Agamben (2015:255-259) – Amor

Foi muitas vezes observado que o problema do amor está ausente da obra de Heidegger. Em Sein und Zeit, que contém até uma ampla reflexão sobre o medo, a angústia e outras Stimmungen, o amor é mencionado uma única vez, em uma nota que reenvia para duas citações, uma de Pascal e outra de Santo Agostinho. Desse modo, Koepp,1 em 1928, e Binswanger,2 em 1942, censuraram Heidegger por não ter dado nenhum lugar ao amor em sua analítica do Dasein, fundada unicamente na Sorge; e, em uma Notiz, sem dúvida hostil, Jaspers pôde escrever que a filosofia de Heidegger é “ohne Liebe, daher auch im Stil unliebenswurdig” [“sem amor, e por isso, também no estilo, pouco amável”].3

Tais críticas, como foi observado por Karl Löwith,4 não deixam de ser ociosas enquanto não conseguirem substituir a analítica heideggeriana por uma analítica centrada no amor. Não obstante, o silêncio — ou o aparente silêncio — de Heidegger sobre o amor não deixa de ser problemático. Sabemos, de fato, que, entre 1923 e 1926, enquanto preparava sua obra fundamental, Heidegger viveu uma apaixonada relação amorosa com Hannah Arendt, então sua aluna em Marburgo. Ainda que as cartas e os poemas que documentam essa relação, conservados no Deutsches Literaturarchiv de Marbach, não sejam ainda acessíveis,5 sabemos por um testemunho de Arendt que, mesmo 20 anos depois do fim da relação, Heidegger declarou que aquela tinha sido “a paixão de sua vida”6 e que a elaboração de Sein und Zeit tinha acontecido sob o signo do amor.

Como explicar, então, a ausência do amor da analítica do Dasein? Tanto mais porque, da parte de Hannah Arendt, a relação tinha produzido um livro sobre o amor. Refiro-me à Doktordissertation, publicada em 1929, Der Liebesbegriff bei Augustin, em que não é difícil encontrar a influência de Heidegger. Por que Sein und Zeit permanece tão silencioso sobre a questão do amor? Examinemos um pouco mais de perto a nota sobre o amor em Sein und Zeit. Encontra-se no parágrafo 29 (ET29), que é dedicado à Befindlichkeit e às Stimmungen. A nota não contém uma única palavra de Heidegger, mas apenas duas citações, a primeira de Pascal: “E daí deriva que em vez de dizer, falando das coisas humanas, que é necessário conhecê-las para amá-las, o que se tornou uma máxima, os santos, ao contrário, dizem, falando das coisas divinas, que é necessário amá-las para conhecê-las, e que só se entra na verdade pela caridade, da qual eles fizeram uma de suas máximas mais úteis”; a segunda é de Agostinho: “Não se entra na verdade senão através da caridade” (no intratur in veritatem, nisi per caritatem). Ambas as citações — e a segunda em particular — afirmam uma espécie de primado ontológico do amor como acesso à verdade. Graças à publicação das últimas lições de Marburgo do segundo semestre de 1928, sabemos que a referência a esse papel fundamental do amor provém das conversas com Max Scheler sobre o problema da intencionalidade. Escreve Heidegger: “Scheler foi o primeiro a mostrar, em particular no ensaio Liebe und Erkenntnis, que os comportamentos intencionais são de diferente natureza e que, por exemplo, o amor e o ódio fundam o conhecimento. Scheler retoma aqui motivações que estão presentes em Pascal e Santo Agostinho” (Met. Anf., 169).7 Tanto no ensaio citado por Heidegger como em um texto da mesma época, mas publicado postumamente sob o título de Ordo Amoris, Scheler insiste na condição originária do amor. Podemos aí ler: “Der Mensch ist, ehe er ein ens cogitans oder ein ens volens ist, ein ens amans” [O homem, antes de ser um ens cogitans ou um ens volens, é um ens amans”]. Heidegger está perfeitamente consciente da importância fundadora do amor, fundadora no sentido em que condiciona precisamente a possibilidade do conhecimento e do acesso à verdade. Por outro lado, nas lições do semestre de verão de 1928, a referência ao amor tem lugar no contexto de uma discussão sobre o problema da intencionalidade, na qual Heidegger critica a concepção corrente da intencionalidade como relação cognitiva entre um sujeito e um objeto. Esse texto é precioso porque, através de tal crítica, que não poupa seu mestre Husserl, Heidegger mostra como, para ele, a noção de intencionalidade foi superada pela estrutura de transcendência que Sein und Zeit chama de In-der-Welt-Sein. Na concepção da intencionalidade como relação entre um sujeito e um objeto, o que, para Heidegger, permanece inexplicado é justamente o que seria preciso explicar, ou seja, a relação em si mesma:

Essa falta de explicação repercute sobre a indeterminação do que está aí em relação (…) Procurou-se recentemente conceber essa relação como uma relação de ser (…) Com essa explicação não se esclarece nada, enquanto não se disser que gênero de ser está aqui em questão e enquanto o gênero de ser dos entes, entre os quais a relação deve se dar, permanecer obscuro (…) O ser é aqui pensado, à maneira de Hartmann e de Scheler, como ser disponível (Vorhandensein). Ora, essa relação não é nada, mas também não é algo da ordem do ente, no sentido de algo simplesmente disponível (…) Um dos objetivos preliminares fundamentais de Sein und Zeit é o de esclarecer essa relação em sua essência original (GA26:Met. Anf., 163-164).

