Heidegger, no entanto, não estabeleceu qualquer relação entre a “pré-estrututra” do Compreender (que ele mesmo havia descoberto) e uma subjetividade pré-consciente. Na verdade, do factum apriorístico do “estar-aberto do ser-aí”, Heidegger depreendeu uma “virada” [Kehre]: parte-se de uma análise ainda semi-transcendental-filosófica do ser-aí, e vai-se em direção a um pensamento que provém, ele mesmo, do fato de pertencer à história do ser, e que, além disso, se mostra insubmisso a qualquer ligação normativo-metodológica. É possível interpretar o “estar-aberto do ser-aí” em Ser e tempo como um acontecimento anônimo da “clareação”; e tal acontecimento poderia não ter qualquer relação com um “ser-que-se-antecipa”, passível de reflexão face a sua validação conceitual, e pertinente à “intelecção pré-ontológica do ser”; e nesse caso pode-se entender a “virada” (Kehre) como o desdobramento consequente de uma abordagem transcendental-filosófica de sentido não-kantiano, assumida desde o início. Tal “virada”, entretanto, conquista ainda mais sua plausibilidade fenomenológica quando Heidegger passa a tomar como ponto de referência para sua orientação os fenômenos de descerramento de sentido (Sinn-Eröffnung) na “obra de arte”; isso começa a estar em primeiro plano logo após o surgimento de Ser e tempo. Quanto a esses fenômenos, pode-se dizer com certa razão que representam a parcela da “pré-estrutura” do ser-aí eximida de disponibilidade subjetiva, ou seja, o fenômeno da “clareação” como tal. Com isso, de certa forma, Heidegger teria desenvolvido, em concatenação com a “virada”, apenas a problemática da constituição do sentido do mundo (Welt-Sinn-Konstitution) mantida na “pré-estrutura” do Compreender; de outra parte, porém, teria legado a problemática da validação do sentido (Sinn-Geltung) como tal, pela qual temos que responder, a uma filosofia transcendental subjetiva, concernente à “metafísica” (que ainda estaria por ser suplantada). De fato, isso correspondería à situação excepcional de Hölderlin na história do ser, esboçada por Heidegger. A distinção conferida à constituição de sentido (Sinn-Konstitution) teria seu correlato na distinção conferida por Hölderlin ao poético, segundo o verso a seguir — uma reação ao moralismo da liberdade de Fichte: “Meritória e também poeticamente, habita o ser humano sobre essa terra”. A meu ver, ainda que pretendamos perceber a unilateralidade e gravidade de uma filosofia que, em última instância, pretende deduzir sua legitimação do kairos ligado à sina do ser, que se vai manifestando naquele mesmo momento, não é preciso de modo algum negar ou subestimar a relevância fenomenológica do acentuamento da “ocorrência de sentido”, que é a um só tempo indisponível e ainda assim co-fundadora da história do mundo, em todos os processos caracterizados como “criadores” (e na ciência moderna como “criativos”). E se essa filosofia (tal como a ontologia do “estar-presente”, fundamentada anteriormente por Aristóteles) pensa ser capaz de superar ou “suplantar” a metafísica da Era Moderna, fundamentada sobre a autonomia do sujeito que pensa, quer e age, então se deve pelo menos suspeitar de que aqui “auto-nomia” — que o ser humano conquistou por meio do “Esclarecimento” [Aufklärung], sob o signo da autonomia da razão — pode vir a ser dissipada sob a forma de uma nova credulidade no destino, em benefício de uma nova “alienação” (tal como disse J. P. Sartre sobre o Heidegger da fase tardia).