Entre as muitas convulsões que Heidegger introduz em relação ao pensamento metafísico sobre o tempo, a sua descoberta do a-vir (fr. avenir) não é a menos importante, e é talvez esta ênfase no a-vir, pela primeira vez na filosofia, que melhor ilustra o salto a que Ser e Tempo nos compromete. Desde a Física de Aristóteles (Livro Δ), o pensamento metafísico nunca questionou verdadeiramente o entendimento do tempo como uma sequência de “agoras”, que determina todas as nossas representações atuais do tempo, a começar por aquela através da qual representamos a sequência do tempo, como diz Kant, “por uma linha que se estende até ao infinito e cujas várias partes constituem uma série que tem apenas uma dimensão” (Crítica da Razão Pura, A 33/B 50). É verdade, porém, que devemos a Husserl, nas Lições para uma Fenomenologia da Consciência Íntima do Tempo, o questionamento do “dogma da momentaneidade” (§7), distinguindo entre a análise dos objetos no tempo e a temporalidade da própria percepção. Assim, ao colocar a “questão inteiramente nova” (§ 7) da constituição do próprio tempo na sua relação íntima com a consciência e a constituição primordial (Urkonstitution) do ego, Husserl conseguiu fazer aparecer o tempo não mais como uma série de “agoras”, mas como um continuum que assegura a unidade do sujeito (o § 36 intitula-se “O fluxo constitutivo do tempo como subjetividade absoluta”). Em todas estas análises de uma dificuldade e sutileza sem precedentes, de grande beleza filosófica, aquilo a que Husserl chama retenção desempenha o papel principal (Bergson já via a essência da consciência na memória), porque é a retenção que torna possível a constituição da consciência como um fluxo contínuo (§ 39). Significativamente, a protenção, que se volta para o a-vir, só desempenha um papel secundário nesta auto-constituição e permanece sempre como que subserviente à retenção (§ 24), de modo que o futuro se revela em Husserl antes no modo do “futuro anterior” (Didier Franck).
Heidegger conhecia bem estas lições, que editou em 1928 a partir de um texto escrito por Edith Stein. Reconhece a sua originalidade, mas quanto ao essencial para ele, “em relação ao problema do tempo, tudo permanece basicamente como era antes” (GA26, 264). O que não muda, neste caso, é que Husserl continua preso a uma concepção do tempo como infinito. Aqui compreendemos porque é que a seção de Ser e Tempo dedicada à relação entre “Dasein e temporalidade” abre com um capítulo dedicado ao possível ser do Dasein. O que está em jogo é decisivo, porque com o ser-inteiro do Dasein, surge um tempo finito, o tempo da finitude que é o do Dasein e já não o de uma subjetividade absoluta. “O tempo originário é finito” diz Heidegger (ÊT, 331) e é desta efusão do tempo (Heidegger entende sempre a palavra Ur-sprung, origem, no ímpeto do verbo springen, brotar) que o a-vir, propriamente dito, pode advir.