergangenheit”) [Jenenger Logik, Metaphysik und Naturphilosophie, Lasson ed., Leipzig, 1923, p. 204, in “Naturphilosophie I A: Begriff der Bewegung”], uma calma assegurada pelo fato de que o que passou não pode ser desfeito e que a Vontade “não pode querer retroativamente”. [Ver Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, pt. II, “On Redemption”: “A vontade não pode querer para trás […]. Que o tempo não anda para trás, é esse o seu ressentimento; ‘aquilo que foi’ é o nome da pedra que ela não pode mover”, in The Portable Nietzsche, trad. Walter Kaufmann, Nova York, 1954, p. 251.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Não é o futuro enquanto tal, mas o futuro como projeto da Vontade que nega o que é dado. Em Hegel e Marx, o poder da negação, cujo motor faz avançar a História, deriva da habilidade que a Vontade pode ter para realizar um projeto: o projeto nega o agora e o passado, ameaçando, assim, o presente duradouro do ego pensante. Uma vez que o espírito, retirado do mundo das aparências, traz para sua própria presença aquilo que está ausente — o que já não é mais, assim como o que não é ainda —, é como se o passado e o futuro pudessem unir-se em um denominador comum, podendo assim ser salvos, juntos, do fluxo do tempo. Mas o nunc stans, a lacuna entre o passado e o futuro em que localizamos o ego pensante, embora possa absorver aquilo que não é mais, sem qualquer perturbação do mundo exterior, já não pode responder com a mesma serenidade a projetos que a vontade produz para o futuro. Toda volição, ainda que seja uma atividade do espírito, relaciona-se com o mundo das aparências no qual seu projeto deve realizar-se; em contraste flagrante com o pensamento, nenhum querer jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade. Qualquer volição não só envolve particulares como também — e isso é de grande importância — anseia por seu próprio fim, o momento em que o querer algo terá se transformado no fazê-lo. Em outras palavras, o humor habitual do ego volitivo é a impaciência, a inquietude e a preocupação (Sorge), não somente porque a ALMA reage ao futuro com esperança e medo, mas também porque o projeto da vontade pressupõe um “eu-posso” que não está absolutamente garantido. A inquietação preocupada da Vontade só pode ser apaziguada por um “eu-quero-e-faço”, isto é, por uma interrupção de sua própria atividade e liberação do espírito de sua dominação. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Quanto a este aspecto — que vamos chamar de “tonalidade” das atividades do espírito —, a habilidade que a vontade tem de tornar presente o ainda-não é exatamente oposta à lembrança. A lembrança tem uma afinidade natural com o pensamento; todo pensamento, como dissemos, é um re-pensar. Cadeias de pensamento surgem naturalmente da atividade de relembrar quase de forma automática, sem que haja qualquer interrupção. Essa é a razão pela qual a anamnesis, em Platão, pôde tornar-se uma hipótese tão plausível para a capacidade humana de aprender, e a razão pela qual Agostinho pôde equacionar de maneira tão convincente espírito e memória. A lembrança pode afetar a ALMA com um anseio pelo passado; mas essa nostalgia, embora possa conter dor e pesar, não perturba a serenidade do espírito, pois envolve coisas que estão além de nosso poder de mudar. O ego volitivo, ao contrário, olhando para a frente, e não para trás, lida com coisas que estão em nosso poder, mas cuja realização não está absolutamente assegurada. A tensão daí resultante, em contraposição à excitação bastante estimulante que pode acompanhar as atividades de resolução de problemas, causa uma espécie de inquietação na ALMA que beira facilmente a confusão, uma mistura de medo e esperança que se torna insuportável quando se descobre que, na formulação de Agostinho, querer e ser capaz de realizar, velle e posse, não são a mesma coisa. A tensão pode ser superada somente pelo fazer, isto é, pela desistência da atividade espiritual como um todo; uma mudança do querer para o pensar produz apenas uma paralisação temporária da vontade, exatamente como uma mudança do pensar para o querer é sentida pelo ego pensante como uma paralisação temporária da atividade do pensamento. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
Para falar em termos de tonalidade — isto é, em termos do modo como o espírito afeta a ALMA e produz seus humores, independentemente dos acontecimentos externos, criando assim uma espécie de vida do espírito —, o humor predominante do ego pensante é a serenidade, o simples prazer de uma atividade que nunca tem que superar a resistência da matéria. À medida que essa atividade está intimamente ligada à lembrança, seu humor inclina-se para a melancolia — segundo Kant e Aristóteles, o humor característico do filósofo. O humor predominante da Vontade é a tensão, que arruína a “tranquilidade do espírito”, a “animi tranquilitas”, de Leibniz, na qual, segundo ele, todos os filósofos sérios insistem [Op. cit., p. 110] e a qual foi por ele mesmo encontrada em cadeias de pensamento que provavam ser este o “melhor dos mundos possíveis”. Desse ângulo, a única tarefa que resta à Vontade é, na verdade, “querer não querer”, uma vez que todo ato voluntário só pode interferir na “harmonia universal” do mundo, em que “tudo o que é, visto da perspectiva do Todo, é o melhor”. [Ibidem, p. 122] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 5]
