Agamben (1996:C1) – vida nua

Davi Pessoa

1. Os gregos não tinham um termo único para exprimir o que entendemos pela palavra vida. Serviam-se de dois termos semântica e morfologicamente distintos: zoé, que manifestava o simples fato de viver, comum a todos os viventes (animais, homens ou deuses), e bios, que significava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. Nas línguas modernas, em que essa oposição desaparece gradualmente do léxico (onde é conservada, como em biologia e zoologia, ela não indica mais nenhuma diferença substancial), um único termo – cuja opacidade cresce proporcionalmente à sacralização de seu referente – designa o nu pressuposto comum que é sempre possível isolar em cada uma das inumeráveis formas de vida.

Com o termo forma-de-vida entendemos, ao contrário, uma vida que jamais pode ser separada da sua forma, uma vida na qual jamais é possível isolar alguma coisa como uma vida nua.

2. Uma vida, que não pode ser separada da sua forma, é uma vida para a qual, no seu modo de viver, está em jogo o próprio viver e, no seu viver, está em jogo antes de tudo o seu modo de viver. O que significa essa expressão? Define uma vida – a vida humana – em que os modos singulares, atos e processos do viver nunca são simplesmente fatos, mas sempre e primeiramente possibilidade de vida, sempre e primeiramente potência. Comportamentos e formas do viver humano nunca são prescritos por uma vocação biológica específica nem atribuídos por uma necessidade qualquer, mas, por mais ordinários, repetidos e socialmente obrigatórios, conservam sempre o caráter de uma possibilidade, isto é, colocam sempre em jogo o próprio viver. Por isso – isto é, enquanto é um ser de potência, que pode fazer e não fazer, conseguir ou falhar, perder-se ou encontrar-se –, o homem é o único ser em cujo viver está sempre em jogo a felicidade, cuja vida é irremediável e dolorosamente destinada à felicidade. Porém isso constitui imediatamente a forma-de-vida como vida política. (“Civitatem… communitatem esse institutam propter vivere et bene vivere hominum in ea” (A cidade se constitui em comunidade para que os homens vivam nela juntos e bem): Marsílio de Pádua, Defensor pacis, V, II).1

3. O poder político que conhecemos sempre se funda, ao contrário, em última instância, na separação de uma esfera da vida nua do contexto das formas de vida. No direito romano, vida não é um conceito jurídico, mas indica o simples fato de viver ou um modo particular de vida. Há um único caso no qual o termo vida adquire um significado jurídico que o transforma em um verdadeiro e peculiar terminus technicus: é na expressão vitae necisque potestas, a qual designa o poder de vida e de morte do pater sobre o filho homem. Yan Thomas 2 mostrou que, nessa fórmula, que não tem valor disjuntivo, vida não é senão um corolário de nex, do poder de matar.

A vida aparece, assim, originariamente no direito, somente como parte contrária de um poder que ameaça de morte. Mas o que vale para o direito de vida e de morte do pater vale com maior razão para o poder soberano (imperium), do qual o primeiro constitui a célula originária. Assim, na fundação hobbesiana da soberania, a vida no estado de natureza só é definida pelo seu ser incondicionadamente exposta a uma ameaça de morte (o direito ilimitado de todos sobre tudo), e a vida política, isto é, aquela que se desenvolve sob a proteção do Leviatã, não é senão essa mesma vida, exposta a uma ameaça que repousa, agora, apenas nas mãos do soberano. A puissance absolue et perpetuelle,3 que define o poder estatal, não se funda, em última instância, em uma vontade política, mas na vida nua, que é conservada e protegida somente na medida em que se submete ao direito de vida e de morte do soberano (ou da lei). (Este, e não outro, é o significado originário do adjetivo sacer referido à vida humana.) O estado de exceção, sobre o qual o soberano decide todas as vezes, é precisamente aquele no qual a vida nua, que, na situação normal, aparece reunida às múltiplas formas de vida social, é colocada explicitamente em questão como fundamento último do poder político. O sujeito último, que se trata de excetuar e, ao mesmo tempo, de incluir na cidade, é sempre a vida nua.

