Agamben (2015:165-166) – Ereignis e linguagem

Experimentemos agora pensar o Ereignis do ponto de vista da linguagem, como palavra as-sue-ta (as-sue-fatta), reconduzida a seu próprio. O que pode ser, nesse sentido, uma linguagem em que o destinante já não se subtrai no que é destinado senão uma linguagem em que o dizer já não se esconde no que é dito, em que a pura língua dos nomes não decai nas instâncias concretas de discurso? Isso não significa, todavia, uma língua que fique junto de si, no silêncio, um tema que nunca chegue a se declinar em seus “casos”. Aqui se mostra antes — diz Heidegger — a ocultação como tal, o puro destinar sem destino: o que advém à linguagem não são simplesmente palavras nem sequer um puro nome não proferido, mas é, antes, a própria diferença entre língua e fala, a pura — e em si intransmissível — destinação do dizer à fala (“die Bewegung der Sage zur Sprache”, GA12:Sprache, 261). Significa isso que o pensamento do Ereignis é, como o Absoluto de Hegel, pensamento da pura declinação?

Em Identidade e diferença (GA11), Heidegger formula deste modo a diferença entre seu pensamento e o de Hegel quanto à coisa (Sache) a pensar: “Para Hegel, a coisa do pensamento é o pensamento (Gedanke) como conceito absoluto. Para nós, a coisa do pensamento, provisoriamente nomeada, é a diferença como diferença” (GA11:Ident., 37). Para Hegel, trata-se, assim, de pensar o fato de a palavra se tornar igual a si mesma ao ser proferida na totalidade das instâncias de discurso: a palavra integralmente com-preendida, con-cebida: o conceito absoluto. Heidegger quer, ao contrário, pensar em si mesma a diferença entre dizer (GA14:Sage) e linguagem (GA12:Sprache); ele procura, assim, uma experiência da linguagem que experimente aquele Es que, destinando-se à palavra, fica ele próprio sem destino, aquele agente de transmissão que, em toda instância de linguagem e em toda transmissão, permanece intransmitido. Este é o Próprio, o *se que nunca alcança o nominativo e é, por isso, sem nome: não o conceito absoluto, o ser que se tornou igual a si no ser outro, mas a absoluta diferença, apropria diferença, reconduzida a si. Mais uma vez, pensamento do Absoluto e pensamento do Ereignis mostram sua proximidade essencial e, ao mesmo tempo, sua divergência. Para Hegel, podemos na verdade dizer, o indizível já está sempre dito, como um ter-sido, em todo discurso (omnis locutio ineffabile fatur)·, para Heidegger, ao contrário, ele é precisamente o que permanece não dito na palavra humana, mas que é possível experimentar nela como tal (“im Namenlosen zu existieren” — Weg., 150). Precisamente por isso, porém, na medida em que toda linguagem humana é necessariamente histórica e destinada (Sprache, 264), só des-falando (Entsprechen) e arriscando o silêncio o homem pode corresponder à diferença (“im Nichtsagen nennen, Erschweigen” — GA6T1:Nietzsche, I, 471).

Essa impossibilidade de apreender o próprio Es nas proposições Es gibt Zeit, Es gibt Sein se torna transparente se recordarmos que o pronome impessoal es é, originariamente, um genitivo (genitivo de er: es ist Zeit, “é tempo disso”, ich bin’s zufrieden, “estou satisfeito com isso”, etc.). Com o tempo, o genitivo es em expressões desse tipo deixou de ser percebido como tal e se tornou, no uso linguístico, equivalente a um nominativo. Um processo análogo está na origem do pronome impessoal italiano si (em si dice, sifa), que representa um dativo ou um acusativo (latim sibi, se). Aqui, um pronome que, como genitivo, indica uma predicação de pertença, o fato de algo ser próprio de algo, torna-se sujeito de um sintagma verbal que se apresenta, por isso, como impessoal. Se es é um genitivo e não um nominativo, compreende-se por que razão Heidegger, procurando pensar o es gibt Zeit, es gibt Sein, tenha de pensá-lo como um Ereignis, uma apropriação e uma as-sue-tude (as-sue-fazione). No Ereignis, tempo e ser co-pertencem, são apropriados a um mesmo. Mas a quem e a que coisa? O Ereignis, como es, como genitivo, não existe nem se dá: Es não existe como entidade lexical, tal como não existe o si.

O pensamento que quer pensar o Próprio (tal como o que quer pensar o *se) não pode resultar em uma entidade lexical, em algo existente. O Próprio, o ethos do homem, na medida em que é ele mesmo o que destina, permanece não nomeado na filosofia; sem nome, isto é, sem destino: uma transmissão intransmissível.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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