A obra de arte literária – Prefácio de Maria Manuela Saraiva (3)
Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.
O contributo mais original de Ingarden em fenomenologia é talvez constituído pelas suas análises da obra de arte: literatura, para começar, mas também música, pintura, arquitectura. A sua obra fundamental, porém, diz respeito ao debate entre Realismo e Idealismo, problema de todos os tempos que retomou aguda actualidade com a adopção, por parte de Husserl, de um novo idealismo transcendental. E Spiegelberg cita Der Streit um die Existenz der Welt como o estudo mais significativo do pensador polaco. J. Héring confirma este testemunho dizendo que todos os problemas suscitados pela nova atitude filosófica de Husserl, concretizada em Idéias, são exaustivamente tratados no importante manuscrito de Ingarden e faz votos pela sua rápida publicação em francês ou alemão.
Não conhecemos este livro, cujo título, A Controvérsia Acerca da Existência do Mundo, só por si remete para um problema central de Idéias. Algo se pode deduzir das referências que encontramos em A Obra de Arte Literária (notas da segunda edição), mas apenas um problema nos interessa agora: o que diz respeito ao ser da obra literária.
Basta consultar um Vocabulário de Filosofia para verificar como são múltiplas e por vezes discutíveis ou pouco claras as noções de Realismo e de Idealismo. Assim, por exemplo, importa não confundir o ponto de vista epistemológico com o ponto de vista ontológico, que são distintos, embora correlativos: uma teoria do ser está sempre ligada a uma teoria do conhecer. Não só é fácil misturar os dois planos como se tornaram correntes designações equívocas. A doutrina platônica das idéias, que aqui nos interessa de maneira especial, tanto pode ser considerada idealista (as idéias têm prioridade sobre os seres individuais e materiais, que apenas são o seu reflexo ou imagem) como realista (as idéias têm uma existência real e autônoma).
J. N. Mohanty afirma a propósito de Husserl: «Ele é um dos raros, entre os filósofos anteriores à filosofia analítica, que recusa qualquer classificação em “ismo”. De facto, o método que lhe é próprio permitiu-lhe combinar na sua filosofia elementos tão diversos como “realismo” e “idealismo”, “Nacionalismo” e “empirismo”, “positivismo” e “pragmatismo”, “intuicionismo” e “inte-lectualismo”.» Em nossa opinião, já o dissemos, a filosofia de Husserl é essencialmente uma forma de Idealismo. Mas julgamos possível, como Mohanty, encontrar nela todas estas tendências — tensões internas que talvez nunca se resolvam. O que ajuda a explicar a pluralidade de «fenomenologias» a que Husserl deu origem, assim como a multiplicidade de interpretações (por vezes opostas) do seu pensamento.
Se isto se aplica à obra husserliana considerada no seu conjunto («obra» de que aliás se não pode falar enquanto houver inéditos não publicados…), aplica-se, de maneira especial, às Investigações Lógicas.
Retomamos aqui o apontamento do parágrafo anterior, sobre as primeiras reacções a este livro, desenvolvendo um pouco o que atrás ficou dito. Houve quem nele visse um positivismo mais largo — que admitia, por exemplo, uma intuição intelectual — mas se abstinha de tomar posições metafísicas. Uma parte significativa deste grupo interpretou a recusa do Idealismo e do Realismo como uma terceira via que liquidava definitivamente o dilema secular. Mas, ao contrário destes, muitos, e não só entre os discípulos da primeira hora, viram na fenomenologia nascente uma abertura ao realismo epistemológico. Outros, porém, deram à famosa intuição das essências um sentido platonizante ou «idealista»…
Podíamos continuar a lista, mas paramos aqui pois chegámos ao ponto que nos interessa.
A independência da consciência e do mundo caracteriza o realismo epistemológico medieval. Quanto à segunda alternativa aqui enunciada, cremos que ela se aplica com alguma exactidão à ontologia fenomenológica de Sartre. É uma interpretação grosso modo realista do princípio de intencionalidade que Sartre apresenta aos leitores franceses num célebre pequeno artigo de 1939: «Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl: l’intentionnalité» (in Situations I, Paris, Gallimard, 1947), 31-5. De uma maneira geral, é esta a tendência que permanece na escola fenomenológica francesa.
No respeitante ao último problema enunciado, encontrámos provavelmente a posição de Ingarden. Uma nota do § 18 dá-nos conta de perplexidades e oscilações por que passou em épocas anteriores às da redacção de A Obra de Arte Literária. O certo é que, ao escrevê-la, compara o Idealismo das Investigações Lógicas com o idealismo transcendental (idealismo alargado. . .) da Lógica Formal e Transcendental. Mas só ao último faz sérias reservas.
Mais uma vez enunciamos um problema que vamos reduzir às suas linhas elementares.
Qual o ser da obra literária e (ou) das objectidades que nela se manifestam? Os caps. 1 e 2 do presente livro (§§ 2-7) respondem à pergunta, numa reflexão cerrada e densa. Mas o problema fora posto logo no Prefácio e é retomado posteriormente, por exemplo nos §§ 18 e 66.
No essencial, a solução de Ingarden consiste em recusar a alternativa entre ser real e ser ideal para introduzir uma terceira modalidade de ser: o puramente intencional, que caracteriza, entre outros, o ser da obra literária. Puramente intencional porque ontològicamente não autônomo mas dependente da consciência que o cria.
De certa maneira, esta nova modalidade de ser é também uma terceira via — que não exclui mas se acrescenta às duas zonas de ser consagradas por uma longa tradição. A analogia com a terceira via husserliana ou pseudo-husserliana permanece, contudo, no desejo de quebrar a alternativa entre Realismo e Idealismo, para admitir, neste caso, uma terceira dimensão ontológica.
