Arendt (CH:§13) – vida – mundo

Roberto Raposo

A natureza e o movimento cíclico que ela imprime, à força, a todas as coisas vivas, desconhecem o nascimento e a morte tais como os compreendemos. O nascimento e a morte de seres humanos não são ocorrências simples e naturais, mas referem-se a um mundo ao qual vêm e do qual partem indivíduos únicos, entidades singulares, impermutáveis e irrepetíveis. O nascimento e a morte pressupõem um mundo que não está em constante movimento, mas cuja durabilidade e relativa permanência tornam possível o aparecimento e o desaparecimento; e essa durabilidade, essa relativa permanência já existiam antes que qualquer indivíduo nele aparecesse, e sobreviverão à sua eventual partida. Sem um mundo ao qual os homens vêm pelo nascimento e do qual se vão com a morte, nada existiria a não ser a recorrência imutável e eterna, a perenidade imortal da espécie humana como a de todas as outras espécies animais. Uma filosofia que não chegue, como Nietzsche chegou, à afirmação da «eterna recorrência» (ewige Wiederkehr) como o mais alto princípio de toda a existência, simplesmente não sabe do que está falando.

A palavra «vida», porém, tem significado inteiramente diferente quando usada em relação ao mundo para designar o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte. Limitada por um começo e um fim, isto é, pelos dois supremos eventos do aparecimento e do desaparecimento do indivíduo no mundo, a vida segue sempre uma trajetória estritamente linear, cujo movimento, não obstante, é transmitido pela força motriz da vida biológica que o homem compartilha com outros seres vivos e que conserva, sempre, o movimento cíclico da natureza. A principal característica desta vida especificamente humana, cujo aparecimento e desaparecimento constituem eventos mundanos, é que ela, em si, é plena de eventos que posteriormente podem ser narrados como história e estabelecer uma biografia; era a esta vida, bios, em contraposição à mera zoe, que Aristóteles se referia quando dizia que ela é, «de certa forma, uma espécie de praxis» (Política 1254a7). Pois a ação e o discurso que, como vimos, estavam intimamente interligados no conceito grego de política, são realmente duas atividades cujo resultado final será sempre uma história suficientemente coerente para ser narrada, por mais acidentais ou aleatórios que sejam os eventos e as circunstâncias que os causaram.

É somente dentro do mundo humano que o movimento cíclico da natureza se manifesta como crescimento e declínio”. Estes, como o nascimento e a morte, não são ocorrências naturais propriamente ditas; não têm lugar no ciclo incessante e incansável no qual todo o reino da natureza perpetuamente evolve. Somente quando ingressam no mundo feito pelo homem podem os processos da natureza ser descritos como crescimento e declínio; somente quando consideramos os produtos da natureza — determinada árvore ou determinado animal — como coisas individuais, retirando-os, com isso, do seu ambiente «natural» e colocando-os em nosso mundo, é que eles começam a ter crescimento e declínio. Embora a natureza se manifeste na existência humana através do movimento circular de nossas funções corporais, faz-se presente no mundo fabricado pelo homem através da constante ameaça de sobrepujá-lo ou fazê-lo perecer. A característica comum ao processo biológico do homem e ao processo de crescimento e declínio do mundo é que ambos fazem parte do movimento cíclico da natureza; sendo cíclico, esse movimento é infinitamente repetitivo; todas as atividades humanas provocadas pela necessidade de fazer face a esses processos estão vinculadas aos ciclos recorrentes da natureza, e não têm, em si, qualquer começo ou fim propriamente dito. Ao contrário do processo de trabalhar, que termina quando o objeto está acabado, pronto para ser acrescentado ao mundo comum das coisas, o processo do labor move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das «fadigas e penas» só advém com a morte desse organismo.

Original

ARENDT, H. The human condition. 2nd ed ed. Chicago: University of Chicago Press, 1998. [HC:§13]

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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