A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva (4)

A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva
Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.
§ 3. Psicologismo, antipsicologismo, fenomenologia

§ 3. Psicologismo, antipsicologismo, fenomenologia

A crise das ciências é um fenômeno bem conhecido que domina as últimas décadas do século passado e entra pelo século XX. Husserl é um dos que, ao lado de tantos outros, enfrentam esta crise e tentam resolvê-la. Por isso passa da matemática à lógica, da lógica à fenomenologia, numa motivação que permanece através de metamorfoses várias: a de introduzir ordem, clareza e rigor num edifício onde reina o caos.

Na sua tentativa para fundar a lógica em bases sólidas encontra o psicologismo, ou seja, o imperialismo da psicologia, que, juntamente com a história, tenta reduzir todas as outras ciências a meras províncias do seu império. Os leitores de formação linguística ou literária estão familiarizados com a abusiva pretensão da história, com o historicismo reinante na «filologia» e na crítica literária, sobretudo pelas reações famosas e fecundas que provocou. Conhece menos o psicologismo, mas o modelo historicista apresenta caraterísticas idênticas. Talvez se possa dizer que eram dois monopólios em concorrência, ou aliando-se por vezes, para tornar mais confusas as coisas.

O psicologismo lógico era, pois, uma realidade. Mas a ética, a estética, e assim por diante, não escapavam ao seu projeto de dominação ou dominação efetiva. «O mundo é a minha representação», tal a fórmula corrente no final do século que condensa bem o psicologismo epistemológico. Esta tendência remonta a Hume e é dela que fala Sartre no artigo citado páginas atrás, que muitos leitores portugueses conhecem. «Que é uma mesa, um rochedo, uma casa? Uma certa reunião de “conteúdos de consciência”, um arranjo destes conteúdos. Ó filosofia alimentar!» «Contra a filosofia digestiva do empírio-criticismo, do neokantismo, contra todo o “psicologismo”, Husserl não se cansa de afirmar que é impossível dissolver as coisas na consciência.»

Antecipando sobre o assunto do § 5, não convirá lembrar que a famosa «imagem acústica» de Saussure é um exemplo admirável da «filosofia alimentar» de que fala Sartre? Uma espécie de duplo (imagem), de cópia, de representação psíquica no interior da consciência concebida como armazém… Assim, Saussure escapou à tutela da história mas não escapou por completo à psicologia dominante do seu tempo. Felizmente que há outras coisas, e bem melhores, no Cours de linguistique générale. A «imagem acústica» é, porém, uma noção psicologista típica.

Quando Husserl escreve as Investigações Lógicas, o psicologismo, sob todas as suas formas, e especialmente o psicologismo lógico, é de fato um gigante que se torna indispensável derrubar e vencer. A finalidade do vol. I, Prolegômenos à Lógica Pura, é precisamente esta: desembaraçar o terreno do mal-entendido que tudo adulterou ao reduzir os conceitos lógicos a meros produtos de operações psíquicas, a conteúdos de consciência. Confundir fato e essência, afirma ainda Husserl em Ideias, é misturar os planos. As essências — e, para começar, as essências lógicas — devem ser compreendidas na sua pura idealidade, isto é, naquilo que são, tal como uma intuição pura as apreende, libertas da interpretação psicologista que as reduz a conteúdos psíquicos. Por isso as designa, nas Investigações, por species ideales.

Em nosso entender, não há aqui nenhum realismo das essências ou «idealismo» de tipo platonizante. Husserl foi mal servido pela sua formação matemática e lógica. E, sobretudo, o desejo de restaurar a especificidade do conceito lógico, de o subtrair à zona de influência psicologista, levou-o sem dúvida a expressões ambíguas.

Seja como for, Ingarden aceita o Idealismo das Investigações Lógicas, quando aplicado à zona das idealidades puras. Assim como continua, trinta anos depois dos Prolegômenos, a esgrimir contra o psicologismo. É certo que esta tendência era profunda e, por mais decisiva que tenha sido a influência de Husserl junto de estudiosos das mais variadas especialidades que se converteram à fenomenologia (dando origem a correntes de lógica fenomenológica, de estética fenomenológica, etc, etc), o psicologismo não morreu de vez. Posto seriamente em causa, vai sobrevivendo.

O que era um gigante, no início do século, não se transforma em simples moinho de vento, três décadas depois. No entanto, a sua persistência, menos generalizada, mais enfraquecida, não parece justificar totalmente a luta encarniçada que atravessa o presente volume. Com efeito, Ingarden não cessa de combater o psicologismo, da primeira à última página de A Obra de Arte Literária.

Porquê? Há razões objetivas para tal. Mas o nó da questão situa-se numa zona mais profunda, num debate interior que Ingarden trava consigo mesmo e que não acaba por resolver, pelo menos neste, livro. Ele reside, quanto a nós, no fato de não ter acompanhado Husserl na sua posterior evolução.

