Agamben (2015:167-168) – o pensamento do *se

Com Hegel e Heidegger, a tradição da filosofia chegou verdadeiramente a o fim. Como tinha sido anunciado do modo mais explícito, o que aqui estava em questão era precisamente um “fechamento das figuras” (Phän., 588) e uma “destruição da tradição” (SuZ, par. 6 (ET6)). A tradição, que cobria o que se tinha destinado em figuras, mostra-se agora como aquilo que era: uma transmissão intransmissível, que não transmite nada senão a si. A filosofia, isto é, a tradição de pensamento que colocava como sua arche o espanto, remontou agora para além da arche e mora em seu ethos, pensa *se. Isso, a morada do homem e seu fundamento mais próprio, permanece, na tradição, como um puro destinar sem destino, uma transmissão indizível. Isso significa: o homem, o animal falante, é o infundado que se funda indo ao fundo em seu abismo e, como in-fundado, incessantemente repete sua ausência de fundamento, abandona-se a si. O *se é abandonado (verlassen) à tradição como intransmissível e, só desse modo negativo, fundado em si mesmo (“in sich selbst gegrundete Bewegung derselben” — Phän., 589): ele é o mistério das origens que a humanidade transmite como fundamento próprio e negativo.

Todavia, justamente porque o desvelamento desse abandono do *se constitui o resultado extremo do pensamento de Hegel e de Heidegger no ponto em que procuram pensar o mais próprio, um pensamento que aspire elevar-se à altura desse resultado não pode, no confronto com ele, limitar-se a assumi-lo para repeti-lo ao infinito. E, no entanto, isso é tudo quanto parece hoje disposto a fazer um pensamento que, na forma de uma hermenêutica, de uma filosofia da diferença ou de um pensamento negativo, apresenta como solução uma pura e simples repetição do problema metafísico fundamental: que a transmissão não transmite nada (senão a si mesma), que a diferença é anterior à identidade, que o fundamento é o abismo. Desse modo, o fim da tradição, que era o resultado supremo do pensamento do Absoluto e do pensamento do Ereignis, é transformado em sua in-finitude, e a ausência de destino e de fundamento, transformada em um destino e em um fundamento in-finitos. Tanto Hegel como Heidegger tinham ao contrário afirmado, de fato sem possibilidade de mal-entendidos, que a vinda ao pensamento do abandono de *se na tradição podia apenas significar pensar, ao mesmo tempo, o fim da história do ser e de suas figuras epocais. Esse era o sentido da palavra Absoluto, esse o sentido da Apropriação. Pensar o rastro como origem, pensar o transmitir sem transmissão e a diferença como diferença pode apenas significar que os rastros são suprimidos, que a transmissão chegou ao fim, isto é, que as destinações históricas terminaram, que o homem está definitivamente em seu próprio, que seu saber de si é absoluto. A fundação do homem como humano — isto é, a filosofia, o pensamento do *se — se completou. O in-fundado do homem — a hominização — é agora própria, isto é, absolvida de toda negatividade e de todo ter sido — de toda natureza e de todo destino. E é essa apropriação, essa absolvição, essa morada ética em *se que deve ser cuidadosamente pensada, com Hegel e para além de Hegel, com Heidegger e para além de Heidegger, se não quisermos que o que se apresenta como a superação da metafísica recaia, pelo contrário, simplesmente nela em uma in-finita repetição.

(AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015)

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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