Agamben (2014:III.1.1) – vida

Selvino Assmann

1.1. Uma genealogia do conceito de zoe deve começar pela constatação — de nenhum modo óbvia, inicialmente — de que na cultura ocidental “vida” não é uma noção médico-científica, mas um conceito filosófico-político. Os 57 tratados de Corpus hippocraticum, que reúnem os textos mais antigos da medicina grega, compostos entre os últimos decênios do século V e os primeiros do século IV a. C., ocupam, na edição Littré, dez volumes in quarto; mas um exame de Index hippocraticum mostra que o termo zoe aparece apenas oito vezes, nunca com significado técnico. Assim, os autores de Corpus podem descrever minuciosamente os humores que compõem o corpo humano e cujo equilíbrio determina a saúde e a doença, podem interrogar-se a respeito da natureza do nutrimento, do crescimento do feto e da relação entre modos de vida (diaitai) e saúde, além de descrever os sintomas das doenças agudas e, por fim, refletir sobre a arte médica, sem que jamais o conceito “vida” assuma importância nem função específica. Isso significa que não é necessário o conceito “vida” para construir a techne iatrike.

[(Dos oito textos de Corpus em que aparece a palavra zoe, três (Carta a Damagete, O discurso no altar (Oratio ad aram) e Discurso à embaixada de Téssalo (Tessali legati oratio)) não têm caráter médico e certamente são apócrifos. Das outras cinco ocorrências, três referem-se à duração da vida do paciente com respeito à morte iminente: Art., 63: “Sua vida se prolongará só por alguns dias” (zoe oligomeros toutoisi ginetai). Affect., 23: “Não há nenhuma esperança de vida” (zoes oudemia elpis); Praec., 9: “Perdem a vida” (metallassousi tes zoes). Por fim, em duas, o sentido podería ser relevante, mas ficou totalmente indeterminado: Cor., 7: “Eles (os grandes vasos) são as fontes da natureza humana, os rios que borrifam o corpo e trazem a vida ao homem” (ten zoen pherousi toi anthropoi); Alim., 32: “Potência uma e não uma, pela qual tais coisas e as outras são administradas — uma para a vida do todo e da (222) parte (zoen hollou kai merou), a outra para a sensação do todo e da parte”. Esta última ocorrência é a única na qual, pela oposição entre vida e sensação, o termo zoe parece adquirir um significado menos genérico.

Também o verbo zen, “viver”, que aparece 55 vezes em Corpus, nunca tem significado técnico e, quando não designa genericamente os “seres vivos ”, refere-se à duração da vida ou, na fórmula estereotipada ouk an dynaito zen, à impossibilidade de sobreviver em determinadas condições.

O outro termo para “vida” em grego, bios (no sentido, que aqui interessa, de forma de vida ou de vida humana qualificada) aparece 35 vezes em Corpus, sobretudo no célebre incipit, de Aforismos: Ho bios brachys, he de techne makre (a vida é curta, a arte é longa). Confirmando a falta de tecnicização do conceito “vida” no âmbito médico, os textos de Corpus mostram, com relação àqueles literários e filosóficos, certa indeterminação da oposição zoe/bios (cf.,por exemplo, Flat., 4). (AGAMBEN, Giorgio. O Uso dos Corpos. Homo Sacer IV,2. São Paulo, Boitempo, 2017, p. 221-222))]

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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