Arendt (CH:§11) – escravidão

Roberto Raposo

(…) o trabalho do nosso corpo, exigido pelas necessidades deste último, é servil. Consequentemente, as ocupações que não consistiam em trabalhar, mas fossem empreendidas não por si próprias, e sim com a finalidade de atender às necessidades da vida, foram assimiladas ao status do trabalho, e isso explica as mudanças e as variações na valoração e classificação delas em diferentes épocas e em diferentes lugares. A opinião de que o trabalho e a obra eram desdenhados na Antiguidade pelo fato de que somente escravos os exerciam é um preconceito dos historiadores modernos. Os antigos raciocinavam de modo contrário: achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que fornecessem o necessário para a manutenção da vida. 1 Era precisamente com base nisso que a instituição da escravidão era defendida e justificada. Trabalhar significava ser escravizado pela necessidade, e essa escravização era inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem dominados pelas necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade dominando outros que eles, à força, sujeitavam à necessidade. A degradação do escravo era um golpe do destino e um destino pior que a morte, pois implicava a metamorfose do homem em algo semelhante a um animal doméstico. 2 Em vista disso, qualquer alteração na condição do escravo, como a alforria ou uma mudança na circunstância política geral que elevasse certas ocupações a um nível de relevância pública, acarretava automaticamente uma mudança na “natureza” do escravo. 3

A instituição da escravidão na Antiguidade, embora não em épocas posteriores, não foi um artifício para obter mão de obra barata nem um instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o trabalho das condições da vida do homem. Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal não era considerado humano. (Essa era também, por sinal, a razão da teoria grega, tão mal interpretada, da natureza inumana do escravo. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente essa teoria e depois, no leito de morte, alforriou seus escravos, talvez não fosse tão inconsistente como tendem a pensar os modernos. Ele negava não a capacidade dos escravos para serem humanos, mas somente o emprego da palavra “homens” para designar membros da espécie humana enquanto estivessem totalmente sujeitos à necessidade.) 4 E a verdade é que o emprego da palavra “animal” no conceito de animal laborans, ao contrário do uso muito discutível da mesma palavra na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que povoam a Terra – na melhor das hipóteses, a mais desenvolvida. [ArendtCH:C11]

Original

  1. Aristóteles inicia sua famosa discussão da escravidão (Política, 1253b25) com a afirmação de que, “sem o necessário, nem a vida nem a boa vida é possível”. Ser um senhor de escravos é a forma humana de assenhorear-se da necessidade e, portanto, não é para physin, contra a natureza; a própria vida o exige. Portanto, os camponeses, que suprem as coisas necessárias à vida, são classificados, tanto por Platão como por Aristóteles, na mesma categoria que os escravos (cf. Robert Schlaifer, “Greek theories of slavery from Homer to Aristotle”, Harvard Studies in Classical Philology, v. XLVII (1936)).[↩]
  2. É nesse sentido que Eurípedes chama todos os escravos de “maus”: eles veem tudo do ponto de vista do estômago (Suplementum Euripideum, Ed. Arnim, frag. 49, n. 2).[↩]
  3. Assim, Aristóteles recomendava que os escravos incumbidos de “ocupações livres” (ta eleuthera ton ergon) fossem tratados com mais dignidade, e não como escravos. Por outro lado, quando, nos primeiros séculos do Império Romano, certas funções públicas, que sempre haviam sido executadas por escravos públicos, passaram a ser consideradas mais dignas e mais importantes, esses servi publici – que, na verdade, cumpriam tarefas de funcionários públicos – receberam permissão de usar toga e desposar mulheres livres.[↩]
  4. As duas qualidades que, segundo Aristóteles, o escravo não possui – e é por causa desses defeitos que ele não é humano – são a faculdade de deliberar e decidir (to bouleutikon) e a de prever e escolher (proairesis). Isto é, naturalmente, apenas um modo mais explícito de dizer que o escravo é sujeito à necessidade.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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