Só a teoria da redução transcendental (que põe a nu a zona da consciência pura, onde esta se descobre a si mesma como poder constitutivo de todos os sentidos em que apreende o mundo e de todas as modalidades intencionais desta apreensão) permite a Husserl ultrapassar, de maneira definitiva, o nível psicológico. Se é certo que as Investigações Lógicas destruíram o pressuposto psicologista, também é verdade que a fenomenologia não logra ainda desprender-se por completo da descrição psicológica.

Ora foi mais ou menos aí, dissemos, que Ingarden parou. Do antipsicologismo das Investigações e de Ideias releve certos elementos básicos e, em primeiro lugar, a distinção entre objeto (conteúdo) intencional (de um ato ou de uma frase) e conteúdo real (entenda-se aqui real no sentido de psíquico, quase a resvalar para o fisiológico). Por outras palavras, o intencional é uma transcendência na imanência, algo que se manifesta ou aparece na consciência pura mas se distingue do seu fluxo imanente real.

Tudo isto adquire sentido na fenomenologia husserliana da maturidade, assente nos dois pilares que são redução transcendental e constituição. Mas Ingarden permanece na ambiguidade da primeira fenomenologia (chamemos-lhe assim…), não se libertando, por isso mesmo, da ameaça do psicologismo. São várias as perplexidades, explícitas ou implícitas, que o fazem oscilar perpetuamente entre uma descrição fenomenológica e uma descrição psicológica. É a última, contudo, que predomina em A Obra de Arte Literária. No único parágrafo introduzido em 1960, segundo cremos, o § 25a, chega a acusar Husserl e Pfander de se não terem libertado por completo do psicologismo. Por isso, a própria fenomenologia, tal como a entende, é uma atitude que só assume a medo e quando não pode deixar de ser.

A este propósito queríamos chamar a atenção para dois problemas, sendo o primeiro, como é natural, o da análise fenomenológica que esperaríamos encontrar neste estudo. O segundo diz respeito à problemática da «obra aberta», para empregar uma expressão familiar aos nossos leitores.

N. Hartmann, M. Geiger, H. Conrad e outros aplicaram o método fenomenológico à estética em geral ou à exploração de domínios específicos da criação artística. Ingarden tem lugar neste sector, segundo H. Spiegelberg e R. Bayer. Mas… il faut y regarder de plus pres, como diria Sartre.

No Prefácio à terceira edição deste livro, o professor de Cracóvia explica como, pouco a pouco e em diversos escritos, se foram delineando os contornos de uma estética fenomenológica, como ele próprio a entende. Só a totalidade destes estudos dará, pois, uma ideia exata da sua doutrina. A Obra de Arte Literária é apenas uma fase num longo caminho. Impossível caraterizá-la fora de uma visão de conjunto. O que se pode verificar é que a análise fenomenológica só de longe em longe aqui aparece.

No início do § 6 faz-se uma série de distinções importantes: ontologia da obra literária; psicologia da produção artística no domínio da literatura; análise dos atos de consciência que estão na origem da estruturação da obra literária; obra considerada em si mesma e distinta, tanto de um como de outro ponto de vista (o psicológico e o fenomenológico, segundo cremos). Estas distinções parecem-nos certas. Apenas lamentamos que o excessivo receio do psicologismo tivesse impedido Ingarden de ir até ao fim das exigências do método fenomenológico. R. Odebrecht faz-lhe esta mesma crítica; Ingarden responde numa nota ao § 2 da segunda edição. Mas, por mais valiosa e penetrante que seja a teoria dos estratos, estes «pairam no ar», efectivamente. Assim como a análise horizontal da obra literária, a sua ordenação temporal e espacial (§§ 54-55). Aí deparamos com observações de real interesse que apontam para os estudos das estruturas narrativas de um Brémond, de um Barthes, de um Greimas (de Barthes, sobretudo, no famoso artigo de Communications 8) e para os que se relacionam com o tempo na obra literária, tais como os de J. Pouillon e G. Poulet. Mas de análise fenomenológica apenas alguns apontamentos esporádicos. Há a salientar os §§ 62 e 66, onde se condensa o que é possível colher fragmentariamente, aqui e além, sobre uma fenomenologia da obra literária, quer do ponto de vista do leitor, quer do ponto de vista do autor.

Falamos, no início deste Prefácio, da necessidade de certas recuperações fundamentais. Entre elas a do «autor».

A par de tentativas várias, mais felizes umas que outras, feitas sob o signo da psicanálise, e que, mesmo que o não queiram ou professem o contrário, visam, por uma necessidade interna, a esta recuperação — não poderíamos pensar na fenomenologia como outra via diferente a tentar, com vista à mesma finalidade?

Passamos agora ao que chamamos a problemática da «obra aberta».

