Arendt (CH:§26) – Ação

Roberto Raposo

Ao contrário da fabricação, a ação jamais é possível no isolamento. Estar isolado é estar privado da capacidade de agir. A ação e o discurso necessitam tanto da circunvizinhança de outros quanto a fabricação necessita da circunvizinhança da natureza, da qual obtém matéria-prima, e do mundo, onde coloca o produto acabado. A fabricação é circundada pelo mundo e está em permanente contato com ele; a ação e o discurso são circundados pela teia de atos e palavras de outros homens, e estão em permanente contato com ela. O mito popular de um «homem forte» que, isolado dos outros, deve sua força ao fato de estar só, é mera superstição baseada na ilusão de que podemos «fazer» algo na esfera dos negócios humanos — «fazer» instituições ou leis, por exemplo, como fazemos mesas e cadeiras, ou fazer o homem «melhor» ou «pior» 1 — ou é, então, a desesperança consciente de toda ação, política ou não, aliada à esperança utópica de que seja possível lidar com os homens como se lida com qualquer «material» 2. A força de que o indivíduo necessita para qualquer processo de produção, seja intelectual ou puramente física — torna-se inteiramente inútil quando se trata de agir. A história está repleta de exemplos da impotência do homem forte e superior que é incapaz de angariar o auxílio ou a cooperação de seus semelhantes — fracasso que é frequentemente (201) atribuído à fatal inferioridade da multidão e ao ressentimento que os homens eminentes inspiram aos medíocres. Mas, por verdadeiras que sejam estas observações, não descem ao fundo da questão.

Como exemplo do que está em jogo neste particular, podemos lembrar que o grego e o latim, ao contrário das línguas modernas, possuem duas palavras totalmente diferentes, mas correlatas, para designar o verbo «agir». Aos dois verbos gregos archein («começar», «ser o primeiro» e, finalmente, «governar») e prattein («atravessar», «realizar” e «acabar») correspondem os dois verbos latinos agere («pôr em movimento», «guiar») e gerere (cujo significado original é «conduzir»)3. É como se toda ação estivesse dividida em duas partes: o começo, feito por uma só pessoa, e a realização, à qual muitos aderem para «conduzir”, «acabar», levar a cabo o empreendimento. Não só as palavras se correlacionam de modo análogo, como a história do seu emprego é também semelhante. Em ambos os casos, as palavras que originalmente designavam apenas a segunda parte da ação, ou seja, sua realização — prattein e gerere — passaram a ser os termos aceitos para designar a ação em geral, enquanto as palavras que designavam o começo da ação ganharam significado especial, pelo menos na linguagem política. Archein passou a significar, principalmente, «governar» e «liderar», quando empregada de maneira específica, e agere passou a significar «liderar», ao invés de «pôr em movimento». (p. 201-202)

Original

  1. Platão já recriminava Péricles por não haver «tornado melhor o cidadão», pois, no fim de sua carreira, os atenienses eram piores que antes (Górgias 515).[↩]
  2. A história política recente está repleta de exemplos indicativos de que a expressão «material humano» não é simplesmente metáfora inofensiva. O mesmo se pode dizer a inúmeras experiências científicas modernas no campo da engenharia social, da bioquímica, da cirurgia cerebral, etc., todas visando a manipular e modificar o material humano como se se tratasse de qualquer outro material. Esta atitude mecanicista é típica da era moderna. Quando visava a objetivos semelhantes, a antiguidade tendia a conceber o homem como um animal selvagem que devia ser domado e domesticado. Em qualquer caso. o único resultado possível é a morte do homem, não necessariamente como organismo vivo. mas enquanto homem.[↩]
  3. Quanto a archein e prattein, veja-se sobretudo seu emprego em Homero (cf. C. Capelle, Wörterbuch des Homeros und der Homeriden (1889)).[↩]
  4. Plato already reproached Pericles because he did not “make the citizen better” and because the Athenians were even worse at the end of his career than before (Gorgias 515).[↩]
  5. Recent political history is full of examples indicating that the term “human material” is no harmless metaphor, and the same is true for a whole host of modern scientific experiments in social engineering, biochemistry, brain surgery, etc., all of which tend to treat and change human material like other matter. This mechanistic approach is typical of the modern age; antiquity, when it pursued similar aims, was inclined to think of men in terms of savage animals who need be tamed and domesticated. The only possible achievement in either case is to kill man, not indeed necessarily as a living organism, but qua man.[↩]
  6. For archein and prattein see especially their use in Homer (cf C. Capelle, Worterbuch des Homeros und der Homeriden (1889)).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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