Procuremos agora recapitular as características dessa Stimmung, dessa abertura originária ao mundo que constitui o Dasein, e — se pudermos — situá-la em seu lugar. A Stimmung é o lugar da abertura originária do mundo, mas um lugar que não está em nenhum lugar, já que coincide com o lugar próprio do ser do homem, com seu Da. O homem — o Dasein — é essa sua abertura. E, no entanto, essa Stimmung, esse acordo originário e essa consonância entre Dasein e mundo, é, simultaneamente, uma dissonância e uma desafinação, um ser-desorientado e um ser-lançado. O homem é, pois, sempre antecipado por sua própria abertura ao mundo.
Por que, devemos agora perguntar, a abertura da Stimmung tem esse caráter de cisão e de dissonância? O que é que nela está em jogo? De que acordes e entonações se trata, se a única “entonação” possível tem a forma de uma dissonância?
Devemos refletir um momento sobre o caráter fundamental, sobre o caráter de arche que Sein und Zeit atribui à Stimmung e à angústia como Stimmung fundamental. Um único estado de espírito, uma única paixão, uma única Stimmung tem na Antiguidade semelhante privilégio e semelhante caráter de princípio: o thaumazein, o espanto, que segundo uma antiquissima e constante tradição é o arche do filosofar. Registremos, em primeiro lugar, de passagem, uma diferença fundamental: a abertura original pertence, para os gregos, à esfera ótica — thaumazein é theasthai, olhar —, enquanto para Heidegger e, em geral, para nós, modernos, ela se situa na esfera acústica (Stimmung, de Stimme, voz). Essa é a dívida da modernidade para com o judaísmo, em que a revelação é sempre um fenômeno acústico. Recordemos que na Bíblia se lê: “O Eterno vos falou do fogo. Vós ouvistes uma voz de palavras, mas formas, figuras d’Ele não as vistes, exceto a voz” (Deut., 4, 12).
Em que sentido devemos entender o caracter acústico da Stimmung e sua relação com o espanto e com os outros pathe da filosofia grega? O próprio Heidegger relaciona o tratamento que dá à Stimmung com a teoria dos pathe na Grécia clássica, sublinhando como a primeira elaboração sistemática sobre as emoções não foi conduzida no âmbito da psicologia, mas na Retórica de Aristóteles. Ora, na Retórica de Aristóteles, a tematização das paixões é conduzida naturalmente no interior de uma teoria do discurso convincente, e portanto em estreita relação com a linguagem. Mas a intuição dessa proximidade entre paixões da alma e linguagem, entre pathos e logos, caracteriza também a mais ampla reflexão que o pensamento grego pós-aristotélico dedicou ao problema: a dos estoicos. Deve-se a Crisipo a formulação radical, para nós desconcertante, à primeira vista, segundo a qual as paixões, porque mantêm uma relação essencial com o logos, podem produzir-se apenas no homem. O homem incorre nas paixões porque é um animal falante; é um animal apaixonado porque é um animal rationale. As paixões, segundo os estoicos, não são de fato um fenômeno natural, mas uma forma de krisis, de juízo, e, por conseguinte, de discurso. Apontadas essas premissas, examinemos agora a definição que os estoicos dão da paixão: ela é pleonazousa horme e hyperteinousa ta kata ton logon metra. A tradução corrente é: “impulso excessivo, que transgride a medida da linguagem”. Horme vem de ornymi, que tem o mesmo étimo que o latino orior e origo e significa: “provenho, nasço, origino”. A definição apresenta assim uma proveniência, uma origem que excede a medida da linguagem. Os estoicos dizem que essa horme é apeithes logo, “não passível de convencer pela linguagem”, e afirmam que todo pathos é biastikon, “violento”. Mas o que é que está em questão nesse provir e nessa violência? Se recordarmos que, para os estoicos, o pathos não é um elemento natural irracional, mas está ligado ao logos, então o que exerce violência não é senão a linguagem, a origem excessiva só pode ser a da própria linguagem. Nos fragmentos dos estoicos que foram conservados, não encontramos em nenhum lugar uma afirmação tão explícita, mas ela é a única que não contradiz a premissa da teoria estoica das paixões, do “animal racional” como único “animal apaixonado”. Em todo caso, tal como a Stimmung, no próprio momento em que conduz o Dasein em sua abertura, revela-lhe que ele se encontra nela na situação de estranho, também a teoria estoica das paixões aponta para uma desconexão, um excesso que se produz na relação entre o homem e o que lhe é mais próprio, isto é, o logos, a linguagem.1
Podemos, neste ponto, formular a seguinte hipótese: a teoria das paixões, das Stimmungen, é desde sempre o lugar em que o homem ocidental pensa sua relação fundamental com a linguagem. Através dela, o homem ocidental — que se define a si mesmo como animal rationale, o ser vivo que é dotado de linguagem — procura captar o arthros, a articulação entre o ser vivo e a linguagem, entre zoon e logos, entre natureza e cultura. Mas essa conexão é, ao mesmo tempo, uma desconexão, essa articulação é, na mesma medida, uma desarticulação: e as paixões, as Stimmungen, são o que se produz nessa desconexão, o que revela esse desvio.
E se a voz é — segundo uma antiga tradição que define a linguagem humana como phone enarthros, voz articulada — o lugar em que se dá essa articulação entre o ser vivo e a linguagem, então o que está em questão na Stimmung, o que se encena nas paixões, podemos dizer que é a in-vocação da linguagem, no duplo sentido de se situar em uma voz e de chamada, de vocação histórica que a linguagem confia ao homem. O homem tem Stimmung, é apaixonado e angustiado porque se mantém, sem ter uma voz, no lugar da linguagem. Ele está na abertura do ser e da linguagem sem nenhuma voz, sem nenhuma natureza: ele é lançado e abandonado nessa abertura e deve fazer desse abandono seu mundo, e da linguagem, sua voz.
Se voltarmos agora ao texto de Heidegger de onde partimos, então tanto o tema da Stimmung como o aparecimento, nos parágrafos seguintes de Sein und Zeit, de uma Voz da consciência se iluminam de uma nova maneira. A relação etimológica entre Stimmung e Stimme, vocação e voz, adquire aqui seu sentido próprio. Na abertura originária do Dasein, surge agora o apelo silencioso de uma Voz da consciência, que impõe uma compreensão mais originária dessa mesma abertura, tal como tinha sido determinada através da análise da Stimmung. Mais tarde, em Was ist Metaphysik? (GA9) e, sobretudo no posfácio acrescentado à quarta edição da conferência, a recuperação do tema da voz é agora completa. A Stimmung da angústia só é aqui compreensível em referência a uma lautlose Stimme, a uma voz sem som, que “nos põe de acordo (stimmt) no terror do abismo”. A angústia não é, pois, senão die von jene Stimme gestimmt Stimmung, a “vocação acordada por aquela voz”. E a voz sem som é a voz do ser, que chama o homem à experiência “do espanto dos espantos: que o ente é”.
- Hyperteino não é “transgrido”, mas é, antes de tudo: “tendo ao excesso, coloco-me no máximo estado de tensão”. A tradução literal da definição dos estoicos é esta: “origem excessiva que tende ao extremo as medidas segundo o logos”. Em hyperteino (cf. teinó, tonos) existe assim uma imagem acústico-musical (tonos = tensão da corda que corresponde à altura de um som).[↩]