(…) O que o homem introduz no mundo, o seu “próprio”, não é simplesmente a luz e a abertura do conhecimento, mas, acima de tudo e pela primeira vez, a abertura a um fechamento e a uma opacidade. A aletheia, a verdade, é a guardiã da lethe, da não verdade; a memória, a guarda do esquecimento, a luz, a salvaguarda do escuro. Só na insistência desse abandono, nessa salvaguarda esquecida de tudo, algo como o conhecimento se torna eventualmente possível. Tudo isso sofre o amor (no sentido etimológico da palavra paixão: pati, paschein). O amor é a paixão da facticidade, na qual o homem suporta essa não pertença e essa opacidade e se apropria delas (adsuefacit), guardando-as como tais. Ele não é, segundo a dialética do desejo, afirmação de si nem negação do objeto amado, mas paixão e exposição da própria facticidade e da irredutível impropriedade do ente. No amor, o amado vem à luz, com o amante, em seu ser velado, em uma facticidade eterna e para além do ser. (É talvez isso que tem em mente Hannah Arendt quando, em um texto de 1930, escrito a quatro mãos com seu primeiro marido, diz, com as palavras de Rilke, que o amor “é a possibilidade de ocultar um ao outro o próprio destino”.)
Tal como no Ereignis a apropriação do impróprio significa ao mesmo tempo o fim da história do ser e de suas destinações epocais, também no amor a dialética do próprio e do impróprio chega a seu fim. Por isso, não tem sentido distinguir amor autêntico e amor inautêntico, amor celeste e amor pandemos, amor de Deus e amor próprio. Os amantes suportam até o extremo a impropriedade do amor, a fim de que o próprio possa surgir como apropriação da livre impotência que a paixão levou a seu extremo. Os amantes vão até o limite do impróprio em uma promiscuidade insensata e demônica; eles se estabelecem, na voluptuosidade e no discurso amoroso, sempre em novas regiões de impropriedade e de facticidade, até torná-las vãs, exibindo-as nessa condição. De fato, o homem não vive originariamente no próprio, mas também não habita (segundo a demasiado fácil sugestão do niilismo contemporâneo) o impróprio e o infundado; ele é antes aquele que se apaixona propriamente pelo impróprio, aquele que, único entre os vivos, pode sua impotência. Se é verdade que, segundo a bela expressão de Jean-Luc Nancy, o amor é aquilo de que não somos senhores, aquilo a que nunca acedemos, mas que sempre vem a nós,1 é igualmente verdade que, segundo as palavras de Hölderlin a Böhlendorff, “der freie Gebrauch des Eigenes das Schwerste ist”, “o uso livre do próprio é a tarefa mais difícil”.
[AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015]