Jean Wahl, As Filosofias da Existência. Trad. I. Lobato e A. Torres.
CAPITULO VII – RELANCE DE CONJUNTO
Podemos agora apreciar, num relance, as diferentes categorias que enumeramos. Poderemos conceber o que é o indivíduo existente na medida em que ele é o próprio sujeito desta filosofia da existência.
O indivíduo existente estará voltado para o possível, estará em projeto, será escolha, liberdade, unicidade, verdade subjetiva, paradoxo.
Mas, por outro lado, este existente só existe porque não há outra coisa além dele, e é o que temos visto enumerando os três termos, diferentes essencialmente uns dos outros, mas que todos três se opõem à existência: o ser, o nada e o outro. Só há o existente porque há outra coisa mais que o existente, porque há o ser para o pensamento do qual tende o existente, sem nunca atingir plenamente este pensamento, porque há o nada a partir do qual é o existente e até, num sentido no qual se resolve em Sartre, porque há o outro com o qual comunica o existente.
Vimos também os sentimentos que acompanharão este tempo que é o existente, sentimentos de angústia e de tensão.
Vimos também as categorias que vão constituir a união entre estes diferentes termos, transcendência, constituindo á união entre a existência e o ser, situação, constituindo a união entre o futuro e o passado, comunicação, constituindo a união entre o existente e o outro.
Pudemos sempre chegar à influência de Kierkegaard. A ideia de solidão, de angústia, a ideia de subjetividade, de abandono, mesmo a de preocupação, a importância dada ao tempo, ao possível, ao projeto, a ideia de nada, a ideia de relação paradoxal, tudo isso a meditação de Kierkegaard engloba.
++++
Todas as filosofias têm um certo número de vocábulos que lhes são apropriados, possuem um vocabulário; o cartesiano fala de ideias claras e distintas, de evidência; o kantiano de sínteses a priori, de atividades puras do espírito. Tentemos estabelecer um pequeno vocabulário existencialista:
Alteridade |
Existência |
Possibilidade |
Ambiguidade |
Facticidade |
Preocupação |
Angústia |
Finidade |
Projeto |
Antinomia |
Futuro |
Repetição |
Autenticidade |
Historicidade |
Risco |
Comunicação |
Incerteza |
Salto |
Contingência |
Instante |
Segredo |
Contradição |
Malogro |
Situação |
Culpa |
Morte |
Solidão |
Desespero |
Mundo |
Subjetividade |
Dialéctica |
Nada |
Transcendência |
Escândalo |
Origem |
Tremor |
Escolha |
Paradoxo |
Tu |
Excepção |
Pecado |
Único |
++++
Não oferece dúvida de que é em Gabriel Marcel que algumas destas categorias são menos frequentes. O que pode explicar-se historicamente, numa certa medida, pelo fato de o pensamento de Gabriel Marcel se ter constituído independentemente do pensamento de Kierkegaard. E explica-se também pelo fato de a solução religiosa intervir de uma maneira menos angustiada, menos trabalhada pela angústia em Gabriel Marcel que em Kierkegaard. As ideias de angústia ou de nada não terão, em Gabriel Marcel, o mesmo lugar que nos outros filósofos que simultaneamente classificamos como filósofos da existência.
Como podemos caracterizar agora, de uma maneira geral, as filosofias da existência? Recordamos, nas primeiras páginas, o que dizia E. Bréhier, e que nos serviu para investigar as origens destas filosofias: empirismo metafísico e inquietação.
Num livro escrito por uma filósofa americana, a Sr.a Green, sobre o existencialismo, encontra-se esta frase: «O existencialismo é um esforço para abranger a natureza humana em termos humanos sem recurso ao sobre-humano ou ao que se possa chamar sub-humano.» A autora quer dizer que há nestas filosofias da existência — e presta principalmente atenção à de Sartre — um esforço para explicar o homem independentemente das categorias propriamente científicas e, por outro lado, independentemente das categorias propriamente religiosas. O existencialismo repele as desculpas que pode dar, ou que parece poder dar, o materialismo, e os recursos, os refúgios, que parecem poder dar o supernaturalismo ou o sentimento religioso. Portanto, nem explicação puramente materialista, nem, pelo mesmo motivo, desculpa à nossa responsabilidade, e, por outro lado, não há refúgio fora deste mundo.
