Como devemos compreender essa facticidade original? Será talvez a Weise algo como uma máscara que o Dasein deveria vestir? Ou não é verdade antes o contrário, isto é, que justamente aqui uma ética heideggeriana podería encontrar seu lugar?
Os termos “fáctico” e “facticidade” mostram aqui toda a sua pertinência. O adjetivo alemão faktisch, tal como o francês factice e o italiano fattizio, surge relativamente tarde no léxico europeu: na segunda metade do século XVIII para o alemão e um pouco antes para o francês. Mas se trata em ambos os casos de uma formação erudita, decalcada do latim, que está ligada a uma história linguística muito mais antiga. Do latim facticius, o francês tinha extraído no século XVIII, em conformidade com suas leis fonéticas, o adjetivo faitis (ou faitiche, fetiz), assim como o substantivo faitisseté (faiticheté). O alemão tinha formado, talvez com um empréstimo do francês, o adjetivo feit. Ora, faitis e o correspondente alemão feit significam simplesmente “belo, gracioso”: “Faitisse estoit et avenante/je ne sais femme plus plaisante”, lê-se no Roman de la rose, e também em outros autores: “Votregens corp, votre beauté faictisse” (Baudes), “Voiz comme elles se chaussent bien et faitissement” (Jean de Meun), “Ils ont doubz regard et beaulté/et jeunesse et faitischeté” (Gaces). Mas é em um texto de Villon que se pode apreender melhor o significado próprio da palavra faitis: “hanches charnues,/eslevées, propres, faictisse/a tenir amoureuses lisses”. De acordo com sua etimologia, faitis designa aqui tudo o que em um corpo humano parece feito intencionalmente e com arte, e por isso atrai o desejo e o amor. É como se o ser tal de um ente, seu “feitio” ou sua maneira se separassem dele como beleza em uma espécie de autotranscendência paradoxal. É no contexto dessa história semântica que se deve situar o aparecimento do termo italiano feticcio (francês fétiche, alemão Fetisli). Os dicionários nos dizem que essa palavra entrou no século XVIII nas línguas europeias através do português feitiço. Mas o termo é na realidade morfologicamente idêntico ao adjetivo francês faitis (Jaitiché), que, através da via oblíqua de um empréstimo do português, conhece assim uma espécie de ressurreição.
Uma análise do significado do termo no uso freudiano e marxiano é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Recordemos que, para Marx, o caráter de fetiche da mercadoria, que a torna inapreensível e a transforma em algo de místico, não consiste simplesmente em seu caráter artificial, mas antes no fato de um produto do trabalho humano ser dotado ao mesmo tempo de valor de uso e de valor de troca. De igual modo, para Freud, o fetiche não é um objeto postiço: é ao mesmo tempo a presença de qualquer coisa e o signo de sua ausência, é e não é um objeto. E é por isso que ele atrai irresistivelmente o desejo sem nunca poder satisfazê-lo.
Poder-se-ia dizer, nesse sentido, que a estrutura do Dasein é marcada por uma espécie de fetichismo original, de Urfetischismus 1 ou de Urfaktizität, que faz com que ele não possa jamais se apropriar do ente ao qual, no entanto, está indissoluvelmente entregue. Nem Vorhandenes nem Zuhandenes, nem valor de uso nem valor de troca, o ser que tem de ser suas maneiras de ser existe facticamente. Mas, pelo mesmo motivo, suas Weisen não são simulacros que ele, enquanto sujeito livre, poderia assumir ou não assumir; elas pertencem desde o início à sua existência e constituem originalmente seu ethos.2 [AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015]
- O termo tem de ser aqui entendido no sentido ontológico, e não psicológico. É porque a facticidade pertence originariamente ao Dasein que se pode encontrar algo como um fetiche em sentido estrito. Sobre o estatuto do fetiche no parágrafo 13 de Sein und Zeit, cf. as considerações importantes de HAMACHER, Werner. Peut-être la question. In: LACOUE-LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc (Ed.). Les fins de l’homme a partir du travail de Jacques Derrida. Paris: Galilée, 1981. p. 353-354.[↩]
- “Das Dasein existiert faktish. Gefragt wird nach der ontologischen Einheit von Existentialität und Faktizität, bzw. der wesenshaften Zugehörigkeit dieser zu jener” (SuZ, 181), “O Dasein existe facticamente. Aqui se pergunta pela unidade ontológica de existência e facticidade, isto é, pela copertença essencial desta àquela”.[↩]