À medida que o eu se identifica com o ego volitivo — e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade —, ele existe em uma “transformação contínua de [seu próprio] futuro em um Agora; e para de ser no dia em que não há mais futuro, quando não há mais nada por vir [le jour où il n’y a plus d’avenir, où rien n’est plus à venir], quando tudo chegou e tudo está ‘realizado’” [Koyré, op. cit., p. 177]. Vista da perspectiva da Vontade, a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro; e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro. Essa perda, no entanto, coincide com a realização máxima da vida do indivíduo, que, em seu fim, tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro, se abre para a “tranquilidade do passado”, e, deste modo, para o exame, para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado. Assim, do ponto de vista do ego pensante, a velhice, nas palavras de Heidegger, é o tempo da meditação, ou, nas palavras de Sófocles, é o tempo de “paz e liberdade” [Platão, Republic, 329b-c] — libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à ALMA, à paixão da vontade chamada “ambição”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Para simplificar ao máximo: se existe algo como a vida do espírito, isso se deve ao órgão do espírito próprio para o futuro e à “inquietude” daí resultante; se existe algo como a vida do espírito, isso se deve à morte que, prevista como um fim absoluto, paralisa a vontade e transforma o futuro em um passado antecipado; os projetos da vontade em objetos de pensamento; a expectativa da ALMA em uma lembrança antecipada. Assim resumida e supersimplificada, a doutrina de Hegel soa bem moderna; o primado do futuro, em suas especulações sobre o tempo, parece estar tão bem sintonizado com a fé dogmática que seu século tinha no Progresso; sua mudança do pensamento para a vontade, e depois de volta para o pensamento parece uma solução tão engenhosa para o problema que os filósofos modernos tinham para entrar em acordo com a tradição de uma maneira aceitável para a Idade Moderna, que é tentador encerrar as considerações sobre o constructo hegeliano encarando-o como contribuição autêntica aos problemas do ego volitivo. Apesar disso, em suas especulações sobre o tempo, Hegel tem um predecessor estranho, para quem nada poderia ser mais alheio do que a noção de progresso; para quem nada poderia apresentar menos interesse do que descobrir uma lei que governasse os acontecimentos históricos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Trata-se de Plotino. Também ele sustenta que o espírito humano, a ALMA humana (psyche), é que dá origem ao tempo. O tempo é gerado pela natureza “hiperativa” da ALMA (polypragmon, um termo que sugere intensa atividade corporal); ansiando por sua própria imortalidade futura, a ALMA “busca algo além do seu estado presente”, e, assim, move-se sempre para um “próximo” e um “depois”, e para algo que não é o mesmo, mas é outra coisa, e depois outra, mais uma vez. Movendo-nos assim, percorremos um bom pedaço de nosso caminho [em direção à nossa eternidade futura] e construímos o tempo, a imagem da eternidade. Assim, “o tempo é a vida da ALMA”; uma vez que “a propagação da vida envolve o tempo”, a ALMA “produz a sucessão [de tempo] juntamente com sua atividade”, na forma de um “pensamento discursivo”, cuja discursividade corresponde ao “movimento que a ALMA faz ao passar de um modo de ser para outro”; consequentemente, o tempo é “não um acompanhamento da ALMA […] mas algo que […] está nela e com ela” [A passagem, em Plotino, é um comentário do Timeu de Platão, 37c-38b. Aparece em Ennead, III, 7, 11: “On Time and Eternity”. Utilizei uma tradução de A. H. Armstrong in Loeb Classical Library, Londres, 1967, e a tradução de Emile Bréhier para o francês, na edição bilíngue das Ennéades, Paris, 1924-38]. Em outras palavras, para Plotino, assim como para Hegel, o tempo é gerado pela inquietude inata do espírito, seu estender-se para o futuro, seus projetos e sua negação do “estado presente”. E, em ambos os casos, o verdadeiro preenchimento do tempo é a eternidade, ou, em termos seculares, existencialmente falando, a mudança do espírito do querer para o pensar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]
Na linha dessas reflexões, começaremos por nos perguntar como a filosofia grega lidou com fenômenos e dados da experiência humana que nossas “convenções” pós-clássicas acostumaram-se a atribuir à Vontade como fonte principal da ação. Para tal, voltamo-nos para Aristóteles, e isso por duas razões. Há, em primeiro lugar, o simples fato histórico da influência decisiva que a análise aristotélica da ALMA exerceu sobre todas as filosofias da Vontade — exceto no caso de Paulo, que, como veremos, contentava-se com simples descrições e recusava-se a “filosofar” sobre suas experiências. Há, em segundo lugar, o fato não menos indubitável de que nenhum outro filósofo grego chegou tão perto de reconhecer a estranha lacuna de que falamos na língua e no pensamento grego, e pode, portanto, ser um primeiro exemplo de como certos problemas psicológicos podiam ser resolvidos antes de a Vontade ser descoberta como uma faculdade autônoma do espírito. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
O ponto de partida das reflexões de Aristóteles sobre o assunto é o insight antiplatônico de que a razão por si só não move coisa alguma [De Anima, 433a21-24 e Nicomachean Ethics, 1139a35]. A questão, portanto, que orienta sua investigação é a seguinte: “O que é que, na ALMA, origina o movimento?” [Para essa citação e para o que se segue, ver De Anima, Livro III, cap. 9 e 10] Aristóteles admite a noção platônica de que a razão dá ordens (keleuei) porque sabe o que se deve buscar e o que se deve evitar, mas nega que essas ordens sejam necessariamente obedecidas. O homem incontinente (seu exemplo paradigmático ao longo de toda essa investigação) segue seus desejos independentemente das ordens da razão. Por outro lado, por recomendação da razão, pode-se resistir a esses desejos. Logo, tampouco os desejos têm uma força inerente em si: por si sós, não originam movimento. Aqui Aristóteles está lidando com um fenômeno que, mais tarde, depois da descoberta da Vontade, aparece como a distinção entre vontade e inclinação. A distinção vem a tornar-se a pedra angular da ética kantiana, mas aparece primeiramente na filosofia medieval — por exemplo, na distinção de Mestre Eckhart entre “a inclinação para pecar e a vontade de pecar, não sendo a inclinação um pecado”, o que deixa a própria questão dos atos maus completamente sem explicação: “Se nunca fiz o mal, mas apenas tive a vontade do mal […] trata-se de um pecado tão grande quanto matar todos os homens, embora eu não tenha feito nada.” [Meister Eckhart, Franz Pfeiffer (ed.), Göttingen, 1914, pp. 551-552] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
