Aho (2014) – homem e mundo natural

(Aho2014)

A descrição de Camus da “união sensual da terra e do homem” mina os dualismos que são fundamentais para a visão de mundo moderna, mostrando como eles assumem de forma acrítica um ponto de vista de distanciamento teórico, uma postura que é traída por nossa própria experiência.

O trabalho de Heidegger é especialmente útil aqui porque ele deixa claro que a relação primária que temos com o mundo não se baseia em “conhecer” algo sobre ele, mas em “cuidar” dele e de nosso lugar nele. Antes de podermos conhecer qualquer coisa sobre objetos presentes à mão, já incorporamos um senso de cuidado (Sorge) ou preocupação com as coisas que surge de nosso quadro de referência situado. É por isso que Heidegger diz: “O cuidado é ontologicamente anterior” a qualquer reflexão distanciada (1962, 194). Isso significa que a visão objetificante da ciência moderna não apenas é parasita de nosso ser-no-mundo cotidiano; ela também encobre e esconde as camadas de significado experiencial que permitem que o mundo natural nos afete emocionalmente. Filósofos ambientais recentemente retomaram esse ponto, destacando a significância da alteração feita por Heidegger ao famoso ditado cartesiano, de “Penso, logo existo” para “Eu cuido, logo existo” (Evernden 1985, 70). Nessa visão, não somos mentes desinteressadas olhando para o mundo natural como uma grade calculável de recursos. Já estamos situados e envolvidos de tal forma que florestas, animais, rios e montanhas se iluminam para nós de maneiras significativas.

No entanto, Heidegger mostra que nossa visão de mundo objetificante tornou-se tão habituada e enraizada em nossa vida cotidiana que agora é difícil ver o mundo natural de qualquer outra forma. Essa autointerpretação, diz Heidegger, “não só está próxima de nós – é até mesmo aquilo que está mais próximo: nós somos isso, cada um de nós” (1962, 36). Heidegger se referirá a isso como o aspecto “totalizante” da tecnologia moderna; ela se tornou tão dominante que “expulsa” (1977b, 27) qualquer outra maneira de entender ou dar sentido ao mundo natural. Uma das consequências dessa visão é a interpretação da natureza como ameaçadora e constantemente necessitando ser dominada e controlada, resultando em um sentimento de alienação, de não pertencer ou “estar em casa” na Terra, um sentimento que Heidegger associa a uma ansiedade que “nunca foi maior do que hoje” (1999b, 97). A experiência moderna de “desabrigo” revela o paradoxo único de nossa crise ecológica. Avanços científicos não podem resolver nosso dilema porque é a própria visão de mundo científica que é a fonte do problema. Substituir combustíveis fósseis ambientalmente destrutivos, por exemplo, por fontes de energia ecologicamente amigáveis, como solar, eólica ou geotérmica, não cria um “lar” porque não faz nada para mudar o paradigma dualista e nossa visão da natureza como um depósito de recursos. O que é necessário, em vez disso, é uma transformação ontológica em como nos vemos, não como “sujeitos” atomísticos que dominam “objetos”, mas como modos de ser situados e preocupados que estão inextricavelmente ligados à Terra. É aqui que os insights do existencialismo desempenham um papel tão importante. Ao usar nossa própria experiência vivida como ponto de partida, não apenas ganhamos acesso à nossa própria inerência na natureza; também permitimos que o significado afetivo e o valor inerentes à natureza falem conosco (Thomson 2004, 383).

Para Heidegger, essa mudança de Gestalt cria uma abertura para uma maneira radicalmente nova de habitar, uma que não está mais presa em tentativas calculativas de controlar e manipular a Terra, mas que “deixa (lassen) a Terra ser como Terra” (1971, 224). Heidegger descreve esse tipo de habitação em termos de Gelassenheit, referindo-se a uma prática solícita e atenta que “libera” ou “deixa ir” os seres (1966, 55). Heidegger acredita que, ao cultivar a Gelassenheit, somos capazes de nos libertar de nossas próprias tendências objetificantes e, como resultado, libertar a Terra da dominação tecnológica. Isso nos permite reconhecer que estamos irrevogavelmente tecidos na interação transitória e enigmática da natureza e ver essa interação como nosso único lar, um que precisa ser preservado e valorizado como tal. Isso, no entanto, não significa que Heidegger esteja defendendo uma espécie de neo-ludismo que rejeita a tecnologia moderna in toto. Ele quer que percebamos que a visão de mundo tecnológica cumpre uma função importante, mas é apenas uma das muitas maneiras possíveis de interpretar a natureza. O perigo hoje é que essa visão de mundo se tornou totalizante e exclui todas as outras interpretações; ela “domina toda a Terra” e a transforma em uma “gigantesca estação de gasolina” (50). Heidegger se referirá a essa visão monolítica como uma “fuga do mistério”, porque encobre e destrói a possibilidade de reconhecer nossa interdependência enigmática com a natureza (1977a, 135). Assim, em contraste com a ansiedade do “desabrigo”, a Gelassenheit promove um estado de espírito diferente, um senso de “maravilha” e “reverência” diante de nosso frágil entrelaçamento, e abre um caminho para habitar que ressoa com o significado original da tecnologia, um significado capturado na palavra grega antiga techne.

Em “A Questão da Técnica”, um ensaio que se tornou um clássico na filosofia ambiental, Heidegger sugere que techne era originalmente entendida em relação à natureza ou physis, que para os gregos se referia à maneira dinâmica pela qual os seres são inicialmente “trazidos à luz” (poiesis) ou vêm a ser; é “o desabrochar da flor em si mesma” (1977b, 10). Entendida dessa forma, techne se refere à capacidade humana de fazer ou construir coisas de uma maneira que está em harmonia ou sintonia com a physis, ou seja, com a maneira como os seres são naturalmente “trazidos à luz”. O artesão grego, por exemplo, construiria uma ponte de uma forma que não obstruísse ou destruísse o fluxo natural do rio, mas “deixaria o rio seguir seu curso” (Heidegger 1977a, 330, ênfase minha; ver Young 2000, 37–38). Compare essa interpretação antiga com a forma como techne é entendida hoje, onde a usina hidrelétrica é construída para forçar o rio a se tornar um reservatório, um recurso esperando para ser “desafiado” e “explorado” pela indústria (Heidegger 1977b, 16). A Gelassenheit nos permite recuperar o sentido original de techne e a conexão perdida entre construir e habitar. De fato, Heidegger mostra como a palavra do alto alemão antigo para “construir” (bauen) está etimologicamente relacionada à palavra “habitar” (buan). Mas bauen é uma palavra que “também significa… cuidar e proteger, preservar e zelar” (1977a, 325). Entendida dessa forma, habitar é construir de uma maneira que preserva e cuida da natureza como o trazer primordial dos seres, um trazer à luz no qual cada coisa está em um estado de interação frágil e dinâmica com outras coisas em uma “unidade primordial” (327). Habitar protege essa teia delicada de relações ao liberá-la e deixá-la ser.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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