Japiassu
O verdadeiro movimento de desregionalização começa com o esforço para se extrair um problema geral da atividade de interpretação cada vez engajada em textos diferentes. O discernimento dessa problemática central e unitária deve-se à obra de F. Schleiermacher . O que há, antes dele, é, de um lado, uma filologia dos textos clássicos, sobretudo os da antiguidade greco-latina, e, do outro, uma exegese dos textos sagrados, o Antigo e o Novo Testamentos. Em cada um desses dois domínios, o trabalho de interpretação varia conforme a diversidade dos textos. Portanto, uma hermenêutica geral exige que nos elevemos acima das aplicações particulares e que discernamos as operações comuns aos dois grandes ramos da hermenêutica. Contudo, para conseguir isso, devemos nos elevar não somente acima da particularidade dos textos, mas da particularidade das regras, das receitas, entre as quais se dispersa a arte de compreender. A hermenêutica nasceu desse esforço para se elevar a exegese e a filologia ao nível de uma Kunstlehre, vale dizer, de uma "tecnologia" que não se limita mais a uma simples coleção de operações desarticuladas.
Ora, essa subordinação das regras particulares da exegese e da filologia à problemática geral do compreender constituía uma reviravolta inteiramente análoga à que fora operada pela filosofia kantiana com referência às ciências da natureza. A este respeito, podemos afirmar que o kantismo constitui o horizonte filosófico mais próximo da hermenêutica. Como se sabe, o espírito geral da Crítica pretende inverter a relação entre uma teoria do conhecimento e uma teoria do ser; deve-se medir a capacidade do conhecer antes de se enfrentar a natureza do ser. É compreensível que o clima kantiano tenha sido o adequado à formação do projeto de referir as regras de interpretação, não à diversidade dos textos e das coisas ditas nesses textos, mas à operação central que unifica a diversidade da interpretação. Se Schleiermacher não está pessoalmente consciente de operar na ordem exegética e filológica o tipo de revolução copérnica operada por Kant na ordem da filosofia da natureza, Dilthey estará perfeitamente consciente disso, no clima neokantiano do fim do século XIX. Todavia, foi necessário que se passasse antes por uma extensão, cuja ideia Schleiermacher ainda não possuía, ou seja, pela inclusão das ciências exegéticas e filológicas no interior das ciências históricas. Somente no interior dessa inclusão a hermenêutica vai aparecer como uma resposta global trazida à grande lacuna do kantismo; ela foi percebida, pela primeira vez, por J. G. Herder e reconhecida, com toda lucidez, por E. Cassirer; consistia em dizer que, numa filosofia crítica, nada há entre a física e a ética.
Mas não se tratava apenas de preencher uma lacuna do kantismo. Tratava-se de revolucionar profundamente sua concepção do sujeito. Por haver-se limitado à busca das condições universais da objetividade na física e na ética, o kantismo só conseguiu evidenciar um espírito impessoal, portador das condições de possibilidade dos juízos universais. A hermenêutica não podia acrescentar algo ao kantismo sem receber da filosofia romântica sua mais fundamental convicção, a saber, a de que o espírito é o inconsciente criador trabalhando em individualidades geniais. Ao mesmo tempo, o programa hermenêutico de Schleiermacher era portador de uma dupla marca — romântica e crítica. Romântica por seu apelo a uma relação viva com o processo de criação e crítica por seu desejo de elaborar regras universalmente válidas da compreensão. Talvez toda hermenêutica fique sempre marcada por essa dupla filiação romântica e crítica, crítica e romântica. Crítica é o propósito de lutar contra a não-compreensão em nome do famoso adágio: "há hermenêutica, onde houver não-compreensão"; romântica é o intuito de "compreender um autor tão bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu" (p. 56).
Ao mesmo tempo, estamos conscientes de que foi uma aporia, tanto quanto um primeiro esboço, que Schleiermacher legou à sua descendência nas notas de hermenêutica que jamais conseguiu transformar em obra acabada. O problema com o qual se defrontou foi o da relação entre duas formas de interpretação: a interpretação "gramatical" e a interpretação "técnica". Eis uma distinção constante em sua obra, mas cuja significação não cessa de deslocar-se no decurso dos anos. Antes da edição Kimmerle [1], publicada em Heidelberg em 1959, não eram conhecidas as notas de 1804 e dos anos seguintes. Por isso atribuiu-se a Schleiermacher uma interpretação psicológica que, no início, era equivalente à interpretação gramatical. A primeira, a interpretação gramatical, apoia-se nos caracteres do discurso que são comuns a uma cultura; a segunda, a interpretação técnica, dirige-se à singularidade, até mesmo à genialidade, da mensagem do escritor. Ora, se as duas interpretações possuem direitos iguais, não podem ser praticadas ao mesmo tempo. Schleiermacher precisa: considerar a língua comum é esquecer o escritor, compreender um autor singular é esquecer sua língua que é apenas atravessada. Ou percebemos aquilo que é comum, ou então percebemos o que é próprio. A primeira interpretação é chamada de objetiva, pois versa sobre os caracteres linguísticos distintos do autor, mas também negativa, pois indica simplesmente os limites da compreensão; seu valor crítico refere-se apenas aos erros concernentes ao sentido das palavras. A segunda interpretação é chamada de técnica, sem dúvida por causa do projeto de uma Kunstlehre, de uma tecnologia.