Parece que o próprio Aristóteles considerou esse esboço de relação entre a razão e o desejo insatisfatório para explicar adequadamente a ação humana. Porque ela se baseia ainda, embora com modificações, na dicotomia platônica entre razão e desejo. No primeiro Protreptikos, Aristóteles dera a seguinte interpretação: “Uma parte da ALMA é a Razão. É ela a soberana e juíza natural das coisas que nos dizem respeito. A natureza da outra parte é segui-la e submeter-se a seu jugo.” [Citado de Werner Jaeger, Aristotle, Londres, 1962, p. 249. Jaeger nota também que o “terceiro livro Sobre a ALMA, que citei aqui, parece peculiarmente platônico”. (p. 332).] Veremos mais adiante que dar ordens está entre as características principais da Vontade. Em Platão, a razão podia assumir essa função por causa do pressuposto de que a razão diz respeito à verdade, e a verdade de fato compele. Mas a razão em si, à medida que leva à verdade, é persuasiva, e não imperativa, no diálogo sem som do pensamento de mim comigo mesmo; somente aqueles que não são capazes de pensar precisam ser constrangidos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
Dentro da ALMA humana, a razão só se torna um princípio “governante” e comandante por causa dos desejos que são cegos e destituídos de razão, e a que devem supostamente, portanto, obedecer cegamente. Essa obediência é necessária para a tranquilidade do espírito, a harmonia imperturbável do dois-em-um, que é assegurada pelo princípio da não-contradição — não se contradiga, permaneça amigo de si mesmo: “Todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma.” [Nicomachean Ethics, 1168b6] Quando o desejo não se submete às ordens da razão, o resultado, em Aristóteles, é o “homem-vil”, que se contradiz e está em “desacordo consigo mesmo” (diapherein). Os homens maus “esquivam-se à própria vida, destruindo a si mesmos”, incapazes de suportar a própria companhia, ou “buscam a companhia de outras pessoas com quem possam passar seus dias; mas evitam a própria companhia. Pois quando estão sozinhos lembram-se de muitos acontecimentos que causam desassossego […] mas enquanto estão com outros, podem esquecer […]. Não têm nenhuma amizade por si mesmos […] sua ALMA é dividida por forças contrárias […] uma parte arrasta-os para um lado, a outra, para outro, como se quisessem esquartejar o indivíduo […]. Os homens maus estão repletos de arrependimentos” [Ibidem, 1166b5-25]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
Essa descrição do conflito interno, um conflito entre razão e apetites, pode funcionar na explicação da conduta — nesse caso a conduta, ou melhor, a má conduta do homem incontinente. Não explica a ação, o tópico da ética aristotélica, pois a ação não é a simples execução das ordens da razão; ela é em si uma atividade da razão, embora não seja uma atividade da “razão teórica”, mas daquilo que, no tratado Sobre a ALMA, se chama “nous praktikos”, razão prática. Nos tratados éticos, ela é chamada phronésis, uma espécie de insight e entendimento das coisas que são boas ou ruins para os homens, um tipo de sagacidade — nem sabedoria nem inteligência — necessária nos assuntos humanos, que Sófocles, seguindo o que era de costume, atribuiu à velhice [Ver as últimas linhas de Antígona], e que Aristóteles transformou em conceito. Phronesis é uma exigência em qualquer atividade que envolva coisas cujo alcance está no poder do homem. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]
Epiteto foi fundamentalmente um professor. E, uma vez que ensinava e não escrevia, [Todos os trabalhos que temos, inclusive os Discourses, são “aparentemente quase um registro estenográfico de suas conferências e discussões informais, anotadas e compiladas por um de seus alunos, Arriano”. Ver Whitney J. Oates, Introdução Geral para seu The Stoic and Epicurean Philosophers, Modern Library, Nova York, 1940, cuja tradução sigo frequentemente.] considerava-se aparentemente um seguidor de Sócrates, esquecendo-se, como a maioria dos chamados seguidores de Sócrates, de que Sócrates nada tinha a ensinar. De qualquer forma, Epiteto considerava-se um filósofo e definia o assunto da filosofia como “a arte de viver a própria vida” [Discourses, livro II, cap. xv]. Essa arte consistia principalmente em ter um argumento pronto para qualquer emergência, para cada situação de sofrimento agudo. Seu ponto de partida era o omnes homines beati esse volunt da Antiguidade: todos os homens desejam ser felizes, e a única questão para a filosofia era descobrir como alcançar esse objetivo patente. Só que Epiteto, de acordo com a inclinação da época e em contraste com a da Era précristã, estava convencido de que a vida — assim como ela é dada na Terra, tendo a morte como fim inevitável, e sendo, portanto, acossada por medos e temores — era incapaz de trazer a verdadeira felicidade sem que houvesse um esforço especial da vontade do homem. Assim, “felicidade” muda de significado; não é mais entendida como eudaimonia, a atividade de eu zén, viver bem, mas como euroia biou, uma metáfora estoica indicativa de uma vida que flui livremente, sem perturbar-se com os vendavais, as tempestades ou os obstáculos. As características dessa felicidade eram serenidade, galéné, a bonança depois da tempestade, e tranquilidade, eudia, o tempo bom [Ibidem, livro II, cap. xviii] — metáforas que a Antiguidade clássica desconhecia. Todas elas relacionam-se com uma disposição da ALMA que é melhor descrita em termos negativos (como ataraxia) e que consiste em algo totalmente negativo: ser “feliz” agora significava fundamentalmente “não ser desgraçado”. A filosofia podia ensinar “o processo da razão”, os argumentos, “como armas brilhantes e prontas para o uso” [Ibidem, livro I, cap. xxvii], a serem dirigidos contra o infortúnio da vida real. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
