A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva (5)

A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva
Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.
§ 4. A teoria dos estratos

§ 4. A teoria dos estratos

Impossível passar em silêncio, neste Prefácio, a famosa teoria dos estratos, que constitui o travejamento fundamental de A Obra de Arte Literária. Ainda aqui encontramos a influência de Husserl. Aliás, Pfänder, Ingarden, Hartmann, outros talvez, foram todos beber à mesma fonte.

O livro Teoria da Literatura, de R. Wellek e A. Warren, foi, sem dúvida, o principal instrumento que divulgou junto do público português o nome do filósofo polaco e quase exclusivamente a teoria dos estratos! Primeiro, a tradução espanhola, de 1953, que teve larga difusão nos nossos meios universitários. Anos depois, a tradução portuguesa. O original inglês é de 1942 e a ele se refere Ingarden no Prefácio à terceira edição do presente livro para rectificar interpretações que considera erradas ou superficiais do seu pensamento. A breve referência de Wellek-Warren não parece, de fato, uma boa introdução, mas a «análise engenhosa e altamente técnica» do antigo estudante de Göttingen não torna muito acessível o seu trabalho.

Com efeito, a enumeração dos quatro estratos, que se encontra no § 8, e à descrição dos quais é consagrada a quase totalidade do volume, suscita numerosas interrogações.

Num quadro de pensamento e terminologia tradicionais (as unidades linguísticas são ainda, neste livro, a palavra e a frase; as modernas noções de fonema, monema, morfema, sintagma, são-lhe desconhecidas), Ingarden fala-nos, contudo, de problemas a que Saussure, Buhler, Jakobson, Eco, Greimas, Barthes… nos habituaram. A alguns se fez referência. Podemos acrescentar o problema do significado, o das funções da linguagem e outros.

A palavra função aparece-nos, por assim dizer, a cada página deste livro com sentidos diversos. Mas, com frequência, estratos e funções (no sentido, hoje corrente, de funções da linguagem) estão relacionados ou confundidos. Esta relação não é clara mas é profunda no espírito de Ingarden e vem de 1930. Numerosas passagens de A Obra de Arte Literária se ocupam da função expressiva Funktion des Ausdruckens ou Ausdrucksfunktion por vezes, geralmente Funktion der Kundgabe ou Kundgabefunktion. Encontramo-la nos §§ 9, 10, 12, 19, 26… O § 19 tem especial interesse, pois refere um artigo de K. Buhler, de 1920, que contém um esboço do esquema que a Sprachtheorie difundiu em 1934: as três funções da linguagem. Mas a influência de Buhler não é única; outros autores são citados, no texto ou em notas, Husserl nomeadamente, no § 13. Esta última influência revela-se ainda na preocupação de Ingarden em distinguir a função expressiva de outra — que passaremos a designar por função apresentativas —, ou seja, a Darstellungsfunktion de Buhler, função denotativa ou referencial de Jakobson.

Tudo isto se tornará mais claro nos parágrafos seguintes ao considerarmos alguns problemas que a teoria dos estratos suscitou.

A fim de abrir caminho aos dois problemas que atrás mencionamos: o significado, as funções da linguagem, é útil chamar a atenção para duas notas acrescentadas à segunda edição, uma ao § 9, outra ao estudo de 1958, As funções da Linguagem no Espectáculo Teatral, (§ 3), publicado em Apêndice.

Estas duas notas foram motivadas pelo sucesso da Sprachtheorie, que apareceu pouco depois da obra de Ingarden; nelas se encontram associados os nomes de Buhler, Husserl e Twardowski. A intenção de Ingarden parece clara: Buhler não é tão original como se pensa porque, antes dele, Husserl tinha isolado, nas Investigações Lógicas, a função expressiva, que aliás se encontra já em Twardowski numa obra de 189436. A segunda nota é mais extensa e pretende ser mais explícita que a primeira. Citando sempre as Investigações, acrescenta-se: Husserl ocupou-se aí minuciosamente, demoradamente (ausfurlich), de Ausdruck e Kundgabe (podemos traduzir, respectivamente, por «expressão» no sentido de expressão verbal e «expressão» ou «manifestação» no sentido de função expressiva). Husserl modificou esta terminologia, numa época posterior, para Bedeutung e Ausdruck («significação» e «expressão»). Há aqui algumas confusões.

Mais uma vez, e generalizando, o que é e o que não é de Husserl? Sem descer a um estudo exaustivo, repetimos, tocaremos no assunto, e Husserl estará presente nos quatro pontos seguintes, todos eles suscitados pela teoria ingardiana dos estratos, a saber: a teoria husserliana do signo linguístico; percepção e significação; estratos e funções da linguagem; para uma estética da intuição.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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