Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.
§ 6. Percepção e significação
§ 6. Percepção e significação
A.-J. Greimas escreve na Sémantique structurale que a percepção é «o lugar não linguístico onde se situa a apreensão da significação» [(Paris, Larousse, 1966), 8], que o significante designa «os elementos ou grupos de elementos que tornam possível a aparição da significação. ao nível da percepção (…)» (Op. cit., 10), que as significações «são recobertas pelo significante e manifestadas graças à sua existência» (Op. cit., 10). Afirmações análogas se encontram nas pp. 11, 18, 30 e outras.
[NOTA: «Quel que soit le statut du signifiant, aucune classification de signifiés n’est possible à partir des signifiants. La signification, par conséquent, est indépendante de la nature du signifiant grâce auquel elle se manifeste», p. 11. Aqui a inspiração parece ser diferente e poderia ser interpretada em sentido husserliano. Quanto à frase citada na nota precedente, é tão vaga que admite todas as interpretações possíveis.]Para um leitor apressado todas estas formulações se equivalem e não levantam problema. Sobretudo se são lidas à luz da preferência expressa por Merleau-Ponty e pela sua atitude epistemológica, que carateriza, segundo Greimas, a das ciências humanas em geral no séc. XX (Op. cit., 7).
Tudo parece claro e simples. Merleau-Ponty deu o golpe de misericórdia nos dualismos vetustos do passado, iniciando ou corroborando o reinado da clareza, da não-ambiguidade… Para desgraça dos espíritos cartesianos de todos os tempos (dualistas ou não, o que é, afinal, secundário) as coisas nunca são simples, e Merleau-Ponty não fala de simplicidade mas precisamente de ambiguidade — ambiguidade em sentido forte e não no de confusão ou mal-entendido.
No que respeita a percepção e significação, apenas uma pergunta: será exatamente a mesma coisa dizer que a percepção é o lugar onde se apreendem as significações e afirmar que estas se manifestam ao nível da percepção? É discutível, claro… Tudo depende do sentido que se atribui a cada termo… Quer-nos parecer, contudo, que a primeira formulação poderia ser compreeti-dida num sentido tradicional: «Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu»… Pois onde apreender as significações a não ser na percepção, na experiência, melhor, a partir da experiência, visto que não há outro ponto de partida seja para o que for?! Mas, sendo assim, onde está a novidade? Visto que de novidade se trata, tal interpretação é inaceitável. E a fórmula que melhor condensa o pressuposto epistemológico de Greimas parece ser a que aponta para a significação dada ao nível da percepção.
Continuamos a perguntar: a apreensão significativa é uma e a mesma coisa que a apreensão perceptiva? É um elemento da percepção, identifica-se ou reduz-se à percepção? Este o verdadeiro problema, o que deveria fazer refletir. Mas até agora só ouvimos repetir.
Antes de continuar, duas observações.
Greimas não nos interessa de maneira especial. Partimos dele pela importância que tem no panorama linguístico atual e por ser um bom representante de uma atitude que tende a generalizar-se. É esta atitude que nos interessa, e justamente porque tende a generalizar-se.
Segundo ponto: de que percepção se trata? Esta questão impõe-se porque Husserl distingue da percepção sensível (a «sensação» dos velhos tempos) uma outra percepção, intelectual, categoria!. Percepção, intuição e experiência são termos praticamente sinônimos. Temos assim duas formas diferentes de percepção, de intuição, de experiência. No quadro da fenomenologia husserliana a distinção é nítida e não é possível confundir os planos. Fora dele este alargamento pode ser fonte de confusões. Husserl não será, em certa medida, responsável pelo sentido vago e indeterminado que se dá por vezes à percepção? Talvez. Mas só por um conhecimento também vago e impreciso do seu pensamento.
Terminamos este parêntesis precisando que ao falar de percepção nos referimos sempre à percepção sensível ou doação originária em sentido estrito.