De um ponto de vista muito semelhante, poderíamos dizer que, na filosofia de Sartre, em particular, se assiste a um esforço para atribuir ao homem o que de ordinário só se atribui a Deus.
Talvez não seja necessário levar esta ideia demasiado longe, mas pode-se entretanto notar que, por exemplo, da essência e da existência, cujos teólogos afirmam a união em Deus, se afirma agora a união no homem.
Além disso, afirma-se que o homem é liberdade, e que esta liberdade, de algum modo, não tem limites. E é bastante curioso que, no prefácio que ele escreveu aos Mor-ceaux Choisis (Trechos Escolhidos), de Descartes, Sartre dizia que, no fundo, Descartes teria querido atribuir ao homem uma liberdade sem limites, que a liberdade que ele atribui a Deus é a liberdade que ele teria querido atribuir ao homem e que não chegou a atribuir-lha. A interpretação do ponto de vista histórico parece muito discutível. Todavia, ela pode servir-nos para compreender a própria tendência de Sartre, dado que’ esta vontade de atribuir ao homem uma liberdade infinita é provavelmente o que o próprio Sartre sentiu: a necessidade de dar ao homem a maior liberdade possível é, sem dúvida, uma das origens da filosofia de Sartre.
Em terceiro lugar, o homem é a origem dos juízos de valor.
Assim, destes três ângulos, podemos dizer que o existencialismo de Sartre tende a colocar o homem no lugar de Deus. [O que acabamos de dizer relativamente a Sartre não se aplica às outras formas de filosofia existencial, não se aplica a Jaspers, no qual há a afirmação de uma transcendência, de um domínio que nos ultrapassa, não se aplica, evidentemente, a Gabriel Marcel, não se aplica tão-pouco a Heidegger, uma vez que para além do homem há o domínio do ser, e que o homem só existe pelo seu contato com o domínio do ser.]
Mas, se o homem é dotado das qualidades que a filosofia tradicional reservava a Deus, não resta a menor dúvida de que ele é um Deus frustrado; e, realmente, para ser plenamente um Deus, seria necessário que ele realizasse uma união do «em si» e do «para si», união que Sartre declara impossível.
++++
Poderíamos interrogar-nos sobre as causas do sucesso das filosofias da existência Este sucesso vem, indubitavelmente, em primeiro lugar da contestação das outras filosofias e da consciência do seu malogro. Além disso, é preciso ter em conta o fato de que, após os abalos da guerra e da ocupação, o espírito experimentava a necessidade de se concentrar em volta de uma doutrina, e tanto quanto possível de uma doutrina nova; neste sentido, poderíamos dizer que o «existencialismo» assumiu a função que o surrealismo desempenhara no final da guerra precedente. Em terceiro lugar, nenhuma teoria, salvo a de Nietzsche, tinha posto em tão plena luz a ideia da criação dos valores para o homem. Acresce que é certo que o lugar concedido à ideia de liberdade e à afirmação de que a liberdade persiste sempre teve o seu papel na repercussão destas filosofias. Neste ponto, poderíamos, numa certa medida, comparar o que fez primitivamente a força da filosofia de Sartre ao que fez a força do pensamento dos estoicos.
As próprias ambiguidades do pensamento existencialista, pelo menos tais como se veem em Sartre, contribuíram para a força da sua influência. O que se apresentava, primeiro em La Nausée (A Náusea) e mesmo em L’Être et le Néant como uma filosofia pessimista apareceu em Les Mouches (As Moscas), por exemplo, ou em certos estudos políticos de Sartre, como uma filosofia de esperança.
