Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.
§ 8. Para uma estética de intuição
§ 8. Para uma estética de intuição
Escrevemos no início deste Prefácio que o presente livro de Ingarden nos dá, ao mesmo tempo, menos e mais do que o seu título promete. A obra literária é o objeto principal deste estudo. Mas, sem deixar de o ser, torna-se o fio condutor que o filósofo de Cracóvia manobra com grande liberdade. Dela se passa ao teatro, à pantomima, ao filme; a partir desse ponto fixo considera a obra científica, entrevê o domínio das artes plásticas (§§ 56-60). É natural que só mais tarde tenha compreendido que a literatura fazia parte, desde o início, de um conjunto mais vasto. Um projeto apenas meio consciente em 1930. Da sua consciencialização nasceu Untersuchungen zur Ontologie der Kunst em 1962. Eis mais ou menos o que diz o Prefácio da terceira edição de A Obra de Arte Literária.
Ingarden reconhece, pois, o caráter excessivo do seu livro. Não acontece o mesmo com o que pode chamar-se o seu aspecto deficitário: a dimensão que dá ao termo literatura está longe de poder abranger todas as produções literárias.
Leia-se o § 25 a), em que responde às objeções de Käte Hamburger. A despeito da importância que dá à persuasão, Ingarden não nos convence a não ser no respeitante à modificação de neutralidade. No essencial K. Hamburger tem razão: o conceito ingardiano de obra literária é demasiado estreito, aplicável somente à poesia épica e dramática. O mundo nelas apresentado apenas simula ou reproduz a realidade. Por outras palavras, a forma de arte, a corrente literária que Ingarden toma constantemente por modelo é a arte realista. Aí vai buscar, como é natural, as suas realizações mais caraterísticas: romance, novela, drama. O romance histórico, o drama histórico ocupam mesmo um lugar privilegiado. Raras vezes se fala da lírica em A Obra de Arte Literária, e sempre em breves apontamentos.
Endurecemos talvez a posição de Ingarden… Em 1930 muita água tinha corrido por sobre o programa realista, novos manifestos haviam surgido, não só em literatura tomo em pintura, em música, em vários sectores da arte. O espírito curioso e de larga cultura do pensador polaco não o ignora! A prova é que admite a possibilidade de outros cânones artísticos. Admite-os em teoria, parece-nos, e, o que é significativo, como casos-limites ou excepções (§§ 38, 46, 52…). De uma maneira ou de outra logo regressa à norma, ao terreno familiar. Terreno não indiscutivelmente aceite, por uma qualquer espécie de direito, mas admitido como um fato ou escolha tácita.
Tudo isto diz respeito ao 3.° estrato e à excepcional importância que Ingarden lhe atribui. E o 3.° estrato, por sua vez, remete-nos para o papel da imaginação na leitura, na leitura da ficção em especial, visto que dela se trata, de maneira por assim dizer exclusiva.
Tantas vezes abordamos já este 3.° estrato, com mais ou menos demora, que nos podemos resumir finalmente.
Para o compreender, duas noções husserlianas de base. Num primeiro tempo temos atos de pura intenção ou de intenção vazia, pensamento conceitual vazio [A distinguir de uma intuição das essências!], consciência signitiva ou significativa… versus intuição ou preenchimento. Impõe-se distinguir, em seguida, os vários atos intuitivos: percepção (nas suas diversas modalidades), imaginação, memória, intropatia…
O ato intuitivo por excelência, segundo Husserl, é a percepção sensível, a que chama também experiência ou doação originária. É ela que nos dá as coisas mesmas, «em pessoa», «em carne e osso» (metáforas husserlianas), numa plenitude que é a mais perfeita, embora prometa mais do que é capaz de dar. A sua estrutura é complicada; as coisas no espaço e no tempo só se oferecem em esboços, perfis (Abschattungen), aspectos sempre parcelares, fragmentários, que sucessivamente se encadeiam e completam. Como horizonte de cada ato perceptivo, um feixe de intenções vazias, espaços abertos a futuras intuições, que podem ou não revestir a intencionalidade perceptiva.
[NOTA: Na última nota ao § 34 de A Obra de Arte Literária, Ingarden afirma que Husserl considera também os atos de imaginação como originaria-mente doadores. E indica como fonte o manuscrito de um curso de 1922. Não conhecemos este manuscrito nem o consultamos para o nosso estudo L’imagination selon Husserl. Tudo quanto podemos dizer é que esta concepção é contrária à doutrina de Husserl na totalidade das obras que utilizamos. Ela é contrária também ao próprio Ingarden!
Não podemos afirmá-lo, mas é possível que se trate apenas de um mal-entendido ocasionado pelo gosto husserliano das distinções subtis de terminologia. Porque o texto a que esta nota se reporta continua a distinguir a «apresentação» (Präsentation) da percepção, que é uma auto-doação em pessoa da «apresentação» realizada pela imaginação ou fantasia. A única novidade que encontramos aqui é o termo de Präsentation, normalmente reservado à percepção (apresentação no sentido forte: tornar presente), atribuído à imaginação.