4. “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que corresponda a esse fato.” Esse diagnóstico de Benjamin, que já tem mais de cinquenta anos,4 não perdeu nada de sua atualidade. E isso não tanto ou não apenas porque o poder não tem, hoje, outra forma de legitimação que não seja a emergência, e por todos os lugares e continuamente faz apelo a ela e, ao mesmo tempo, trabalha secretamente para produzi-la (como não pensar que um sistema que pode agora funcionar apenas na base de uma emergência não esteja do mesmo modo interessado em mantê-la a qualquer preço?), mas também e, sobretudo, porque, nesse ínterim, a vida nua, que era o fundamento oculto da soberania, tornou-se por toda parte a forma de vida dominante. A vida, no estado de exceção tornado normal, é a vida nua que separa em todos os âmbitos as formas de vida de sua coesão em uma forma-de-vida. À cisão marxiana entre o homem e o cidadão sucede, assim, aquela entre a vida nua, portadora última e opaca da soberania, e as múltiplas formas de vida abstratamente recodificadas em pessoas jurídico-sociais (o eleitor, o trabalhador dependente, o jornalista, o estudante, mas também o soropositivo, o travesti, a estrela pornô, o idoso, o progenitor, a mulher), que repousam todas nela. (Ter permutado essa vida nua separada de sua forma, em sua abjeção, por um princípio superior – a soberania ou o sagrado – é o limite do pensamento de Bataille, que para nós se torna inservível.)

5. A tese de Foucault, segundo a qual “o que está colocado em jogo é hoje a vida” – e a política, por isso, se tornou biopolítica –, é, nesse sentido, substancialmente exata. Decisivo é, porém, o modo como se entende o sentido dessa transformação. Aquilo que resta de fato não interrogado, nos debates atuais sobre a bioética e sobre a biopolítica, é precisamente aquilo que mereceria ser, antes de tudo, questionado, e, portanto, o próprio conceito biológico de vida. Os dois modelos, simetricamente contrapostos por Rabinow 5 – da experimental life 6 do cientista acometido de leucemia, que faz de sua própria vida um laboratório de pesquisa e de experimentação ilimitada, e aquele de quem, ao contrário, em nome da sacralidade da vida, exaspera a antinomia entre ética individual e tecno-ciência –, participam ambos, de fato, sem se darem conta disso, do mesmo conceito de vida nua. Esse conceito – que se apresenta hoje sob as vestes de uma noção científica – é, na realidade, um conceito político secularizado. (De um ponto de vista estritamente científico, o conceito de vida não tem nenhum sentido: “as discussões sobre o significado real das palavras vida e morte”, escreve Medawar,7 “são índice, em biologia, de uma conversa de baixo nível. Tais palavras não têm nenhum significado intrínseco, e este não pode, por isso, ser esclarecido por um estudo mais atento e aprofundado”.)

Daí derivam a frequentemente inadvertida mas decisiva função da ideologia médico-científica no sistema do poder e o uso crescente de pseudoconceitos científicos com fins de controle político: a mesma operação da vida nua, que o soberano podia fazer, em certas circunstâncias, sobre as formas de vida, é agora maciça e cotidianamente atuada pelas representações pseudocientíficas do corpo, da doença e da saúde e pela “medicalização” de esferas sempre mais amplas da vida e da imaginação individual. A vida biológica, forma secularizada da vida nua, que tem indecibilidade e impenetrabilidade em comum com esta, constitui literalmente, assim, as formas de vida reais em formas de sobrevivência, permanecendo nelas intocada como a obscura ameaça que pode atualizar-se imediatamente na violência, na estranheza, na doença e no acidente. Ela é o soberano invisível que nos olha por trás das máscaras insensíveis dos poderosos que, percebendo ou não isso, nos governam em seu nome.

Original

  1. Marsílio de Pádua (1275-1342), filósofo, pensador político, médico e teólogo italiano. (N.T.)[↩]
  2. Yan Thomas (1943-2008), jurista e historiador francês; autor da tese de doutorado Causa: sens et fonction d’un concept dans le langage du droit romain, apresentada em 1976, na Universidade de Paris II. (N.T.)[↩]
  3. Em francês, no original. Tradução: “potência absoluta e perpétua”. (N.T.)[↩]
  4. A primeira edição italiana de Meios sem fim é de 1996. (N.T.)[↩]
  5. Paul Rabinow (1944 -) é professor de antropologia na Universidade da Califórnia (Berkeley). (N.T.)[↩]
  6. Em inglês, no original. Tradução: “vida experimental”. (N.T.)[↩]
  7. Peter Brian Medawar (1915-1987), biólogo britânico nascido no Brasil, em Petrópolis. Recebeu o Nobel de Medicina, em 1960, com pesquisa sobre o sistema imunológico dos animais. (N.T.)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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