Bem mostrou F. Alquié em que sentido esta filosofia, pela sua própria ambiguidade, por algumas das suas contradições, é característica do homem moderno, e talvez da condição humana em geral.
As filosofias da existência não devem ser concebidas como uma sequência de dogmas filosóficos; o homem é o ser que põe em questão a sua própria existência, que a põe em jogo e em competição, que a põe em perigo. A existência é por si própria posta em questão. O homem é o ser que, pela própria natureza do seu ser, é filósofo.
Mas uma vez que o homem está ligado ao mundo, ao mesmo tempo que ele se põe em questão, põe em questão o mundo que ele desenvolve de qualquer modo em volta de si próprio. Se considerarmos que a primeira definição da filosofia, para Heidegger, é a problematização do ser por um ser que é «nós próprios», a segunda, que parte da etimologia atribuída por Heidegger à palavra filosofia, seriai «a sabedoria do amor» (e não, como vulgarmente dizemos, o amor da sabedoria), se entendemos por sabedoria a comunhão de nós próprios com as coisas. Filosofar é conhecer-se em amor das coisas e do ser. A filosofia seria, portanto, o conhecimento do ser no mundo, não só do existente na medida em que está dirigido para o seu futuro, e tal como o define Kierkegaard, mas do existente na medida em que ele está em relações extáticas com o mundo. Assim, já não há sujeito em face de um objeto; é necessário destruir o conceito clássico de sujeito, fazê-lo estalar, para nos mostrar a nós próprios como incessantemente fora de nós, cessando esta própria expressão, aliás, como o dissemos, de ter um sentido bem definido, uma vez que não há mais «nós» fora do que qual nós seríamos.
Problematizando o homem, problematiza-se todo o universo que lhe está ligado. Sem qualquer problema filosófico, a totalidade do mundo está implicada, ao mesmo tempo que a existência do indivíduo é arriscada por ele próprio, como uma aposta suprema. Deste modo vemos unirem-se constantemente as ideias de individualidade e de totalidade.
++++
Igualmente podemos dizer que vemos juntarem-se as da individualidade e da generalidade. Heidegger, efetivamente, não fala só para um indivíduo particular, mas para qualquer indivíduo. Descreve a existência humana em geral. A angústia é, sem dúvida, uma experiência particular, mas pela angústia nós chegamos às condições gerais da existência, ao que Heidegger chama os existenciais. A filosofia de Heidegger pretende distinguir-se da de Kierkegaard em que Kierkegaard permanece sempre no existencial, enquanto Heidegger atinge o existencial, ou seja os caracteres gerais da existência humana. Faltará perguntar-se se, por esta via, a ideia de essência não é retomada na filosofia de Heidegger, se Kierkegaard não é mais fiel ao pensamento da existência banindo a ideia de essência. Por outras palavras, faltará perguntar-se se a procura dos existenciais é compatível com a afirmação da existência.
Naturalmente, uma concepção como a de Kierkegaard põe muitos problemas. Por um lado, não há nele, apesar de tudo, uma tentativa para racionalizar e explicar o paradoxo fazendo-o ver como união do finito e do infinito, e, enquanto ele quer apresentar um escândalo para a razão, não encontramos nós nele uma espécie de justificação do escândalo, que, finalmente, não o deixaria mais ser enquanto era escândalo! Por outro lado, o próprio Kierkegaard disse que a vinda de Cristo ao mundo, sob a forma por que ela se efetuou, não constitui o paradoxo supremo; dado que este paradoxo só seria atingido no caso em que ninguém se apercebesse da vinda de Deus. «Eu medito nesta questão», escreve ele; «e nela se perde o meu espírito.» Acrescentemos que o paradoxo só existe para aquele que vive na Terra; para os Bem-Aventurados, isto é, para aqueles que veem a verdade, o paradoxo desvanecer-se-á. O que significa que toda esta construção só existe em relação ao homem na medida que ele vive no mundo.