É nessa segunda interpretação que se realiza o projeto mesmo de uma hermenêutica. Trata-se de atingir a subjetividade daquele que fala, ficando a língua esquecida. A linguagem torna-se, aqui, o órgão a serviço da individualidade. Essa interpretação é chamada de positiva, porque atinge o ato de pensamento que produz o discurso. Não somente uma exclui a outra, mas cada uma exige talentos distintos, como o revelam os excessos respectivos de ambas. O excesso da primeira gera o pedantismo; o da segunda, a nebulosidade. Somente nos últimos textos de Schleiermacher a segunda interpretação ganha um primado sobre a primeira e o caráter adivinhatório da interpretação enfatiza seu caráter psicológico. Todavia, mesmo neles, a interpretação psicológica — este termo substitui o de interpretação técnica — jamais se limita a uma afinidade com o autor, mas implica motivos críticos na atividade de comparação: uma individualidade só pode ser apreendida por comparação e por contraste. Assim, também a segunda hermenêutica comporta elementos técnicos e discursivos. Não se apreende jamais diretamente uma individualidade, mas somente sua diferença com relação a outra e a si mesma. Complica-se, assim, a dificuldade de se demarcar as duas hermenêuticas pela superposição, ao primeiro par de opostos, o gramatical e o técnico, de um segundo par de opostos, a adivinhação e a comparação. Os "Discursos Acadêmicos" [2] dão testemunho desse extremo embaraço do fundador da hermenêutica moderna. Proponho-me a mostrar, no segundo estudo, que tais embaraços só podem ser superados se elucidarmos a relação da obra com a subjetividade do autor e se, na interpretação, deslocarmos a ênfase da busca patética das subjetividades subterrâneas em direção ao sentido e à referência da própria obra. Contudo, precisamos, antes, levar mais adiante a aporia central da hermenêutica, considerando a ampliação decisiva pela qual Dilthey a fez passar subordinando a problemática filológica e exegética à problemática histórica. É essa ampliação, no sentido de uma maior universalidade, que prepara o deslocamento da epistemologia em direção à ontologia, no sentido de uma maior radicalidade.
Original
Le véritable mouvement de dérégionalisation commence avec l’effort pour dégager un problème général de l’activité d’interprétation chaque fois engagée dans des textes différents. Le discernement de cette problématique centrale et unitaire est l’œuvre de Friedrich Schleiermacher . Avant lui, il y a d’une part une philologie des textes classiques, principalement ceux de l’Antiquité gréco-latine, d’autre part une exégèse des textes sacrés, Ancien et Nouveau Testaments. Et dans chacun de ces deux domaines, le travail d’interprétation varie suivant la diversité des textes. Une herméneutique générale exige donc que l’on s’élève au-dessus des applications particulières et que l’on discerne les opérations communes aux deux grandes branches de l’herméneutique. Mais, pour y parvenir, il faut s’élever non seulement au-dessus de la particularité des textes, mais de la particularité des règles, des recettes entre lesquelles se disperse l’art de comprendre. L’herméneutique est née de cet effort pour élever l’exégèse et la philologie au rang d’une Kunstlehre, c’est-à-dire d’une « technologie » qui ne se borne pas à une simple collection d’opérations sans lien.
Or, cette subordination des règles particulières de l’exégèse et de la philologie à la problématique générale du comprendre constituait un renversement tout à fait semblable à celui que la philosophie kantienne avait opéré ailleurs, par rapport aux sciences de la nature principalement. A cet égard, on peut bien dire que le kantisme constitue l’horizon philosophique le plus proche de l’herméneutique ; l’esprit général de la Critique, on le sait, est de renverser le rapport entre une théorie de la connaissance et une théorie de l’être ; il faut mesurer la capacité du connaître avant d’affronter la nature de l’être ; on comprend que c’est dans un climat kantien qu’a pu être formé le projet de rapporter les règles d’interprétation, non à la diversité des textes et des choses dites dans ces textes, mais à l’opération centrale qui unifie le divers de l’interprétation. Si Schleiermacher n’est pas lui-même conscient d’opérer dans l’ordre exégétique et philologique la sorte de renversement copernicien opéré par Kant dans l’ordre de la philosophie de la nature, Dilthey en sera parfaitement conscient, dans le climat néo-kantien de la fin du XIXe siècle. Mais il aura fallu passer auparavant par une extension dont Schleiermacher n’avait pas encore l’idée, à savoir l’inclusion des sciences exégétiques et philologiques à l’intérieur des sciences historiques. C’est seulement à l’intérieur de cette inclusion que l’herméneutique apparaîtra comme une réponse globale apportée à la grande lacune du kantisme, aperçue pour la première fois par Johann Gottfried Herder et reconnue par ailleurs en toute lucidité par Ernst Cassirer : à savoir que, dans une philosophie critique, il n’y a rien entre la physique et l’éthique.
