A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva
Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.
§ 7. Estratos e funções da linguagem
§ 7. Estratos e funções da linguagem
Reúnam-se alguns fios que ficaram soltos nas páginas anteriores deste Prefácio.
Ingarden usa com frequência a palavra função no sentido de função da linguagem e relaciona, de modo pouco claro, estratos e funções. Em sua opinião, a função expressiva, que Buhler divulgou na Sprachtheorie, remonta a Husserl e a Twardowski. A este propósito entrecruza dois problemas diferentes: o da expressão verbal e o da função expressiva, como é fácil concluir, pelo que atrás dissemos. Do primeiro nos ocupamos no § 5; do segundo nos ocuparemos em breve.
Antes disso importa explicitar, ao menos nas suas coordenadas fundamentais, as relações entre estratos e funções. A associação dos dois no espírito de Ingarden vem de 1930. Mas o assunto foi amadurecendo após essa data. O estudo de 1958 As Funções da Linguagem no Espetáculo Teatral é uma prova disso.
Ingarden lembra, no § 1, que toda a obra literária, c uma construção linguística bidimensional. Enumera a seguir os quatro estratos de 1930, e no § 3 aparece a nota a que já se fez referência, na qual Buhler, Husserl e Twardowski aparecem pela segunda vez associados. Falta acrescentar o próprio Ingarden que, num trabalho de 1956, distinguiu cinco funções. Destas, afirma, apenas utiliza quatro, no estudo em questão: a função apresentativa, a função expressiva, a função de comunicação, a função de persuasão.
A originalidade e a finura desta análise ingardiana do espetáculo teatral são inegáveis, o que justifica a sua recente tradução francesa [Poétique, 8 (Paris, Seuil, 1971)].
Quanto ao assunto que nos interessa, dizemos que amadureceu se entendermos por isso que o discípulo de Husserl e de Pfander se preocupou cada vez mais com o problema das funções da linguagem, não que a relação entre estratos e funções se tenha clarificado. Tal clarificação, pelo menos, não é visível no estudo publicado como Apêndice de A Obra de Arte Literária.
Mas se tentarmos, por conta própria e para os nossos leitores, introduzir uma certa ordem no imenso material que nos é proposto, algumas linhas de organização começam a desenhar-se.
a) A base da linguagem: 1.° e 2.° estratos
O estrato fônico-linguístico e o estrato das unidades de significação podem reduzir-se, num sentido muito geral, às duas faces do signo saussuriano: significante e significado. Falamos de Saussure e não de Husserl por nos dirigirmos a um público de formação linguística. Na realidade, a terminologia, a inspiração, o gosto das distinções subtis, são de origem husserliana, já o verificamos.
O 1.° e 2.° estratos, Ingarden não cessa de o repetir, possuem uma importância excepcional, que lhes confere um lugar à parte no conjunto. Impossível pô-los ao lado dos outros, quer em si mesmos, quer no papel que desempenham na formação dos restantes estratos. Constituem a base da linguagem. Não será esta a ideia do autor, no início do estudo sobre teatro, ao afirmar que toda a obra literária é uma construção linguística bidimensional?
O Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage faz. referência ao ato linguístico, que Buhler aproxima do ato de significar dos medievais ou ainda do ato doador de sentido isolado por Husserl [426. B. Malmberg fala também na influência das Investigações Lógicas de Husserl em K. Buhler (op. cit.), 308]. E o autor do artigo «Langage et ation» acrescenta: «É, pois, um ato inerente ao ato de falar e independente dos projetos nos quais o discurso se insere. O estudo deste ato faz assim parte integrante do estudo da língua e constitui mesmo o seu núcleo central.
Em que consiste agora esta atividade linguística original, esta pura atividade do significar?» (Dictionnaire…, 426)
O passo transcrito serve de introdução ao ato de comunicação de K. Buhler e às suas funções da linguagem, assim como ao desenvolvimento posterior que lhe deu Jakobson.
Encarar segundo esta perspectiva o 1.° e o 2.° estratos é simplificar em extremo a «análise engenhosa e altamente técnica» de que falam Wellek e Warren; não cremos, contudo, falsear o pensamento de Ingarden.
