Arendt (CH:§2) – cada vida humana conta sua estória

Roberto Raposo

A rigor, o domínio dos assuntos humanos consiste na teia de relações humanas que existe onde quer que os homens vivam juntos. O desvelamento do “quem” por meio do discurso e o estabelecimento de um novo início por meio da ação inserem-se sempre em uma teia já existente, onde suas consequências imediatas podem ser sentidas. Juntos, iniciam novo processo, que finalmente emerge como a singular estória de vida do recém-chegado, que afeta de modo singular as estórias de vida de todos aqueles com quem ele entra em contato. É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase nunca atinge seu objetivo; mas é também graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela “produz” estórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis. Essas estórias podem então ser registradas em documentos e monumentos, podem tornar-se visíveis em objetos de uso e obras de arte, podem ser contadas e recontadas e forjadas (worked) em todo tipo de material. Elas mesmas, em sua realidade viva, são de uma natureza inteiramente diferente de tais reificações. Falam-nos mais de seus sujeitos, do “herói” que há no centro de toda estória, do que qualquer produto de mãos humanas fala do artífice que o produziu, sem, no entanto, serem produtos propriamente ditos. Embora todos comecem a própria vida inserindo-se no mundo humano por meio da ação e do discurso, ninguém é autor ou produtor de sua própria estória de vida. Em outras palavras, as estórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente não é autor nem produtor. Alguém as iniciou e delas é o sujeito, na dupla acepção da palavra, seu ator e seu padecente, mas ninguém é seu autor.

Que toda vida individual entre o nascimento e a morte possa afinal ser narrada como uma estória com começo e fim é a condição pré-política e pré-histórica da história (history), a grande estória sem começo nem fim. Mas a razão pela qual cada vida humana conta sua estória e pela qual a história se torna finalmente o livro de estórias (storybook) da humanidade, com muitos atores e oradores e ainda assim sem quaisquer autores tangíveis, é que ambas resultam da ação. Pois a grande incógnita da história, que vem aturdindo a filosofia da história na era moderna, surge não somente quando consideramos a história como um todo e descobrimos que o seu sujeito, a humanidade, é uma abstração que jamais pode tornar-se um agente ativo; essa mesma incógnita tem aturdido a filosofia política desde os seus primórdios, na Antiguidade, e contribuiu para o desprezo geral que os filósofos, desde Platão, sempre dedicaram ao domínio dos assuntos humanos. A perplexidade é que em qualquer série de eventos que, no conjunto, compõem uma estória com um significado único, podemos quando muito isolar o agente que pôs o processo inteiro em movimento; e embora esse agente frequentemente continue a ser o sujeito, o “herói” da estória, nunca podemos apontá-lo inequivocamente como o autor do resultado final.

É por isso que Platão julgava que os assuntos humanos (ta ton anthropon pragmata), resultantes da ação (praxis), não deveriam ser tratados com grande seriedade; as ações dos homens se pareceriam com os movimentos de títeres conduzidos por uma mão invisível, oculta nos bastidores, de sorte que o homem parece ser o brinquedo de um deus. É digno de nota o fato de que Platão, que não tinha indício algum do moderno conceito de história, tenha sido o primeiro a inventar a metáfora do ator que, nos bastidores, por trás dos homens que atuam, puxa os cordões e é responsável pela estória. O deus platônico é apenas um símbolo do fato de que as estórias reais, ao contrário das que inventamos, não têm autor; como tal, é o verdadeiro precursor da Providência, da “mão invisível” da Natureza, do “espírito do mundo” do interesse de classe e de outras noções semelhantes mediante as quais os filósofos da história cristãos e modernos tentaram resolver o desconcertante problema de que embora a história deva a sua existência aos homens, obviamente não é, todavia, “feita” por eles. (De fato, nada denota mais claramente a natureza política da história – o fato de que é uma estória de atos e feitos, mais que de tendências e forças ou de ideias – que a introdução de um ator invisível nos bastidores que encontramos em todas as filosofias da história, e que constitui razão suficiente para que as reconheçamos filosofias políticas disfarçadas. Pelo mesmo motivo, o simples fato de que Adam Smith tenha precisado de uma “mão invisível” a guiar as transações econômicas no mercado de trocas mostra claramente que as relações de troca envolvem algo mais que a mera atividade econômica, e que o “homem econômico” ao fazer seu aparecimento no mercado, é um ser atuante e não exclusivamente um produtor ou um negociante e mercador.)

Original

  1. Laws 803 and 644.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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