A razão descobre que o que traz a desgraça não é a ameaça externa da morte, mas o medo interior da morte; não a dor, mas sim o medo da dor — “não é a morte ou a dor que aterroriza, mas o medo da dor ou da morte” [Ibidem, livro II, cap. i]. A única coisa certa a se temer é, portanto, o próprio medo; e se os homens não podem escapar à dor ou à morte, podem por outro lado dissuadir-se do medo dentro de si, eliminando as impressões que coisas atemorizantes deixaram em seus espíritos: “Se guardamos nosso medo, não para a morte ou para o exílio, mas para o próprio medo, então deveríamos treinar para evitar o que pensamos de mal.” [Ibidem, livro II, cap. xvi] (Basta lembrar os inúmeros exemplos que atestam o papel desempenhado, na morada da ALMA, por um medo avassalador de ter medo; ou imaginar como seria temerária a coragem humana se a dor experimentada não deixasse lembrança — a “impressão” de Epiteto; basta isso para compreendermos o valor psicológico terra-a-terra dessas teorias aparentemente improváveis.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
A única força que pode obstruir esse consentimento básico e ativo dado pela vontade é ela mesma. Assim, o critério para a conduta correta é o seguinte: “Queira estar satisfeito, tu contigo mesmo” (“theléson aresai autos seautó”). E Epiteto acrescenta: “Queira aparecer nobre diante do deus” (Theléson kalos phanénai tó Theó”) [Discourses, livro II, cap. xviii], sendo que o adendo é, na verdade, redundante, já que Epiteto não acredita em um Deus transcendente, mas sustenta que a ALMA é semelhante a Deus e que o deus está “dentro de ti, tu és um fragmento dele” [Ibidem, livro II, cap. viii]. O ego volitivo acaba, então, não sendo menos dividido em dois do que o dois-em-um socrático do diálogo de pensamento de Platão. Mas, como vimos em Paulo, os dois no ego volitivo estão longe de manter entre si um relacionamento harmonioso e amigável, embora em Epiteto sua relação francamente antagônica não submeta o eu aos extremos de desespero que tanto ouvimos na lamentação de Paulo. Epiteto caracteriza a relação entre os dois como uma permanente “luta” (agón), uma competição olímpica que exige uma suspeita sempre alerta de mim para comigo: “Em uma palavra: [o filósofo, que sempre olha para si para o bem ou para o mal] mantém a guarda contra si mesmo como a mantém contra seu próprio inimigo [hós echthron heautou], quando está à sua espera.” [The Manual, 51, 48] Basta relembrarmos o insight de Aristóteles (“todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma”) para reavaliarmos a distância percorrida pelo espírito humano desde a Antiguidade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]
A questão cuja resposta adiou por tantos anos é o ponto de partida para uma filosofia da Vontade própria de Agostinho. Mas foi em uma interpretação minuciosa da Epístola de Paulo aos Romanos que ele a concebeu originalmente. Nas Confissões, bem como nas duas seções finais de O livre-arbítrio, tira conclusões filosóficas e enuncia as consequências do estranho fenômeno (o de que é possível querer e, na ausência de qualquer empecilho externo, ser, ainda assim, incapaz de realizar) que Paulo descrevera em termos de leis antagônicas. Agostinho, porém, não fala de duas leis, mas de “duas vontades, uma nova e a outra antiga, uma carnal e a outra espiritual”, e descreve em detalhe, assim como Paulo, a maneira como essas vontades lutaram “dentro” dele e como “a discórdia entre elas [lhe] dilacerou a ALMA” [Confessions, livro VIII, cap. v]. Em outras palavras, toma cuidado para evitar sua própria heresia maniqueísta inicial, que ensina que dois princípios antagônicos governam o mundo, um bom e um mau, um carnal e um espiritual. Para ele, agora há somente uma lei, e o primeiro insight, portanto, é o mais óbvio e também o mais surpreendente: “Non hoc vele quod posse” — “Querer e poder não são o mesmo.” [Ibidem, cap. viii] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
A faculdade da Escolha, tão decisiva para o liberum arbitrium, aplica-se aqui não à seleção deliberativa de meios para um fim, mas principalmente — e, em Agostinho, exclusivamente —, à escolha entre velle e nolle, entre querer e não-querer. Este nolle nada tem a ver com o querer-não-querer e não pode ser traduzido como “eu-deixo-de-querer”, porque isso sugere ausência de vontade. Nolle não é menos ativamente transitivo do que velle, e não é menos uma faculdade de vontade: se quero o que não desejo, trata-se de não-querer meus desejos; e posso do mesmo jeito não-querer o que a razão me diz estar certo. Em todo ato de vontade há um “eu-quero” e um “não-quero” envolvidos. São essas as duas vontades cuja discórdia Agostinho disse que “[lhe] dilacerou a ALMA”. Seguramente “aquele que quer, quer alguma coisa”, e este algo lhe é apresentado “exteriormente, através dos sentidos do corpo, ou vem ao espírito por meios ocultos”; mas o que importa é que nenhum destes objetos determina a vontade [On Free Choice of the Will, livro III, cap. xxv]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Finalmente, ainda no rastro das dificuldades descritas porém não explicadas na Epístola aos Romanos, Agostinho vem a interpretar o lado escandaloso da doutrina da graça de Paulo: “Veio a Lei para que crescesse a perdição; mas onde o pecado cresceu, a graça abundou ainda mais.” Partindo-se daí, fica difícil não chegar à seguinte conclusão: “Façamos o mal para que o bem frutifique.” Ou, de forma mais amena, valeu ter sido incapaz de fazer o bem em virtude da alegria irresistível da graça — como disse uma vez o próprio Agostinho [On Grace and Free Will, cap. xiiv]. Sua resposta, nas Confissões, aponta para os estranhos caminhos da ALMA até mesmo na falta de qualquer experiência especificamente religiosa. A ALMA “deleita-se mais com encontrar ou reaver as coisas que ama do que se as tivesse […] possuído sempre. O general vitorioso triunfa […], e quanto maior o perigo no combate, maior gozo no triunfo […]. Um amigo está doente […]. Melhora […]. E embora não tenha recuperado a força anterior, já há tanto júbilo que é como se não existisse o tempo em que ele caminhava com mais força e vigor”. E é assim com todas as coisas; a vida humana está “repleta de testemunhos” disso. “A alegria maior é precedida de uma dor maior” — este é o “modo de ser que cabe” a todas as coisas vivas, do “anjo ao menor verme”. Até Deus, uma vez que Ele é um deus vivo, “sente mais alegria por um pecador arrependido do que por 99 que não precisam arrepender-se”. [Confessions, livro VIII, cap. iii, 6-8] Esse modo de ser (modus) é igualmente válido para as coisas vis e para as nobres, para as mortais e para as divinas. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Voltamos à questão da Vontade nas Confissões, que são quase totalmente não argumentativas e ricas no que hoje chamamos de descrições “fenomenológicas”. Pois embora Agostinho comece por conceituar a posição de Paulo, ele vai muito além, além até de suas próprias primeiras conclusões conceituais — de que “querer e estar apto a executar não são a mesma coisa”, de que “a lei não poderia mandar se não houvesse vontade, nem a graça poderia ajudar se a vontade fosse suficiente”, de que o modo de perceber de nosso espírito é um modo que procede apenas por uma sucessão de opostos, o dia tornando-se noite e a noite tornando-se dia, e que aprendemos sobre a justiça somente tendo a experiência da injustiça, sobre a coragem somente por meio da covardia, e assim por diante. Refletindo sobre o que de fato acontecera durante o “combate ardoroso que travara consigo mesmo” antes de sua conversão, Agostinho descobriu que a interpretação que Paulo fazia de uma luta entre carne e espírito estava errada. Pois “meu corpo obedecia mais facilmente à mais fraca das vontades de minha ALMA, movendo seus membros a um mínimo sinal, do que minha ALMA obedecia a si mesma para efetuar essa grande vontade que só na vontade pode ser realizada” [Confessions, livro VIII, cap. viii]. Assim, o problema não estava na natureza dual do homem, metade carne e metade espírito: encontrava-se na própria faculdade da Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
O Amor é o “peso da ALMA”, sua lei da gravidade, aquilo que leva o movimento da ALMA ao repouso. Um tanto influenciado pela física aristotélica, Agostinho sustenta que o fim de todo movimento é o repouso, compreendendo agora as emoções — movimentos da ALMA — em analogia com os movimentos do mundo físico. Pois “os corpos nada mais desejam por seu peso do que a ALMA deseja por seu amor”. Assim, nas Confissões: “Meu peso é o meu amor; é ele que me leva aonde quer que eu vá.” [Epistolae, 157, 2, 9; 55, 10, 18; Confissões, livro XIII, cap. ix] A gravidade da ALMA, a essência de quem é alguém, e o que, como tal, é impenetrável aos olhos humanos, manifesta-se nesse amor. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Devemos reter o seguinte: primeiro, a cisão dentro da Vontade é um conflito, não um diálogo, e independe do conteúdo daquilo que se quer. Uma vontade ruim não é menos dividida do que uma boa, e vice-versa. Segundo, a vontade, comandando o corpo, não passa de um órgão executivo do espírito, e, como tal, não apresenta maiores problemas. O corpo obedece ao espírito porque não possui qualquer órgão que torne possível a desobediência. A vontade, ao dirigir-se a si mesma, desperta a contravontade, porque o intercâmbio se dá completamente no espírito; uma competição só é possível entre iguais. Uma vontade que fosse “plena”, sem uma contravontade, já não poderia ser adequadamente chamada de vontade. Terceiro, uma vez que está na natureza da vontade ordenar e exigir obediência, está também na natureza da vontade resistir a si mesma. Finalmente, no quadro das Confissões, não se dá qualquer solução ao enigma dessa faculdade “monstruosa”; permanece um mistério a explicação de como a vontade, dividida contra si mesma, chega finalmente ao momento em que se torna “plena”. Se é esse o modo como a vontade funciona, como é que ela pode chegar a nos fazer agir — a preferir, por exemplo, o roubo ao adultério? Pois as “flutuações da ALMA” de Agostinho, flutuações entre muitos fins igualmente desejáveis, são muito diferentes das deliberações de Aristóteles, que envolvem não os fins, mas os meios para um fim que é dado pela natureza humana. Nas principais análises de Agostinho, semelhante árbitro final nunca aparece, a não ser no término das Confissões, quando ele subitamente começa a falar da Vontade como uma espécie de Amor, “o peso de nossa ALMA”, sem dar, entretanto, qualquer explicação para essa estranha identificação. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
O importante aqui é que uma tal relação mutuamente predicada pode ocorrer apenas entre “iguais”; portanto, não se pode aplicá-la à relação entre o corpo e a ALMA, entre o homem carnal e o espiritual, embora eles sempre apareçam juntos — porque aqui a ALMA é obviamente o princípio governante. Para Agostinho, no entanto, o misterioso três-em-um tem que ser encontrado em algum lugar na natureza humana, uma vez que Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança; e uma vez que é precisamente o espírito humano que distingue o homem de todas as outras criaturas, o três-em-um será provavelmente encontrado na estrutura do espírito. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Para resumir: a Vontade de Agostinho, que não é concebida como uma faculdade isolada, mas em sua função dentro do espírito como um todo, em que todas as faculdades individuais — memória, intelecto e vontade — “referem-se mutuamente” [Ibidem, livro X, cap. xi, 18], encontra redenção ao transformar-se em Amor. O Amor como uma espécie de vontade duradoura e livre de conflitos apresenta uma semelhança óbvia com o “eu que perdura” de Mill, que prevalece finalmente nas decisões da vontade. O Amor de Agostinho exerce sua influência pelo “peso” — “a vontade assemelha-se a um peso” [Ibidem, livro XI, cap. ix. 18] —, junta-se à ALMA, interrompendo assim suas flutuações. Os homens não vêm a ser justos por saber o que é justo, mas por amar a justiça. O amor é a gravidade da ALMA, ou o contrário: “gravidade específica dos corpos é, por assim dizer, seu amor.” [The City of God, livro XI, cap. xxviii] No mais, o que se salva nessa transformação da concepção mais antiga de Agostinho é o poder que a Vontade tem de afirmar ou negar; não há maior afirmação de algo ou de alguém do que amar este algo ou alguém, isto é, do que dizer: quero que tu sejas — Amo: Volo ut sis. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