Pode concluir-se este breve apontamento dizendo que não há funções (ou «projetos») nos dois primeiros estratos de A Obra de Arte Literária — considerados na sua complementaridade. Precisão fundamental, pois verernos em breve que ambos são de grande importância em relação a uma ou outra função quando tomados separadamente.
Só em conjunto, formando uma unidade, é lícito ver neles o «projeto fundamental» dentro do qual se especificam e articulam o ou os «projetos particulares» de cada mensagem: as nossas conhecidas funções da linguagem.
b) A função expressiva e o 1.° estrato
A função expressiva tem sido mencionada com frequência ao longo deste Prefácio. É natural começarmos por ela. Acresce que está intimamente relacionada com o 1.” estrato.
É no cap. 4 (§§ 9-13), consagrado ao estrato fônico-linguístico, na nota ao § 9 atrás referida, que surge pela primeira vez a função expressiva. E o estudo que aqui se publica cm Apêndice remete para o parágrafo que fecha o capítulo.
Nesse § 13, Ingarden fala da função expressiva na acepção de Husserl e põe em evidência a importância do estrato fônico na manifestação dos vários estados psíquicos, na vida psíquica concreta das personagens (trata-se de teatro…), irredutível à zona da pura comunicação do pensamento. Estamos muito perto da função expressiva de Buhler ou função emotiva de Jakobson! Os exemplos dados por Ingarden assemelham-se muito com os deste último autor.
[NOTAS: Ao contrário do que acontece no § 9 de A Obra de Arte Literária e no § 3 do Apêndice, a referência a Husserl no § 13 não aparece em notas de rodapé mas no corpo do parágrafo. Isto leva a supor que data de 1930. Mas nada podemos concluir em segurança por não dispormos da primeira edição.
Essais de linguistique générale (Paris, Les Editions de Minuit, 1963), 214-6. A A. Marty (muito citado por Ingarden) diz Jakobson que deve a designação de função emotiva.]
Mas será possível filiar esta função em Husserl e em Twardowski? No respeitante a Husserl, não parece errado responder afirmativamente desde que se façam certas precisões.
Sem descer a grandes minúcias de exegese, pode resumir-se o pensamento de Husserl, nos §§ 6-8 da 1a Investigação, da seguinte maneira: uma expressão significa, por um lado, graças aos atos doadores de sentido; manifesta ou exprime, por outro [Kundgibt (Log. Unt., II, 1), 32], tal ou tal ato psíquico daquele que fala. Por outras palavras, a comunicação entre duas pessoas faz-se através de expressões em que alguém se exprime e em que, ao mesmo tempo que se exprime, comunica algo, A estas duas faces da «expressão na sua função comunicativa» (Op. cit., II, 1, 32) chama Husserl função expressiva [Kundgebende Funktion, op. cit., II, 1, 33]. Muito à sua maneira, distingue nesta um sentido estrito ou próprio: a função expressiva propriamente dita e um sentido largo que engloba as duas faces da comunicação.
Note-se que as vivências ou atos psíquicos em questão não são exclusivamente de cariz afetivo ou emotivo. Provam-no os exemplos dados. Ingarden deixa subsistir a mesma generalidade, mas acusa-se nele, de maneira mais acentuada, a tendência para opor os atos emotivos à zona da pura comunicação do pensamento (§ 13, por exemplo).
Há, portanto, no filósofo de Cracóvia uma maior aproximação de Buhler-Jakobson.
Resumindo: a função expressiva de Ingarden não pode reduzir-se ao estrato fônico, mas está intimamente relacionada com ele, o que ninguém contesta hoje!
c) A função apresentativa, o 4.° e o 2.° estratos
Enquanto a função expressiva depende do 1.° estrato, mas há a considerar nela outros fatores, verifica-se uma tendência marcada para aproximar mais — fazer corresponder — a função apresentativa, do 4° estrato (objetidades apresentadas) e a função de reprodução imaginativa, do 3° (os tais «aspectos disponíveis», aos quais se não fez ainda o comentário que merecem).
Sobre a função apresentativa releia-se o § 19, em que é citado o artigo de Buhler de 1920. Ingarden critica-o, mas não terá vindo dele a influência e mesmo a terminologia? Parece que sim. E, uma vez mais, há razões para crer que esta fonte se amalgamou com outra, que é mais profunda e vem de mais longe — a leitura, o ensino de Husserl.
