Agamben (2015:244-245) – faculdade [dynamis]

Há, porém, uma aporia: por que não há sensação dos próprios sentidos (ton aistheseon… aisthesis)? Por que, na ausência de objetos externos, eles não proporcionam sensação, mesmo tendo em si o fogo, a água e os outros elementos dos quais há sensação? Isso acontece porque a faculdade sensitiva (to aisthetikon) não é em ato, mas só em potência (dynamei monon). Por isso não tem sensações, tal como o combustível não arde por si, sem um princípio de combustão; de outro modo, consumir-se-ia a si próprio e não teria necessidade de fogo existente em ato (enthelcheiai… ontos).

Estamos tão habituados a representar a sensibilidade como uma faculdade da alma que essa passagem do De anima (417 a 2-9) não parece nos colocar problemas. O vocabulário da potência penetrou tão profundamente em nós que não percebemos que, nessas linhas, surge pela primeira vez um problema fundamental, que, como tal, vem à luz na história do pensamento ocidental só em alguns momentos decisivos (no pensamento moderno, um desses momentos é a obra de Kant). Esse problema — que é o problema original da potência — se enuncia na pergunta: “O que significa ter uma faculdade? De que modo algo como uma ‘faculdade’ existe?”.

A Grécia arcaica não concebia a sensibilidade, a inteligência (ou, ainda menos, a vontade) como “faculdades” de um sujeito. A própria palavra aisthesis é, em sua forma, um nome de ação em -sis, que exprimia uma atividade real. Como pode, então, uma sensação existir na ausência de sensação, existir uma aisthesis no estado de anestesia? Essas perguntas nos introduzem imediatamente no problema daquilo que Aristóteles chama de dynamis, potência (um termo em relação ao qual convém recordar que significa tanto potência como possibilidade e que os dois significados nunca foram dissociados, como acontece, no entanto, nas traduções modernas). Quando dizemos que um homem tem a “faculdade” de ver, a “faculdade” de falar (ou, como escreve Hegel, e Heidegger repetirá a seu modo, a “faculdade” da morte), quando afirmamos simplesmente “isso não está em minhas faculdades”, movemo-nos já na esfera da potência. O termo “faculdade” exprime, assim, o modo como uma certa atividade é separada de si mesma e atribuída a um sujeito, o modo como um vivente “tem” sua práxis vital. Algo como uma “faculdade” de sentir se distingue do sentir em ato, de modo que este possa ser referido propriamente a um sujeito. Nesse sentido, a doutrina aristotélica da potência contém uma arqueologia da subjetividade, é o modo como o problema do sujeito se anuncia a um pensamento que não tem ainda essa noção. Hexis (de echo, “ter”), hábito, faculdade, é o nome que Aristóteles dá a essa in-existência da sensação (e das outras “faculdades”) em um vivente. O que é assim “tido” não é uma simples ausência, mas algo que assume a forma de uma privação (no vocabulário de Aristóteles, steresis, “privação”, está em relação estratégica com hexis), isto é, de algo que atesta a presença do que falta ao ato. Ter uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação. Por isso, a sensação não se sente a si mesma, como o combustível não queima por si. A potência é, portanto, a hexis de uma steresis: “Às vezes, o potente é tal porque tem algo, outras vezes porque lhe falta. Se a privação é de algum modo uma hexis, o potente é tal ou porque tem uma certa hexis ou porque, dela, tem a steresis” (Metaph., 1019 b 5-8).

(AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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