Nos caps. 13 e 14 (§§ 61-67), a propósito do terceiro estrato da obra literária, R. Ingarden põe o problema do estado de disponibilidade da obra, de certas zonas de indeterminação que nela encontramos, ou seja, em resumo, a possibilidade que esta oferece de leituras diferentes, quer pessoais, quer epocais. Impossível ler estas páginas sem pensar na teoria de Umberto Eco. Certas afirmações do cap. 13 poderiam ser atribuídas a Eco ou mesmo a Roland Barthes.

A distinção que faz entre a obra em si, idêntica a si mesma, e as suas concretizações, múltiplas e variáveis, continua em discussão. Uma interpretação husserliana levar-nos-ia a considerar que um objeto X só se torna obra escrita pela leitura que dela fazemos, eventualmente obra literária, esteticamente positiva ou negativa, pelos juízos de valor que lhe atribuímos. Ingarden aproxima-se desta solução no § 65. Afirma, mais de uma vez, que a obra apenas se manifesta ao leitor na sua concretização, isto é, no ato da leitura, o que está muito perto da teoria husserliana. Admite até que o papel ativo do leitor e do crítico possam destruir a própria obra para produzir, em seu lugar, uma obra nova.

Tudo isto no cap. 13 (§§ 61-64). Mas, no início do cap. 14, § 65, eis que o perigo do psicologismo, com o seu corolário — o subjetivismo —, lhe surge como ameaça à objetividade, à identidade da obra. Procura então recuperar o terreno perdido (quanto a nós, ganho) recorrendo à idealidade do conceito.

Já foi dito que Ingarden distingue significação e conceito e que só ao último atribui o estatuto ontológico da idealidade pura. Só o conceito é imutável, invariável, intemporal, enquanto as significações podem variar. Mas o conceito é o fundamento da significação! Pela participação ao mesmo conceito, dois interlocutores podem compreender-se empregando palavras que, em princípio, admitem significações diferentes. De maneira análoga, dois ou mais leitores podem ler o mesmo livro, cujo estrato significativo é susceptível de originar leituras várias, melhor: seria, mas não é. As significações remetem para os conceitos e estes são garantia de estabilidade. Assim se esconjura o risco da confusão, da pulverização subjetivista do objeto literário.

Esta a solução de Ingarden para restaurar e fazer valer os direitos da identidade da obra (§ 66).

Convém parar um pouco e olhar para trás. Nos §§ 7 e 8 voltaremos ao 3o estrato e então se verá melhor quais as possibilidades reais que Ingarden concede à indeterminação da obra literária. Para já, não esquecer que a questão surgiu com esta motivação, circunscrita, pois, por limites relativamente modestos.

Aconteceu, porém, que a problemática se desprendeu do ponto de partida, foi alargada, formulada na sua dimensão máxima: a obra literária surgiu-nos como promessa de um espaço totalmente disponível a uma pluralidade ilimitada de leituras. Mas a abertura concebida nestes termos foi logo neutralizada. Como vimos.

Que pensar da solução proposta por Ingarden? Ela aparece-nos como uma tentativa arriscada, um percurso sinuoso que não acaba por nos convencer nem parece convencer por completo o próprio autor. O § 67, que fecha o capítulo 14, exprime mais dúvidas do que certezas. Reconheçamos, porém, que Ingarden teve o mérito de não fugir a um assunto difícil e escolheu um caminho que, sem ser indiscutível, merece reflexão.

A semântica moderna encontrou as mesmas dificuldades. Neste e noutros sectores de investigação da linguística e da literatura diversas teorias foram propostas. Novos conceitos surgiram. A questão mantém-se no horizonte.

Ao problema da leitura se liga de perto o da leitura crítica, da análise literária. São conhecidas as divergências que dividem este sector e que é possível reduzir a duas tendências fundamentais: uma, um neopositivismo que busca critérios científicos de análise; e outra ou outras formas de abordagem do fenômeno literário que se arriscam a cair num neo-impressionismo.

Sem resolver o problema, é muito possível que o filósofo polaco tios marque o rumo certo ao afirmar que se torna indispensável determinar os limites de variabilidade de uma obra literária (§ 64). Por outras palavras, e indo ao fundo da questão: há limites, fronteiras a estabelecer. Talvez com mais rigor, parece-nos indispensável, hoje, que ao abordar uma obra literária o façamos num projeto fundamental de ultrapassar o impressionismo fácil do passado. Para isso há apetrechamentos científicos de inspiração vária que não é permitido desconhecer e entre os quais é possível escolher. Posto isto, e para além desta exigência fundamental, há ainda lugar para a subjetividade do leitor-crítico que se assume como sujeito. Gostaríamos de acrescentar: que não pode deixar de o fazer!

Não se julgue que esta precisão é um pormenor sem importância. É muito mais do que isso. Na verdade, cada leitor-crítico não pode ler uma obra a não ser a partir da situação que ele mesmo é — situação sempre ligada a uma possibilidade de opção —, situação e opção reveladas já, e antes de mais, no método que escolhe ou consente para se introduzir no universo a explorar.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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