É o caráter de individualidade do Homem que explica o fato de Agostinho dizer que não havia “ninguém” antes dele, isto é, ninguém que se pudesse chamar de “pessoa”; esta individualidade manifesta-se na Vontade. Agostinho propõe o caso dos gêmeos idênticos, ambos “com temperamentos semelhantes do corpo e da ALMA”. Como podemos distingui-los? O único dom que permite a distinção entre os dois é sua vontade — “se ambos são igualmente tentados e um cai na tentação enquanto o outro permanece impassível […] o que mais pode causar isso senão suas próprias vontades, nos casos […] em que o temperamento é idêntico?” [Ibidem, cap. vi] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]
Os autores escolásticos usam a experiência somente para dar um exemplo que sustente seus argumentos; a experiência em si não inspira o argumento. O que na verdade surge dos exemplos é uma espécie curiosa de casuística, uma técnica de forçar princípios gerais a envolver casos particulares. O último autor que ainda escreveu claramente sobre as perturbações de sua ALMA ou espírito, totalmente alheio a interesses livrescos, foi Anselmo, e isso duzentos anos antes de Tomás. Esse fato não significa dizer, é claro, que os autores escolásticos não estivessem interessados nas questões reais, e que buscassem inspiração simplesmente em argumentos, mas sim que estamos agora entrando em uma “era de comentadores” (Gilson), cujos pensamentos sempre se guiavam por alguma autoridade escrita; e seria um grave erro acreditar que tal autoridade tivesse necessária ou mesmo primordialmente que ser escolástica ou bíblica. A despeito disso, Gilson — cuja mentalidade harmonizava-se de forma tão admirável com as exigências de seu grande tema, e que reconhecia que “é por causa das Escrituras que há uma filosofia que é cristã, [assim como] é por causa da tradição grega que o cristianismo possui uma filosofia” — pôde sugerir a sério que a razão pela qual Platão e Aristóteles não conseguiram penetrar na verdade final residia na infelicidade de não terem tido “a vantagem de ler as primeiras linhas do Gênese […] se eles as tivessem lido, toda a história da filosofia poderia ter sido diferente”. [The Spirit of Medieval Philosophy, pp. 207 e 70] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]
Situando-se no momento decisivo — o início do século XIV — em que a Idade Média transformava-se em Renascimento, ele poderia ter dito o que Pico della Mirandola disse no final do século XV, em plena Renascença: “Sem compromisso com qualquer doutrina, percorri a filosofia de todos os mestres, investiguei todos os livros, conheci todas as escolas.” [Citado de Kristeller, op. cit., p. 58.] Só que Scotus não teria partilhado com os filósofos posteriores a confiança ingênua no poder persuasivo da razão. No centro de sua reflexão e no centro de sua misericórdia está a firme convicção de que, no que tange às questões que “dizem respeito a nosso fim e à nossa perpetuidade sempiterna, o homem mais culto e mais genial nada poderia conhecer pela razão natural” [Citado de Wolter, op. cit., p. 162. Tradução da autora.]. Pois “àqueles que não têm fé, a razão correta, como parece a si mesma, mostra que a condição de sua natureza é ser mortal tanto em corpo quanto em ALMA” [Ibidem, p. 161. Trad. da autora]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Uma dúvida radical que rejeite o testemunho dos que presenciaram e que confie apenas na razão é impossível para o homem; trata-se de um simples artifício retórico do solipsismo, constantemente refutado pela própria existência daquele que duvida. Todos os homens vivem juntos na base sólida de uma fides acquisita, uma fé adquirida que têm em comum. O teste para os incontáveis fatos cuja fidedignidade sempre tomamos como certa é que façam sentido para os homens ao se constituírem. E, neste aspecto, o dogma da ressurreição faz muito mais sentido do que a noção filosófica da imortalidade da ALMA: uma criatura dotada de um corpo e de uma ALMA pode ver sentido somente em uma vida eterna na qual ela é ressuscitada da morte do jeito como é e se conhece. As “provas” dos filósofos para a imortalidade da ALMA, mesmo quando logicamente corretas, seriam irrelevantes. Para que seja existencialmente relevante para o viator, o viajante ou peregrino na terra, a vida eterna deve ser uma “segunda vida”, e não um modo totalmente diferente de ser como uma entidade incorpórea. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Quando Scotus especula sobre uma vida após a morte — isto é, sobre uma existência “ideal” para o homem como homem —, esta tão almejada transformação da vontade em amor com seu inerente delectatio é decisiva. A transformação do querer em amar não significa que amar deixe de ser uma atividade cujo fim está em si mesma: logo, a bem-aventurança futura, a beatitude que se goza na vida eterna, não pode de modo algum consistir no descanso e na contemplação. A contemplação do summum bonum, da “coisa” mais alta, portanto, Deus, seria o ideal do intelecto, que sempre se baseia na intuição, a apreensão de uma coisa em seu “ser-isto” [Thisness], haecceitas, que é imperfeita nesta vida não somente porque aqui o que é mais alto permanece ignorado, mas também porque a intuição do “ser-isto” é imperfeita: o “intelecto […] recorre aos conceitos universais precisamente porque é incapaz de apreender a hecceidade” [Bettoni, Duns Scotus, p. 122]. A noção de “paz eterna”, ou de Descanso, surge da experiência da inquietação, dos desejos e apetites de um ser necessitado que pode transcendê-los em atividades do espírito, sem jamais ser capaz de escapar completamente a eles. O que a Vontade em um estado de bem-aventurança, isto é, em uma vida após a morte, não precisa mais ou não consegue mais ter é a rejeição e o ódio, mas isso não significa que o homem em estado de bem-aventurança tenha perdido a faculdade de dizer “sim”. A essa aceitação incondicional Scotus dá o nome de “Amor”: “Amo: volo ut sis.” “A beatitude é, portanto, o ato pelo qual a vontade vem a ter contato com o objeto apresentado a ela pelo intelecto e o ama, satisfazendo assim plenamente seu desejo natural por ele.” [Bonansea, op. cit., p. 120] Aqui novamente o amor é entendido como uma atividade, mas não mais como uma atividade do espírito, uma vez que seu objeto não está mais ausente dos sentidos e não é mais conhecido imperfeitamente pelo intelecto. Pois a “beatitude […] consiste no alcance pleno e perfeito do objeto como ele é em si, e não simplesmente como está no espírito” [Ibidem, p. 119]. O espírito, transcendendo as condições existenciais do “viajante” ou peregrino na terra, tem uma indicação desta bem-aventurança futura em sua experiência de pura atividade, isto é, em uma transformação da vontade em amor. Recaindo na distinção agostiniana entre uti e frui, usar algo para alguma outra coisa e desfrutar de algo por si mesmo, Scotus diz que a essência da beatitude consiste no fruitio, “o amor perfeito a Deus por amor a Deus […] e é assim distinto do amor a Deus por amor a si mesmo”. Mesmo se este último é amor pelo bem da salvação da própria ALMA, ainda assim é amor concupiscentiae, amor desejoso [Ibidem, p. 120]. Já em Agostinho encontramos a transformação da vontade em amor, e é bastante provável que as reflexões de ambos os pensadores fossem guiadas pelas palavras de Paulo sobre “o amor que jamais acaba”, nem mesmo “quando vier o que é perfeito” e tudo o mais tiver sido “aniquilado” (I Coríntios 13:8-13). Em Agostinho, a transformação se dá pela força unificadora da vontade; não há maior força unificadora do que o amor com que os amantes se amam (“maravilhosamente unidos”) [On the Trinity, livro X, cap. viii, 11]. Mas, para Scotus, a base de experiência para a eternidade do amor está em sua concepção de um amor que não só está por assim dizer esvaziado, purificado dos desejos e das necessidades, mas é também um amor no qual a própria faculdade da Vontade é transformada em atividade pura. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]
Foi nessa região de especulação pura que a Vontade apareceu durante o curto período do idealismo alemão. “Na instância última e mais alta”, declarou Schelling, “não há outro Ser senão a Vontade. A Vontade é Ser primordial, e todos os predicados aplicam-se somente a ela — a ausência de fundamento, a eternidade, a independência do tempo, a autoafirmação! Toda filosofia luta apenas para encontrar esta expressão maior.” [Ibidem, p. 350] E citando essa passagem em What is called thinking? Heidegger logo acrescenta: “Os predicados, pois, que o pensamento metafísico atribuiu desde a Antiguidade ao Ser, Schelling encontra-os em sua forma final e mais alta no querer. A Vontade nesse querer não significa aqui uma capacidade da ALMA humana, entretanto; a palavra ‘querer’ designa aqui o Ser dos seres como um todo” (grifos nossos) [Trad. F. D. Wieck e J. G. Gray, Nova York, Evanston, Londres, 1968, p. 91]. Sem dúvida, Heidegger está certo; a Vontade de Schelling é uma entidade metafísica; mas, ao contrário das falácias metafísicas mais comuns e mais antigas, ela é personificada. Em um contexto diferente e de forma mais precisa, o próprio Heidegger sintetiza o significado deste Conceito personificado: a falsa “opinião de que a vontade humana é a origem da vontade-de-querer surge [facilmente], quando, ao contrário, é a Vontade-de-querer que quer o homem, sem que ele sequer experimente a essência de tal vontade” [Vorträge und Aufsätze, p. 89]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]
Isso pode ficar mais claro quando consideramos as metáforas-guia em A gaia ciência, uma relacionada com a vida, outra que introduz o tema do “eterno retorno” — “a ideia básica do Zaratustra”, como ele a designou em Ecce Homo, e também a ideia básica de seus aforismos póstumos reunidos sob o título enganador e não nietzschiano de A vontade de potência. A primeira aparece sob o título de “Vontade e onda” (Wille und Welle): Com que avidez aproxima-se esta onda, como se estivesse à procura de algo! Com que pressa terrível ela rasteja até o fundo das ranhuras mais secretas deste rochedo labiríntico! […] Parece que há ali escondido algo de valor, de infinito valor. — E agora volta, um pouco mais lentamente, mas ainda branca de emoção; estará desapontada? Terá encontrado aquilo que procurava? Estará fingindo estar desapontada? — Mas já se aproxima outra onda, ainda mais ávida e selvagem do que a primeira, e sua ALMA também parece estar cheia de segredos e de gana para desenterrar tesouros. É assim que vivem as ondas, é assim que vivemos nós também, nós que queremos […]. Lançai-vos como quiserdes, impetuosas, bramindo de prazer e de maldade — ou mergulhai de novo […] e lançai vossa infinita crina branca de espuma e de musgo sobre elas: Tudo aprovo, pois tudo vos serve tão bem, e tenho uma disposição tão boa para convosco para tudo. […] Pois […] conheço-vos e também a vosso segredo, conheço vossa raça! Vós e eu — não somos da mesma raça? — Vós e eu — não temos o mesmo segredo? [grifos nossos]. [The Gay Science, trad. Walter Kaufmann, Vintage Books, Nova York, 1974, Livro VI, n° 310, pp. 247-248] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Aqui, a