Mais original ainda que a relação sujeito-objeto é, para Heidegger, a autotranscendência do In-der-Welt-Sein, no qual o Dasein se abre ao mundo para além de toda subjetividade. Antes que algo como um sujeito ou um objeto possa se constituir, o Dasein — essa é uma das teses centrais de Sein und Zeit — está já aberto ao mundo: “Das Erkennen selbst vorgängig grundet in einem Schon-sein-bei-der-Welt” [“O conhecer em si mesmo se funda previamente em um já-ser-junto-ao-mundo”] (SuZ, p. 61). E é só a partir dessa transcendência original que algo como uma intencionalidade pode ser compreendida quanto a seu modo de ser próprio.

Portanto, se Heidegger, reconhecendo plenamente o estatuto do amor, não trata tematicamente desse problema, é precisamente porque o modo de ser da abertura mais original de todo conhecimento (aquela que, segundo Agostinho e Scheler, tem lugar no amor) é, em certo sentido, o problema central de Sein und Zeit. Por outro lado, o amor, se quisermos compreendê-lo a partir dessa abertura, não pode mais ser concebido segundo a representação corrente, como uma (258) relação entre um sujeito e um objeto ou como a relação entre dois sujeitos. Ele deve antes encontrar seu lugar e sua articulação própria no Schon-Sein-bei-der-Welt que caracteriza a transcendência do Dasein.

Ora, qual é o modo de ser desse Schon-Sein-bei-der Welt? Em que sentido o Dasein está sempre junto ao mundo e às coisas que o circundam antes ainda de conhecê-las? Como é possível para o Dasein se abrir a qualquer coisa sem fazer dela o correlato objetivo de um sujeito cognoscente? E como é possível que a própria relação intencional seja esclarecida quanto a seu modo de ser particular e em seu primado em relação ao sujeito e ao objeto?

É nesse contexto que Heidegger introduz a noção de facticidade (Faktizität).

  1. KOEPP, Wilhelm. Merimna und Agapei. In: KOEPP, Wilhelm (Ed.). Reinhold-Seeberg-Festschrift. Leipzig: Deichert, 1929.[]
  2. BINSWANGER, Ludwig. Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins. Zurich: Niehans, 1942. Heidegger respondeu 20 anos depois a essas críticas no seminário de Zollikon, evocando explicitamente o nome de Binswanger: “Uma vez que o cuidado é visto unicamente como a constituição fundamental do Dasein em seu isolamento como sujeito e como sua determinação antropológica, ele pode parecer, com boas razões, uma interpretação do Dasein unilateral e sombria, que requer uma integração através do ‘amor’. Mas o cuidado, corretamente entendido, isto é, de modo fundamental, nunca é separável do ‘amor’, ele nomeia a constituição extático-temporal do caráter fundamental do Dasein, isto é, a compreensão do ser. O amor se funda de maneira tão decisiva na compreensão do ser como o cuidado entendido antropologicamente. E podemos esperar que uma determinação essencial do amor, que procure seu fio condutor na determinação fundamentológica do Dasein, seja mais profunda e de maior alcance que a definição do amor, que vê nele apenas algo mais elevado em relação ao cuidado” (HEIDEGGER, Martin. Zollikoner Seminare. Frankfurt am Main: Klostermann, 1987. ρ. 237).[]
  3. JASPERS, Karl. Notizen zu Martin Heidegger. Munchen; Zurich: Piper, 1978. p. 34.[]
  4. LÖWITH, Karl. Phänomenologische Ontologie und protestantische Theologie. In: POGGELER, Otto (Ed.). Heidegger. Perspektiven zur Deutung seines Werks. Königstein: Athenäum, 1984. p. 76.[]
  5. As cartas foram depois publicadas: ARENDT, Hannah; HEIDEGGER, Martin. Briefe 1925 bis 1975 und andere Zeugnisse. Frankfurt am Main: Klostermann, 1998 (tradução italiana: Lettere 1925-1975 e altre testimonianza. Torino: Edizioni di Comu-nità, 2001).[]
  6. YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt. For Love of the World. New Haven; London: Yale University Press, 1984. p. 247 (tradução italiana: Hannah Arendt 1906-1975. Per amore dei mondo. Torino: Bollati Boringhieri, 1990).[]
  7. As obras de Heidegger são citadas com as seguintes abreviaturas: SuZ (= Sein und Zeit. Tubingen: Niemeyer, 1927); Weg. (= Wegmarken. Frankfurt am Main: Klostermann, 1967); Nietzsche (Nietzsche. Pfullingen: Neske, 1961); Sache (= Zur Sache des Denkens. Tubingen: Niemeyer, 1976); Gel. (= Gelassenheit. Pfullingen: Neske, 1959); Ar. Met. (= Aristoteles, Metaphysik Theta 1-3. Frankfurt am Main: Klostermann, 1981. v. 33 da Gesamtausgabe)·, Met. Anf. (= Metaphysische Anfangsgrunde der Logik im Ausgang von Leibniz, ivi, 1978. v. 26 da Gesamtausgabe); Phän. Int. (= Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Frankfurt am Main: Klostermann, 1985. v. 61 da Gesamtausgabe).[]