Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria Conceição Puga e João F. Barrento. Prefácio de Maria Manuela Saraiva.
[b]Prefácio à edição portuguesa (1)[/b]Haverá um conhecimento objectivo de uma obra literária, conhecimento certo, a distinguir de opiniões subjectivas e erradas? Roman Ingarden faz a pergunta no § 61 deste livro. Alargando o problema, interrogamos: poder-se-á falar de obras objectivamente difíceis, isto é, de difícil acesso a todo e qualquer leitor? Não o cremos, a não ser que se tome tal idéia como um caso-limite. Pois somos tentados a acreditar que Das literarische Kunstwerk o realiza bastante bem.
Investigação rica mas prolixa, não raro obscura, desconcertante na sua economia interna, o presente estudo desdobra-se em múltiplas linhas de fractura e convergência que irradiam de um terreno fenomenológico husserliano de base para perspectivas de natureza lingüística, lógica, estética, sem deixar de afirmar com insistência a pretensão de lançar as bases de uma ciência da literatura.
Este Prefácio foi escrito a partir da leitura do original alemão, quando a tradução portuguesa não estava ainda concluída. Desconhecendo a paginação do volume português, não a podíamos citar. Mas citar a paginação alemã, além de criar confusões, seria de alguma utilidade?… Uma tradução destina-se, por definição, a um público que a prefere ao original por razões várias. O facto de o livro estar dividido não só em capítulos mas também em parágrafos forneceu-nos a solução do problema. Não é ideal, mas é a única de que dispomos. O parágrafo é geralmente curto, e neste caso a numeração não muda. Por isso citaremos sempre o parágrafo e o leitor descobrirá com relativa facilidade o texto, a teoria ou a problemática que estão em causa no nosso comentário.
Algumas vezes faremos referências a Husserl e às suas Investigações Lógicas (Logische Untersuchungen). No caso em que tivermos de fazer citações precisas damos em português o passo em questão, mas citamos a obra alemã, edição de 1913.
A Obra de Arte Literária tem três Prefácios, o da primeira edição, em 1930, e os de 1960 e de 1965, respectivamente para as segunda e terceira edições. Para simplificar, quando se trate do primeiro falaremos do Prefácio de 1930, ou do Prefácio, simplesmente.
Tudo isto em 1930, data da primeira edição do volume que hoje sai a público em tradução portuguesa! (O ano de 1930 pode tomar-se como o marco aproximado que separa duas épocas, tanto em lingüística como em lógica.)
Se toda a obra escrita é o espaço aberto e sempre disponível a uma infinidade de leituras diferentes, esta é-o certamente de múltiplas maneiras. Em primeiro lugar, porque os diferentes leitores, sectorialmente situados em qualquer destes pontos de vista: literário, lingüístico, lógico, estético, filosófico…, farão, como é óbvio, a leitura para a qual os prepara a sua formação específica. Nada impede de imaginar o leitor ideal, nestes tempos em que tanto se fala de interdisciplinaridade. Não cremos, contudo, que tal leitor exista ainda. E aqui temos um dos paradoxos desta obra paradoxal.
Escrita em 1930, é natural verificarmos que está ultrapassada em vários dos sectores particulares de que releva, apesar das notas acrescentadas à segunda edição, de 1960. E, no entanto, o leitor para o qual foi escrita ainda não existe… Significa isto que ela vale sobretudo, em nosso entender, pelo seu valor exemplar. Ê difícil imaginar o que representa de ousadia e de novidade uma obra como esta que, ao querer lançar as bases de uma ciência por nascer (e, ao que parece, ainda hoje não nascida…), o faz numa tão vasta ambição de síntese. Tão vasta que não sabemos se admirar a grandeza do projecto ou nos admirarmos perante a sua ingenuidade.
Em lingüística, o Cours… de Saussure havia já suscitado reflexões sobre signo, símbolo, significado, por parte de filósofos e de lingüistas; mas de semântica, em sentido actual, não poderá falar-se ainda por longo tempo. Os primeiros trabalhos importantes da escola fonológica de Praga, base da lingüística estrutural, aparecem precisamente por esta altura. Dos três centros de onde irradia a renovação da lingüística e dos seus principais representantes — Trubetzkoy, Bloomfield, Hjelmslev — era impossível ou pouco provável ter conhecimento em 1930. (Sem contar que a redacção de A Obra de Arte Literária começou em 1927.)
Quanto ao chamado Círculo de Viena, os anos trinta são os da sua maior expansão (fundação da revista Erkenntnis, diáspora provocada pela perseguição nazi, organização de congressos internacionais). Uma nota ao § 18 de A Obra de Arte Literária, acrescentada em 1960, revela a oposição de Ingarden ao programa positivista do movimento — o que se compreende facilmente pelo que a seguir diremos.
Aliás, não é a única referência ao Círculo de Viena. Essa nota, porém, tem especial interesse porque, ao lado de Carnap e de Wittgenstein, Ingarden refere-se a outra importante escola polaca de lógica, em que sobressaem os nomes de Lesniewski, Zukasiewcz, Tarski. Portanto, e como seria natural, conheceu o grupo de Varsóvia. No entanto, ao falar, no Prefácio e noutros passos, da nova lógica, ou nova orientação em lógica, é a lógica fenomenológica que tem em mente.
