(Apel2000)
Em face do esclarecimento proporcionado por Tugendhat, aproximamo-nos da reflexão de princípio acerca do significado da filosofia heideggeriana ante a filosofia contemporânea. No contexto da questão que propomos — uma possível transformação da filosofia que se mantenha ligada às ciências — e a partir da clarificação acima delineada, podem-se depreender as seguintes consequências:
1. A descoberta de Heidegger, que aprofundou, ou mesmo ampliou de maneira essencial a problemática fenomenológica da constituição averiguada por Husserl, não reside em um novo conceito de verdade, mas sim no desvendamento da “pré-estrutura” da problemática da verdade; essa pré-estrutura é essencialmente idêntica à do Compreender enquanto “estar-aberto do ser-aí”, como esboçada anteriormente, e “já precede” — para usar as palavras de Gadamer — “todo procedimento compreendente da subjetividade”. Desse modo, estava certo quem acreditava ser preciso desenvolver a fertilidade da abordagem heideggeriana em direção a uma fenomenologia hermenêutica ou a uma radicalização filosófica da hermenêutica63. Ilustrações da problemática heideggeriana da clareação de sentido podem ser vistas tanto na questão sobre a referência de verdade das “visões de mundo” condicionadas pela linguagem (no sentido de W. von Humboldt e da “ciência da linguística voltada para ο conteúdo de linguagem”) quanto na renovação da potência constitutiva de significado própria à linguagem da literatura.
2. Como, porém, o “estar-aberto do ser-aí” descoberto por Heidegger, que precede a todas as operações cognitivas subjetivas, ainda não é verdade em si mesmo, mas provavelmente prejulga verdades e inverdades possíveis, no sentido de um “espaço de manobra”, não há razão para seguir os passos de Heidegger em sua “virada”, nem tampouco para separar por completo a problemática da constituição e a da justificação em sentido kantiano. Em outras palavras, não se pode considerar que a filosofia transcendental no sentido de Kant deva ser ultrapassada por uma filosofia da sina do ser [Seinsgeschicks], mas sim que ela deva ser ampliada ou aprofundada no sentido de uma “hermenêutica transcendental”. Com isso, não se deveria recomendar a separação — tida por Gadamer como possível e necessária — entre a questão acerca das condições de possibilidade do Compreender (acentuada no sentido da problemática da constituição) e a questão acerca da justificação metodologicamente relevante dos resultados do Compreender-o-sentido (acentuada no sentido da problemática kantiana da validação). Da mesma maneira, o discurso acerca de uma “ocorrência de verdade” — que o próprio Heidegger reconheceu como precipitado — deve ser revogado e substituído por outro, que seja fenomenologicamente mais oportuno e transcendental-filosoficamente mais fértil: o discurso acerca do “ser-que-se-antecipa” do Compreender na “ abertura do ser-aí” (Erschlossenheit des Daseins).
3. Com isso, no entanto, ainda não terá sido abordada a dimensão da “ocorrência” (Ereignis) de sentido histórica, acentuada por Heidegger em sua fase tardia, e que já terá marcado desde sempre a “interpretabilidade pública” do ser-aí como “pré-estrutura” de nosso entendimento do mundo e de nosso entendimento. Aqui — ou seja, na “historicidade” da pré-estrutura hermenêutica do Compreender — pode residir o verdadeiro desafio imposto pelas descobertas de Heidegger à filosofia transcendental que ainda está por se transformar66. Como se descobriu há pouco, isso também corresponde à atualidade de Heidegger (em sua fase tardia) para a problemática da história das ciências ligada ao context of discovery67.