A esta são normalmente consagradas as designações de Repräsentation ou Vergegenwärtigung (representação, presentificação).
Isto é, de fato, novo e parece contraditório porque a distinção entre percepção e imaginação mantém-se.]
O § 40 de A Obra de Arte Literária contém um bom resumo da teoria husserliana da percepção. Uma nota, logo no início, esclarece: no período de Göttingen, Husserl usou com frequência Ansicht (aspecto). Mais tarde Aspekt, Abschattung (foi este último termo que se generalizou). Ingarden prefere guardar a designação antiga, Ansicht.
Estamos agora a ver a infra-estrutura do 3.° estrato, que lhe serve ao mesmo tempo de modelo.
O Ansicht esquematizado é, assim, o inesperado horizonte que surge, aqui e além, numa obra literária — narrativa, descrição, diálogo — e que, graças à imaginação do leitor, atualiza o que é apenas «esquema» vazio, disponibilidade. Vemos determinada rua de Paris (§ 42), acompanhamos determinada personagem e com ela atravessamos corredores e descemos escadas (§ 45). Frequentemente nos identificamos com as personagens que mais nos tocam.. . Instantes fugidios e transitórios como as Abschattungen do ato perceptivo, enigma de plenitude e esvaziamento, onde tudo está sempre a recomeçar e prestes a morrer. Espaços privilegiados de um livro que se dilatam, abrem o tempo para repetições imaginárias de paisagens experimentadas num passado que, por momentos, se anima e volve quase-presente.. . Espaços elásticos, de dimensões incertas, que também podem concentrar-se num ponto só, na intensidade de uma quase-presença resumida.
Já fizemos referência neste Prefácio à problemática da «obra aberta». Sem negar as linhas de convergência com Eco ou com Barthes, pode concluir-se agora que o ângulo de abertura que Ingarden nos propõe em A Obra de Arte Literária é mais restrito e a intenção diferente. A margem concedida aos leitores para que a partir de experiências diversas se apropriem da obra, fazendo dela leituras pessoais e diferentes, nasce apenas do 3.° estrato. É através dos horizontes abertos pelos aspectos esquematizados que a liberdade imaginativa pode mover-se, saindo das páginas do livro, passando a uma atitude intuitiva que recria coisas e pessoas, que as toca como se as estivesse vendo.
Esta a primeira conclusão que se impõe. Mas há algo de mais importante a dizer sobre o assunto. A intuição imaginativa, ao introduzir-se na leitura, é o fator de valorização estética, por um lado. Mas, por outro, desfigura a obra literária. Eis um problema sério que Ingarden formula no § 63 do seu livro.
Convém não esquecer o propósito anti-psicologista que o atravessa, as repetidas advertências de que se não deve confundir a obra e o seu autor, explicar a primeira pelas experiências, a vida, a história daquele que a escreveu. A obra é considerada em si mesma como entidade autônoma e, neste sentido, fechada. O mundo que nela se apresenta é, de fato, apresentado na própria obra, na sua imanência. Uma transcendência na imanência, se quisermos, como é o intencional husserliano corretamente interpretado.
[NOTA: Inútil sublinhar a orientação comum, neste ponto, entre as correntes de análise literária mais vivas por volta de 1930: a Estilística, o New-Criticism americano, o Formalismo russo. Acrescente-se a que provém do impulso fenomenológico e que é visível em R. Ingarden, M. Dufrenne e outros.]
Na filosofia de Husserl o mundo real foi definitivamente posto entre parêntesis pela redução transcendental [ao escrever estas palavras temos a consciência de formular um problema, não de apresentar uma solução]. Poderá sê-lo na literatura?
Pela dupla influência de pressupostos correntemente aceites pelos padrões da análise literária da época e do imperativo feno-menológico de regresso às próprias coisas (no caso, as próprias obras…), Ingarden mantém com intransigência o princípio da imanência.
Mas a maneira como concebe o 3.° estrato e o valor que lhe atribui não constituem uma ameaça séria a esta mesma imanência?
Convém ler os §§ 44-46, em que o papel privilegiado que os aspectos desempenham na apreensão estética de uma obra literária é posto em evidência. Mais uma vez estamos em presença de um pensamento que se elabora diante de nós e não escamoteia as dificuldades. O 3.° estrato tem uma carga de valor estético que lhe é própria, nisto, como noutras coisas, um dos elementos a considerar na polifonia da obra. Quem diz polifonia não pode pensar monopólio… Ingarden não consegue evitar, contudo, um desequilíbrio, um quase açambarcamento do estético pelo 3.° estrato, a que corresponde, como se viu, a função de reprodução imaginativa. O valor artístico de uma obra depende, em última análise, da sua capacidade de evocar abreviadamente, por fulgurações momentâneas, o mundo real das coisas, dos lugares, das pessoas, das experiências do leitor. A estes momentos excepcionais que «fazem ver» chega a chamar instantâneos fotográficos. A sua importância, quase diríamos o seu volume, na obra faz com que esta atinja ou não o nível da grande arte.