Mais il ne s’agissait pas seulement de combler une lacune du kantisme ; il s’agissait de révolutionner profondément sa conception du sujet. Parce qu’il s’était borné à la recherche des conditions universelles de l’objectivité en physique et en éthique, le kantisme n’avait pu porter au jour qu’un esprit impersonnel, porteur des conditions de possibilité des jugements universels. L’herméneutique ne pouvait ajouter au kantisme sans recueillir de la philosophie romantique sa conviction la plus fondamentale, à savoir que l’esprit est l’inconscient créateur au travail dans des individualités géniales. Du même coup, le programme herméneutique d’un Schleiermacher portait la double marque romantique et critique : romantique par son appel à une relation vivante avec le processus de création, critique par sa volonté d’élaborer des règles universellement valables de la compréhension. Peut-être toute herméneutique est-elle à jamais marquée par cette double filiation romantique et critique, critique et romantique. Critique est le propos de lutter contre la mécompréhension au nom du fameux adage : « Il y a herméneutique là où il y a mécompréhension » [3] ; romantique est le propos de « comprendre un auteur aussi bien et même mieux qu’il ne s’est compris lui-même » [4].
Du même coup, on comprend que c’est une aporie, autant qu’une première esquisse, que Schleiermacher a livrée à sa descendance dans les notes d’herméneutique qu’il ne réussit jamais à transformer en ouvrage achevé. Le problème avec lequel Schleiermacher s’est battu est celui du rapport entre deux formes de l’interprétation : l’interprétation « grammaticale » et l’interprétation « technique » ; c’est là une distinction constante dans son œuvre, mais dont la signification ne va cesser de se déplacer au cours des années. Avant l’édition Kimmerlé [5], on ne connaissait pas les notes de 1804 et des années suivantes ; c’est pourquoi on a surtout crédité Schleiermacher d’une interprétation psychologique, laquelle, au début, était sur un pied d’égalité avec l’interprétation grammaticale. L’interprétation grammaticale s’appuie sur les caractères du discours qui sont communs à une culture ; l’interprétation psychologique, qu’il appelle encore technique, s’adresse à la singularité, voire la génialité, du message de l’écrivain. Or, si les deux interprétations ont un droit égal, on ne peut les pratiquer en même temps. Schleiermacher précise : considérer la langue commune, c’est oublier l’écrivain ; comprendre un auteur singulier, c’est oublier sa langue qui est seulement traversée. Ou bien on perçoit le commun, ou bien on perçoit le propre. La première interprétation est appelée objective, puisqu’elle porte sur les caractères linguistiques distincts de l’auteur, mais aussi négative, puisqu’elle indique simplement les limites de la compréhension ; sa valeur critique porte seulement sur les erreurs concernant le sens des mots. La seconde interprétation est appelée technique, sans doute à cause même du projet d’une Kunstlehre, d’une technologie. C’est dans cette seconde interprétation que s’accomplit le projet même d’une herméneutique. Il s’agit d’atteindre la subjectivité de celui qui parle, la langue étant oubliée. Le langage devient ici l’organe au service de l’individualité. Cette interprétation est appelée positive, parce qu’elle atteint l’acte de pensée qui produit le discours. Non seulement l’une exclut l’autre, mais chacune demande des talents distincts, comme le révèlent les excès respectifs de l’une et de l’autre ; l’excès de la première donne le pédantisme, l’excès de la seconde, la nébulosité. Ce n’est que dans les derniers textes de Schleiermacher que la seconde interprétation l’emporte sur la première, et que le caractère divinatoire de l’interprétation en souligne le caractère psychologique. Mais, même alors, l’interprétation psychologique – ce terme remplace celui d’interprétation technique – ne se borne jamais à une affinité avec l’auteur ; elle implique des motifs critiques dans l’activité de comparaison : une individualité ne peut être saisie que par comparaison et par contraste. Ainsi, la seconde herméneutique comporte, elle aussi, des éléments techniques et discursifs. On ne saisit jamais directement une individualité, mais seulement sa différence avec une autre et avec soi-même. La difficulté de départager les deux herméneutiques est ainsi compliquée par la superposition au premier couple d’opposés, le grammatical et le technique, d’un second couple d’opposés, la divination et la comparaison. Les Discours académiques [6] témoignent de cet extrême embarras du fondateur de l’herméneutique moderne. Je me propose de montrer ensuite (cf. l’article suivant) que ces embarras ne peuvent être surmontés que si l’on tire au clair le rapport de l’œuvre avec la subjectivité de l’auteur et si, dans l’interprétation, l’on déplace l’accent de la recherche pathétique des subjectivités enfouies vers le sens et la référence de l’œuvre elle-même. Mais il faut auparavant pousser plus loin l’aporie centrale de l’herméneutique, en considérant l’élargissement décisif que lui a fait subir Dilthey en subordonnant la problématique philologique et exégétique à la problématique historique. C’est cet élargissement dans le sens d’une plus grande universalité qui prépare le déplacement de l’épistémologie vers l’ontologie dans le sens d’une plus grande radicalité.