Numa perspectiva puramente fenomenológica, seria a essência da obra literária a única a investigar e descrever. É nesta linha que devemos compreender a teoria dos estratos e outras análises dos últimos capítulos. Mas Ingarden afirma com freqüência que a mera descrição fenomenológica lhe não basta. Por isso o objecto do seu estudo se insere num horizonte mais vasto, a análise fenomenológica é acompanhada — precedida — por uma reflexão ontológica na qual, precisamente, tomam lugar e sentido a discussão do ser da obra literária.
Voltando às Investigações Lógicas, é curioso verificar que Ingarden as rectifica ou completa, mais do que as rejeita. Fala-nos das duas concepções opostas em lógica: a psicologista e a idealista; esta última, afirma, tem o seu representante mais significativo em E. Husserl e nos dois volumes de 1900-1901 (§ 18). E, se lermos algumas passagens atrás indicadas (Prefácio de 1930, §§ 18 e 66), parece-nos fácil concluir que Ingarden perfilha, de maneira muito menos inequívoca que Husserl, o platonismo das essências, quanto a nós erradamente atribuído ao mestre. Apenas faz algumas distinções, importantes mas secundárias, quanto ao assunto que estamos tratando. Retira às significações husserlianas a idealidade, isto é, a intemporalidade e a invariabilidade, mas para a atribuir ao que chama essências, conceitos, objectidades ideais. Esta zona da idealidade pura é apresentada em termos que nos parecem perfeitamente platonizantes, talvez melhor, agostinianos.
Poder-se-ia objectar que apela, neste caso, para a teoria da intersubjectividade, que cita mesmo as Meditações Cartesianas no § 66. É, sem dúvida, um contributo valioso para o problema de que se ocupa nesse parágrafo (e que retomaremos em breve). As suas observações têm actualidade e lêem-se com imenso interesse. No entanto, o apelo à intersubjectividade funciona também (sobretudo dentro da economia do livro) como um desvio que lhe permite regressar ao ponto de partida, por outras palavras, que lhe serve para distinguir significação e conceito, para fazer do conceito o fundamento ontológico das unidades de significação e, finalmente, para manter as três zonas de ser: ser real, ser ideal, ser da (criado pela) consciência.
Sem poder concluir, pela leitura de A Obra de Arte Literária, quais as posições tomadas pelo filósofo polaco em todos os aspectos da controvérsia entre Realismo e Idealismo, parece-nos que a análise sumária que acabamos de fazer confirma o que atrás dissemos sobre a fase da fenomenologia husserliana que sobre ele teve influência decisiva. A comparação com Heidegger pode ser elucidativa. Enquanto o autor de Sein und Zeit faz, em relação ao mestre comum, uma opção comparável à de Ingarden mas cria uma metafísica com bases totalmente novas, este fica preso à problemática da sua juventude em Göttingen.
Que a distinção entre intencional e puramente intencional (com as subdistinções que se seguem) não é husserliana, seria possível demonstrá-lo com facilidade. O próprio Ingarden o sugere, talvez, numa nota ao § 20. Aplicado à literatura, o puramente intencional parece-nos corresponder à ficção de Husserl: literatura e artes em geral, embora Ingarden empregue as duas noções sem as distinguir claramente.
A ficção está ligada à modificação de neutralidade, modificação do «quase», do «como se» (ais ob), passagem ao irreal ou puramente estético. Estas são as designações mais correntes em Husserl. Reconhecemo-las em muitas páginas deste livro, nomeadamente nos §§ 25, 33-37, 63… Ingarden emprega ainda outras, de origem lógica. No § 33 parece marcar uma certa distância entre a sua teoria e a modificação de neutralidade husserliana. Tanto quanto uma leitura atenta nos permite concluir, Ingarden desenvolve e aplica a domínios concretos e diferentes dos de Husserl a teoria condensada nos §§ 109-111 de Idéias I e de outros escritos. Mas, no essencial, não vemos a menor diferença entre os dois autores. Há mesmo descrições da Neutralitätsmodifikation extremamente felizes e perfeitamente conformes à doutrina do mestre.
Só mais uma palavra a terminar este parágrafo. Que Ingarden, como tantos outros que o fundador da fenomenologia, de perto ou de longe, tocou, tenha seguido o seu próprio caminho, é com ele e com os seus leitores. Mas, num país onde o pensamento husserliano é tão mal conhecido, esta tradução pode constituir um perigo grave: o de atribuir a Ingarden idéias que são de Husserl ou de pôr em circulação como husserlianas idéias e teorias que, de facto, o não são. E isto em pontos tão fundamentais como é, por exemplo, a intencionalidade.
Sem tratar a questão, parece-nos útil uma rectificação de princípio. Tratar o intencional (ou o puramente intencional, tanto faz, visto que esta distinção começa já por não ser husserliana) como um modo de ser é falsear Husserl, é colocar o problema num plano ontológico em que este nunca o colocou24. A intencionalidade husserliana é uma propriedade da consciência, propriedade essencial que a define totalmente: a sua capacidade de referência ao ser, segundo modalidades ou intenções várias: perceptiva, imaginativa, estética, intenções afectivas que se diversificam ao infinito, modos de intencionalidade puramente racionais, como os que encontramos na lógica… Limitamo-nos a dar uma pálida idéia de um domínio por assim dizer ilimitado.
Mas esta é apenas uma primeira aproximação: porque, antes da redução transcendental, portanto, ao nível das Investigações, a intencionalidade é um encontro; depois, é uma constituição.