Arendt (CH:§18) – identidade e objetividade

Roberto Raposo

A durabilidade do artifício humano não é absoluta; o uso que dele fazemos, embora não o consuma, o desgasta. O processo vital que permeia todo o nosso ser também o atinge; e se não usarmos as coisas do mundo elas também perecerão mais cedo ou mais tarde, e retornarão ao processo natural global do qual foram retiradas e contra o qual foram erigidas. Se abandonada a si mesma ou descartada do mundo humano, a cadeira voltará a ser lenha, e a lenha perecerá e retornará ao solo de onde surgiu a árvore que foi cortada para transformar-se no material sobre o qual se trabalhou e com o qual se construiu. Mas, embora este possa ser o fim inevitável de todas as coisas individuais no mundo, sinal de que são produtos de um fabricante mortal, não é tão certo que seja o destino final do próprio artifício humano, no qual todas as coisas podem ser constantemente substituídas com o ir e vir de gerações que habitam o mundo construído pelo homem. Além disto, embora o uso provavelmente desgaste os objetos, o desgaste não é o destino destes últimos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade.

É esta durabilidade que empresta às coisas do mundo sua relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a «objetividade» que as faz resistir, «obstar»1 e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários. Deste ponto de vista, as coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana; sua objetividade reside no fato de que — contrariando Heráclito, que disse que o mesmo homem jamais pode cruzar o mesmo rio — os homens, a despeito de sua contínua mutação, podem reaver sua invariabilidade, isto é, sua identidade no contato com objetos que não variam, como a mesma cadeira e a mesma mesa. Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo feito pelo homem, e não a sublime indiferença de uma natureza intacta, cuja devastadora força elementar os forçaria a percorrer inexoravelmente o círculo do seu próprio movimento biológico, em harmonia com o movimento cíclico maior do reino da natureza. Somente nós, que erigimos a objetividade de um mundo que nos é próprio a partir do que a natureza nos oferece, que o construímos dentro do ambiente natural para nos proteger contra ele, podemos ver a natureza como algo «objetivo». Sem um mundo interposto entre os homens e a natureza, haveria eterno movimento, mas não objetividade. (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 149-150)

Original

  1. Conotação implícita no verbo latino obicere, do qual derivou mais tarde nossa palavra «objeto», e na palavra alemã Gegenstand, objeto. «Objeto» significa literalmente «algo lançado» ou «posto diante».[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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