Numerosas análises de Ingarden levam à conclusão de que a função apresentativa corresponde ao 4.° estrato. Mas este está numa relação estreita com o 2.° estrato, o das unidades significativas! Nessa medida, a função apresentativa o está também.
Repare-se na ordem de sucessão, à primeira vista pouco compreensível, dos estratos. O 3.° estrato é deixado para o fim, caps. 8 e 9 (§§ 39-46), e o 4.° estrato é estudado logo a seguir ao 2°. Mais concretamente, do 2° estrato se ocupa o cap. 5 (§§ 14-26); do 4.°, o cap. 7 (§§ 32-37). O cap. 6 (§§ 27-31) serve de transição e a sua finalidade é mostrar os laços que unem o nível da significação e o nível do mundo apresentado.
E nesse capítulo, nomeadamente no § 28, que Ingarden afirma com insistência: o conteúdo de sentido das frases é o elemento decisivo para a constituição das objetidades apresentadas; numa frase que enuncia algo a respeito de um objeto X, este objeto é determinado pela significação de sujeito da frase; as objetidades apresentadas numa obra são-no graças às unidades de significação; as relações objetivas desempenham uma função essencial na constituição do «mundo» que um texto ou uma obra nos apresentam.
Qualquer que seja a dimensão da unidade escolhida (frase, período, obra) o pensamento de Ingarden não varia.
Ora é também neste cap. 6, e logo no título, que aparece a Darstellungsfunktion, função apresentativa segundo Ingarden.
Abrimos um breve parêntesis para relembrar o que já atrás ficou dito. A Bedeutung husserliana pode ser considerada segundo duas maneiras diferentes embora estreitamente relacionadas: como ato (o ato doador de sentido,) e como unidade de significação. Ambas as acepções se encontram nas Investigações Lógicas, mas nem sempre é fácil desembrenhá-las uma da outra.
O medo constante de recair no psicologismo explica uma nota do § 15 de A Obra de Arte Literária, em que Ingarden marca uma certa distância em relação a A. Marty, que vê na significação um ato ou unia vivência… Isto não tem nada a ver com a sua própria concepção, escreve o filósofo polaco. Mas as coisas não são assim tão simples… Ingarden sabe-o e, talvez por isso, volta a debater longamente o problema no § 18, para concluir que a referência intencional de um nome a um objeto através da significação é o reflexo do pensar intencional contido no ato doador de sentido. Aqui se encontram refeitos, ao fim e ao cabo, os dois sentidos da Bedeutung husserliana.
Considero pois o puro ato de significar como o terreno comum ou o «projeto fundamental» da comunicação linguística, dentro do qual se explicitam as várias funções da linguagem. Inútil sublinhar a importância e atualidade desta concepção.
d) A função apresentativa e a de reprodução imaginativa (3.° e 4.° estratos)
Assim como a passagem do 2.° para o 4.° estrato é feita cuidadosamente no cap. 6, assim também os últimos parágrafos do cap. 7 são parágrafos de transição — do 4.° para o 3.° estrato.
Pensamos, em especial, no importante § 37. Aí se estabelece o confronto entre a função apresentativa e uma outra, que poderia chamar-se função representativa ou de representação mas que preferimos designar por função de reprodução imaginativa (ou, simplesmente, função de reprodução) por razões de clareza.
[NOTA: É a Darstelhmgsfunktion de Ingarden que traduzimos por função apresentativa. Ao lado desta surge agora a função de reprodução ou função de reprodução imaginativa: Abbildungsfunktion por vezes, mais frequentemente Funktion der Zuerscheinungsbringen (Erscheinung: aparição, visão). O § 37, onde todas estas designações aparecem, merecia um estudo aprofundado. A Repräsentationsfunktion aí se encontra também, com dois sentidos diferentes. Em rigor só deve aplicar-se ao 3.° estrato. Ingarden emprega-a pouco, certamente para evitar a excessiva carga sêmica da palavra Repräsentation na psicologia do fim do século XIX e até na fenomenologia husserliana. A seu exemplo evitamo-la também.]