Deixando agora de lado Merleau-Ponty e a relação entre a sua epistemologia e a de Husserl, gostaríamos de voltar à teoria husserliana do signo linguístico. Ou à teoria ingardiana da Wortlaut. No ponto que nos interessa, mestre e discípulo estão de acordo: a expressão como tal (o signo linguístico de Saussure) nunca pode ser objeto de simples percepção porque investida por um significado. Por outras palavras: o significado não se apreende ao nível da percepção.
Concordamos que o pensamento de Husserl não é de uma total clareza, a maneira como se exprime também não. Mas se as coisas mesmas não são claras e simples? Se são… ambíguas? Afinal, Husserl diz bem esta ambiguidade em vez de a dissolver.
No Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage pode ler-se a propósito de «signo»: «O ponto mais litigioso diz respeito à natureza do significado. Tem-se definido este como falta, ausência no objeto perceptível, que se torna assim significante. Esta ausência equivale, pois, à parte não sensível; quem diz signo tem de aceitar uma diferença radical entre significante e significado, entre sensível e não sensível, entre presença e ausência. O significado, diremos tautologicamente, não existe fora da sua relação com o significante — nem antes, nem depois, nem para além; é o mesmo gesto que cria o significante e o significado, conceitos que se não podem pensar um sem o outro. Um significado sem significante é o indizível, o impensável, o inexistente mesmo. A relação de significação é, em certo sentido, contrária” à identidade consigo: o signo é ao mesmo tempo o que está ali e o que falta: originariamente duplo.» [Op. cit. (Paris, Seuil, 1972), 132-3]
Onde Husserl fala de material e espiritual aqui diz-se «sensible et non sensible», «présence et absence», «marque et manque»…
Desejo de empregar terminologia nova (nova?… Sartre não anda longe…) para evitar o «espiritual», carregado de uma certa ideologia que se pretende evitar a todo o custo? Parece que sim. De qualquer modo não se cai em afirmações simplistas, de uma clareza total, que conduzem em regra a certezas curtas. E o importante é não esvaziar o real da sua carga de opacidade, de complexidade, de não coincidência consigo mesmo.
Este o verdadeiro problema. O dualismo ou não dualismo é secundário, dissemos. Nunca se louvará suficientemente Mer-leau-Ponty, por exemplo, por ter desembaraçado a filosofia do dualismo simplista de Descartes, que a experiência desmente a cada passo. Lembremos, a propósito, que Freud, inimigo insuspeito dos dualismos platônico e cartesiano, descobriu o fenômeno da ambivalência, caraterístico de tantos mecanismos inconscientes normais e sempre detectável nas neuroses. Poderíamos citar alguns outros casos. Mas este não bastará para deixar antever que há dualismos falsos e dualismos certos?
Poderá contestar-se: dualismo é uma coisa, ambiguidade e ambivalência é ou são outras. Aceitamos a objeção. Pensamos mesmo que ela é fecunda. Possível ponto de partida para uma reflexão generalizada que se impõe. Aqui apenas a tocamos, indicando a direção em que nos parece situar-se: a dialética do uno e do múltiplo, para além da alternativa monismo-dualismo.
Afastamo-nos do nosso assunto, mas julgamos esta digressão oportuna. Usamos um método ultrapassado: parece que nos limitamos a opor uma ou várias autoridades a outras tantas. Isto é só, de fato, o que parece. Invocamos os autores que melhor nos serviram para exprimir as nossas próprias evidências. Mas o problema da evidência não será um dos prismas em que a dialética do uno e do múltiplo se refrata? A evidência é o injustificável último. Injustificável, no sentido de não admitir como possível ou necessária qualquer justificação ulterior. Pluralidade injustificável como a pluralidade das consciências — de que decorre. Irredutível como ela, em larga medida.
Num certo sentido, a pluralidade das consciências parece ser irredutível e nela encontramos a contingência fundamental [J.-P. Sartre, L’être et le néant (Paris, Gallimard, 1943), 362-3].