Do valor estético da obra literária quase ninguém fala hoje. «Ainda não é formalizável, talvez dentro de cinqüenta anos…», disse-nos alguém que se move na zona de influência de A.-J. Greimas, durante o Seminário de Semiologia, realizado no Verão de 71, em Urbino. Mesmo o conceito de obra literária se esfuma perante outros mais englobantes, como o de escrita. Quanto à aliança entre lingüística e lógica, só na década de 50, com o segundo Wittgenstein, Chomsky e outros, se voltou a tentar. Mas isto é terra prometida e mal vislumbrada para a maioria, mesmo nos nossos dias. E todos os problemas respeitantes ao «autor», de que neste livro se fala, embora com certa cautela e precaução?
Ingarden ainda acreditava em tudo isso.
Não deploramos o passado nem os sacrifícios epocais, que é por vezes indispensável consentir, para uma sempre maior radicalização de conceitos básicos, para a renovação, crescimento e reajustamento dos diferentes domínios do saber. Mas não deixamos de sentir a urgência de certas recuperações fundamentais. Por isso desejaríamos ver neste livro, ultrapassado em certos sectores, um sinal precursor de uma nova, futura era, de unidade e síntese (onde estas forem possíveis), mas sobretudo menos redutora, mais englobante e fiel à complexidade do real.
Fenomenologia, lógica, estética… coisas a mais para o leitor médio de formação lingüística e literária, a quem se destina, afinal, esta colecção. Ê para ele este Prefácio. Pensamos que lhe falta o apetrechamento conceptual e terminológico de base para toda e qualquer leitura de A Obra de Arte Literária, se não dispõe de uma iniciação à fenomenologia husserliana. Abrir o caminho a esta iniciação, mais precisamente, ao entendimento deste livro no terreno de onde nascem as suas raízes mais fundas, eis o que pretendemos em primeiro lugar.
Mas aqui as coisas complicam-se. Por um lado, Ingarden faz um apelo constante a noções fenomenológicas fundamentais: intencionalidade (acto de simples intenção, objecto intencional, correlato intencional, factor de direcção intencional…), intuição, representação, preenchimento (Erfüllung), doação originária… No entanto, quem leia o seu livro e esteja familiarizado com o pensamento do «.venerado mestre-» verifica que expressões idênticas ou semelhantes às de Husserl podem recobrir realidades diferentes! Está neste caso a noção, tão importante para Ingarden, de puramente intencional, com as sub-distinções que lhe estão ligadas (§§ 20-22, entre outros). Mas o contrário também pode acontecer, isto é, que uma ligeira alteração terminológica exprima exactamente a doutrina de Husserl. Pensamos na teoria da Wortlaut (a palavra no seu aspecto fónico), em que o discípulo cuida jazer obra um tanto original (§§ 9, 10, 12) e que é, quanto a nós, no essencial, a teoria husserliana do signo verbal (Wortzeichen), termo a que Ingarden recorre também, sobretudo no final da obra (§§ 62, 64, 66). E há a presença constante do professor de Góttingen praticamente em todas as páginas deste livro, mesmo quando não é nomeado. Basta indicar o peso enorme, desmedido, da intuição em sentido husserliano, que nos parece ser o eixo em torno do qual se organizam todos os elementos que contribuem para a valorização estética da obra literária. E há as críticas e divergências apontadas por Ingarden no Prefácio de 1930 e nalguns outros passos, nomeadamente no importante § 66.
No âmbito destas divergências se inscreve o famoso e irritante debate entre Realismo e Idealismo, que aterroriza os novos e faz sorrir os cépticos. Falar de filosofia, hoje? É verdade que se não fala muito de filosofia, que se julga possível neutralizá-la, pelo menos metê-la entre parêntesis, recorrendo a noções puramente «operacionais»… É verdade também que Ingarden nem sempre é claro e que o debate entre Realismo e Idealismo passou de moda. Não nos parece, contudo, tão ultrapassado como isso ao insistir na necessidade de uma reflexão filosófica sobre o fenômeno literário.
Acabámos de delinear, muito por alto e a partir de alguns exemplos mais relevantes, um estudo a fazer – as relações entre o pensamento de Husserl e o de Ingarden —, estudo que não cabe num prefácio, pois, a ser feito, teria de ser longo, minucioso, fundado em citações precisas das obras dos dois filósofos.
Não queremos, contudo, deixar o leitor não especialista completamente desarmado. Mas não é fácil explicar em poucas palavras o que é intencionalidade, constituição, redução eidética, redução transcendental e outras noções fundamentais; nem parece indispensável fazê-lo aqui. Existe uma bibliografia em português que os estudiosos de literatura e de lingüística só ganharão em conhecer [NA: De A. F. Morujão, A Doutrina da Intencionalidade na Fenomenologia de Husserl (Coimbra, separata da Biblos, XXX, 1955); Mundo e Intencionalidade (Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1961). De J. Fragata, A Fenomenologia de Husserl como Fundamento da Filosofia (Braga, Livraria Cruz, estudos public. pela Fac. de Filos. de Braga, 1959); Problemas da Fenomenologia de Husserl (Braga, Livraria Cruz, estudos public. pela Fac. de Filos. de Braga, 1962). De G. de Fraga, De Husserl a Heidegger. Elementos para unia Problemática da Fenomenologia (Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1966). Por último, um breve mas útil artigo de M. Antunes, «Crítica literária e fenomenologia» (in Brotéria, LXXVI, 4, 424-35).].
Posto isto, retomaremos alguns dos problemas atrás indicados e outros que julgarmos necessários, começando por situá-los numa perspectiva histórica.