Entre estas duas funções da linguagem há uma grande diferença e uma grande afinidade. Na primeira tentos o que nos é apresentado de maneira puramente intelectual. Apresentação opõe-se, pois, a aparecimento, reprodução intuitivos. Na segunda função as coisas são-nos dadas como se as estivéssemos vendo. É esta, afinal, a «função» do 3.° estrato: levar o leitor a ultrapassar o que Husserl e Ingarden chamam o domínio das intenções vazias para adoptar uma intencionalidade intuitiva.
Como se estivesse vendo… Como se… A modificação de neutralidade ou passagem ao irreal não perde nunca os seus direitos, no domínio da literatura de ficção como no do espetáculo teatral. Mesmo neste a percepção tem de ser neutralizada para que o espetáculo não se perca como espetáculo e a obra de arte mantenha a sua especificidade. Muitos racistas, sem dúvida, assistiam à representação de Otelo, numa tarde de Agosto de 1822, em Baltimore. Mas só o soldado inculto, de guarda no interior do teatro, se precipitou para o palco de espingarda em punho, no 5.° ato, para defender Desdêmona da fúria de um negro [Stendhal, Racine et Shakespeare (Paris, J.-J. Pauvert, 1965), 38-9]. Os primeiros tinham-se instalado na atitude necessária à ilusão teatral (Op. cit., 36-42). Estavam no teatro, assistiam a uma «representação», a um espectáculo… O segundo confundiu os planos.
Voltando à literatura, a única forma de intuição a que o leitor pode recorrer é a intuição imaginária, visto que a intuição por excelência, a percepção, lhe está por princípio vedada (§§ 34, 42). Desenvolveremos este aspecto da questão no parágrafo seguinte.
Ao 3.° e 4.° estratos correspondem, pois, duas funções. Duas funções diferentes? Diferentes apesar da conexão existente entre elas? Ou duas modalidades de uma mesma função? O leitor não terá dificuldade em seguir a reflexão de Ingarden. As três maneiras de encarar o problema estão presentes na obra de 1930, devendo reconhecer-se que as duas primeiras oferecem larga margem de preferência. No entanto, ao escrever As Funções da Linguagem no Espetáculo Teatral, em 1958, Ingarden evoluiu, e foi na terceira solução que se fixou.
[NOTA: É possível que esta solução seja já adoptada em 1956 no livro Über die Ubersettung, que não conhecemos, onde apresenta as cinco funções da linguagem (cf. nota ao § 3 do trabalho de 1958).]
Temos assim (e abstraindo da sua aplicação ao teatro) a função apresentativa, que pode revestir caráter puramente conceitual ou processar-se de tal modo que a apresentação dos objetos intencionados se faça em aspectos evocados imaginativamente; a função expressiva que, como vimos, deve muito a Husserl e a Buhler; a função de persuasão, porventura a mais autenticamente ingardiana… Não viria, contudo, a despropósito confrontá-la com a função apelativa de Buhler-Jakobson.
Temos, finalmente, a função de comunicação. Vimos já que esta designação se encontra em Husserl, e é bom relembrar o contexto em que aparece. Husserl não pensava, por certo, nas funções da linguagem tais como hoje as entendemos. Embora a referência a Twardowski, precisamente à obra a que Ingarden atribui tanta importância nesta matéria, devesse ser analisada mais de perto.
De qualquer modo, sabemos todos hoje que a comunicação não é uma função que se possa colocar ao mesmo nível das outras, que ela é a fronteira que separa uma tradição de dois milênios — a linguagem, expressão do pensamento — da linguística moderna.
Sem abandonar por completo a perspectiva tradicional, Husserl introduz, antes de Saussure, a ideia fundamental de que a linguagem serve para comunicar. À sua maneira, assim como que de passagem, como quem lança sementes num vasto campo, tantas e tão variadas que em muitos casos ficam longo tempo escondidas ou só descobrimos os seus frutos nos terrenos vizinhos.
Mas, afinal, quais as funções da linguagem propriamente ditas? E quantas? Temos as de Buhler, as de Ingarden, as de Jakobson, para citar só estes. Terá Jakobson dito a última palavra sobre o assunto? Pela nossa parte não o cremos. É mais que provável que novas funções venham a ser descobertas. Porque não?