Mas, afinal, ainda estamos no domínio da imanência? O mundo real foi ou não foi definitivamente posto entre parêntesis? O 3.° estrato ameaça este equilíbrio; a intuição imaginária pode fazê-lo ressurgir a cada instante.
A estética da intuição (da Einfuhlung) foi uma corrente muito viva na Alemanha em fins do séc. XIX e princípio do séc. XX. Tem raízes pré-fenomenológicas, e o movimento feno-menológico, nalguns casos, serviu-lhe de aliado. Nela se podem incluir Th. Lipps, J. Volkelt, Max Scheler, Moritz Geiger, Roman Ingarden [R. Bayer, Histoire de l’esthétique, 346-9; H. Spiegelberg, The phenomenological movement I, 214].
Imanência, intuição… Tal como nos surgem em Ingarden, não podemos descobrir uma certa contradição entre duas exigências de polo oposto? Mas a contradição não é total. A modificação de neutralidade nunca perde os seus direitos e age como um travão. O leitor é quase levado a ver, a ouvir, a atravessar o livro para passar à realidade. Mas esta é sempre uma quase-realidade em que nunca chega a acreditar a sério. Pode até reviver, num esforço de regresso ao passado (remoto ou próximo), mas é um esforço antecipadamente fracassado pois nunca fará brotar a frescura do que foi vivido na presença, na coincidência, na verdade. Em vez de contradição será talvez mais exato falar de tensão.
O conceito de obra de arte em Husserl tem por base o que designamos por «primado da percepção». Neste como noutros pontos, o discípulo permanece fiel ao professor de Göttingen, queremos dizer, concretamente, à primeira fase de Husserl. Também em Ingarden se deve falar, apesar de tudo, do primado da intuição.
[NOTA: Na primeira fase, Husserl utiliza duas categorias para definir o estético: a presentificação (Vergegenwärtigung) e a modificação de neutralidade. Na segunda fase guarda só a Neutralitätsmodifikation, e a Vergegenwärtigung desaparece. (Perspectivas da Fenomenologia de Husserl), 104-5. Haveria que mostrar o parentesco entre a Vergegenwärtigung husserldana e a Abbildungsfunktion de Ingarden.]
Não será a intuição que leva o filósofo polaco a passar naturalmente da literatura ao mundo do espetáculo (teatro, pantomima, filme), às artes que fazem ver de maneira propriamente dita? Isto explicaria a sua preferência pelo teatro, a que atribui a primazia, dentro dos gêneros literários (§ 63). Primazia porquê? Dentro da sua lógica, tal primazia explica-se.
Formulamos uma hipótese. Utna afirmação seria abusiva. Até porque nos §§ 49-50 a intuição perceptiva se alarga. Assim como Husserl admite uma percepção ou intuição intelectuais, Ingarden fala-nos, por sua vez, de uma visão das qualidades metafísicas: o que, para além dos cenários imaginários que ajuda a recriar, uma obra comunica. Trata-se, corno é óbvio, de um comunicar intuitivo que elimina distâncias, da capacidade de revelar, de interpelar, de tocar o leitor no mais profundo de si mesmo.
Umas breves palavras a concluir este Prefácio. No livro rico e denso que é A Obra de Arte Literária há coisas a mais para a nossa exigência atual de especialização. Linguística, literatura, estética, lógica, fenomenologia, ontologia…
Estará Ingarden definitivamente ultrapassado, ou não será mais acertado ver nele um precursor, sobretudo ao afirmar a necessidade de uma reflexão filosófica sobre linguística e literatura? O problema foi posto no início destas considerações.
É indiscutível que os bons (ou maus) velhos tempos de Descartes e Newton passaram: um edifício único com vários compartimentos ou a famosa árvore com raízes, tronco e ramos de nomes diferentes. Mas, pela mesma razão, não deveriam passar também os múltiplos «álibis» de um positivismo que não cessa de renascer periodicamente das próprias cinzas?
Parece indispensável distinguir hoje (mais do que Ingarden o fez…) três coisas: primeiro, o que é do domínio autônomo de cada ciência e que só por abstração se pode separar dos pressupostos filosóficos, teológicos ou políticos a que em regra testa ligado. Isto é sobretudo válido numa perspectiva diacrônica. É possível reconstruir a história da matemática, da física ou da linguística numa síntese, aliás sempre provisória, registando o que, num processo de selecção e sedimentação, o trabalho de séculos foi acumulando, rejeitando, corrigindo, aperfeiçoando de maneiras várias. (Há épocas de rotura e épocas de continuidade, por exemplo.)
Em segundo lugar, e aqui pensamos na «ciência que se faz», há que explicitar os pressupostos filosóficos e ideológicos que informam a investigação em cada ciência nas suas várias correntes, escolas ou tendências. Explicitá-los, assumi-los.
Finalmente, e tio respeitante aos sectores que de maneira especial nos interessam: importa criar uma Filosofia da Linguagem (que não dispensa, talvez, uma Filosofia da Linguística…) e uma Filosofia da Literatura — designação bem mais pertinente do que Teoria da Literatura, reflexão que englobaria esta última e iria. muito mais longe.