princípio, é como se estivéssemos lidando com uma metáfora perfeita, uma “semelhança perfeita de duas relações entre coisas completamente diferentes” [Ver O Pensar, cap. II]. A relação entre as ondas e o mar, do qual elas se erguem sem intenção ou meta, criando uma euforia enorme e sem propósito, assemelha-se e, portanto, ilumina o turbilhão que a Vontade provoca na morada da ALMA — parecendo estar sempre em busca de algo, até que se acalma, ainda que sem se extinguir, sempre pronta para um novo levante. A Vontade aprecia o querer assim como o oceano aprecia as ondas, pois “a não querer, o homem prefere ainda querer o nada” [Toward a Genealogy of Morals, n° 28]. Em um exame mais detido, entretanto, parece que algo bastante decisivo aconteceu àquilo que era originalmente uma metáfora homérica. Aquelas metáforas, como vimos, eram sempre irreversíveis: olhando para as tempestades no oceano, nos lembraríamos de nossas emoções interiores; mas aquelas emoções nada nos informavam sobre o mar. Na metáfora nietzschiana, as duas coisas diferentes que a metáfora reúne não apenas se assemelham; para Nietzsche, elas são idênticas; e o “segredo” do qual ele tanto se orgulha é precisamente seu conhecimento dessa identidade. Vontade e Onda são a mesma coisa, e pode-se mesmo ficar tentado a supor que as experiências do ego volitivo fizeram com que Nietzsche descobrisse o turbilhão do mar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Em outras palavras, as aparências do mundo transformaram-se em um mero símbolo das experiências interiores, com a consequência de que a metáfora, originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o ego pensante ou o volitivo e o mundo das aparências, entra em colapso. O colapso ocorreu não por causa de um peso superior dado aos “objetos” que confrontam a vida humana, mas sim por uma adesão sectária ao aparato da ALMA humana, cujas experiências são entendidas como tendo absoluta primazia. Há inúmeras passagens em Nietzsche que apontam para este antropomorfismo fundamental. Para citar apenas um exemplo: “Todas as pressuposições da teoria mecanicista [que em Nietzsche é idêntica às “hipóteses científicas”] — matéria, átomo, gravidade, pressão e força — não são ‘fatos-em-si’, mas sim interpretações feitas com o auxílio de ficções físicas.” [The Will to Power, n° 689, p. 368] A ciência moderna chegou a suspeitas estranhamente semelhantes nas reflexões especulativas sobre seus próprios resultados: os “astrofísicos [de hoje] […] devem considerar a possibilidade de que seu mundo exterior seja somente o nosso mundo interior virado ao avesso” (Lewis Mumford). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Com a eliminação da causa e do efeito, não faz mais sentido a estrutura linear do Tempo cujo passado é sempre entendido como causa do presente, e cujo presente é o tempo verbal da intenção e da preparação dos projetos para o futuro, e cujo futuro é o resultado de ambos. Além disso, esse constructo temporal desintegra-se sob o peso do insight não menos factual de que “Tudo passa”, que o futuro traz apenas aquilo que terá sido e, portanto, que tudo o que é “merece passar” [Thus Spoke Zarathustra, parte II, in The Portable Nietzsche, p. 252]. Assim como cada “eu-quero” em sua identificação com a parte que comanda no dois-em-um antecipa triunfalmente um “eu-posso”, também a expectativa, a disposição com a qual a Vontade afeta a ALMA, contém em si a melancolia de um e-isto-também terá-sido, a previsão do passado do futuro que reafirma o Passado como a forma verbal dominante do Tempo. A única possibilidade de se redimir deste Passado devorador é o pensamento de que tudo o que passa retorna, isto é, um constructo cíclico do tempo que faz com que o Ser oscile dentro de si mesmo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]
Tomar como modelo as crenças religiosas em plena Idade do Iluminismo poderia ter bastado caso só estivesse em jogo a autoridade de uma nova lei; e de fato é impressionante que encontremos referências explícitas a um “estado futuro de recompensas e punições” inseridas em todas as constituições estaduais norte-americanas, apesar de não encontrarmos nenhuma alusão a uma vida eterna na Declaração de Independência ou na Constituição dos Estados Unidos. Os motivos para tais tentativas desesperadas de se agarrar a uma fé que em realidade não poderia sobreviver à emancipação contemporânea do domínio secular em relação à Igreja eram completamente pragmáticos e altamente práticos. Em seu discurso sobre o Ser Supremo e a imortalidade da ALMA, na Convenção Nacional de 7 de maio de 1794, Robespierre pergunta: “Quel avantage trouves-tu à persuader l’homme qu’une force aveugle préside à ses destins, et frappe au hasard le crime et la vertu?” (“Que vantagem vês em persuadir os homens a acreditar que uma força cega preside seus destinos, lançando ao acaso o crime e a virtude?”), e nos Discourses on Davila John Adams fala do mesmo modo curiosamente retórico sobre “o mais lamentável de todos os credos, aquele de que os homens não passam de pirilampos, e que a tudo isto falta um pai […] [o que] tornaria o próprio assassinato tão indiferente quanto atirar em uma tarântula, e o extermínio da nação Rohilla tão inocente quanto engolir ácaros junto com um pedaço de queijo” [Oeuvres, ed. Laponneraye, 1840, vol. III, p. 623; The Works of John Adams, ed. Charles Francis Adams, Boston, 1850-1856, vol. VI, 1851, p. 281]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]
…Kant enfatiza que pelo menos uma de nossas faculdades, a faculdade do juízo, pressupõe a presença de outros. E não só aquilo que terminologicamente chamamos de juízo; preso a isto está… todo o aparato da ALMA, por assim dizer. Comunicando nossos sentimentos, nossos prazeres e deleites desinteressados, dizemos nossas escolhas e escolhemos nossas companhias. “Preferiria errar com Platão a acertar com os pitagóricos” [Cícero]. [Arendt, Vida do Espírito Apêndice O Julgar ]