Proponho que sigamos a ordem das teses que me serviu para apresentar esquematicamente o pensamento de Habermas.
1. Começarei pela teoria dos interesses que subentende a crítica das ideologias, a da fenomenologia transcendental e a do positivismo. Podemos nos perguntar o que autoriza a sequência das teses: que toda Forschung é regulada por um interesse que confere às significações de seu campo um quadro prévio de referências; que tais interesses são três (e não um, dois ou quatro): interesse técnico, interesse prático e interesse emancipatório; que esses interesses se enraízam na história natural da espécie humana, embora enfatizem a emergência do homem acima da natureza e assumam forma no meio do trabalho, do poder e da linguagem; que, na reflexão sobre si, conhecimento e interesse se identificam; que a unidade do conhecimento e do interesse se comprova numa dialética que discerne os traços históricos da repressão do diálogo e reconstrói o que foi reprimido.
Seriam essas "teses" susceptíveis de uma descrição empírica? Não, porque, do contrário, cairíamos sob o jugo das ciências empírico-analíticas, e vimos que elas dependem de um interesse, o primeiro denominado. Seriam essas teses uma teoria, no sentido dado a esse termo, por exemplo, em psicanálise, vale dizer, no sentido de um feixe de hipóteses explicativas permitindo a reconstrução da cena primitiva? Não, porque, se assim o fossem, elas se tornariam regionais como toda teoria, e seriam ainda justificadas por um interesse, o interesse pela emancipação, e a justificação se tornaria circular.
Por conseguinte, será que não devemos reconhecer que a descoberta dos interesses na raiz do conhecimento, que a hierarquização dos interesses e sua relação com a trilogia trabalho-poder-linguagem depende de uma antropologia filosófica semelhante à Analítica do Dasein de Heidegger, especialmente à sua hermenêutica da "preocupação"? Se é assim, tais interesses não são nem observáveis, nem entidades teóricas como o ego, o superego e o id em Freud , mas "existenciais". Sua análise depende de uma hermenêutica, na medida em que são ao mesmo tempo "o mais próximo" e "o mais dissimulado", e em que precisamos desocultá-los para conhecê-los.
Se quisermos, podemos muito bem chamar essa analítica dos interesses de meta-hermenêutica, se é que admitimos que a hermenêutica consiste principalmente numa hermenêutica do discurso, até mesmo num idealismo da vida da linguagem. Mas vimos que não é nada disso, que a hermenêutica da pré-compreensão é, fundamentalmente, hermenêutica da finitude. É por isso que de bom grado aceito dizer que a crítica das ideologias expressa sua reivindicação a partir de um lugar distinto da hermenêutica, a saber, daquele onde se conjuga a sequência trabalho-poder-linguagem. Contudo, as duas reivindicações se cruzam num lugar comum: a hermenêutica da finitude que assegura, a priori, a correlação entre o conceito de preconceito e o de ideologia.
2. Gostaria agora de considerar novamente o pacto que Habermas instaura entre ciência social crítica e interesse pela emancipação. Opusemos vigorosamente esse privilégio das ciências sociais críticas ao das ciências histórico-hermenêuticas que se orienta mais para o reconhecimento da autoridade das tradições que para a ação revolucionária voltada contra a opressão.
A questão que a hermenêutica coloca à crítica das ideologias é a seguinte: podemos conferir ao interesse pela emancipação, que motiva esse terceiro ciclo de ciências, um estatuto tão distinto quanto podemos supor com referência ao interesse que anima as ciências histórico-hermenêuticas? Essa distinção é afirmada bastante dogmaticamente, como que para cavar o fosso entre interesse pela emancipação e interesse ético. Mas as análises concretas de Habermas desmentem esse intuito dogmático. É extraordinário como as distorções que a psicanálise descreve e explica são interpretadas, no nível meta-hermenêutico em que Habermas se situa, como distorções da competência comunicativa. Tudo indica também ser nesse nível que operam as distorções dependentes da crítica das ideologias. Estamos lembrados como Habermas interpreta o marxismo baseando-se numa dialética entre ação instrumental e ação comunicativa. É no cerne da ação comunicativa que a institucionalização das relações humanas sofre a reificação que a torna mal conhecida dos protagonistas da comunicação. Por conseguinte, todas as distorções, as que a psicanálise descobre e as que a crítica das ideologias denuncia, são distorções da capacidade comunicativa dos homens.
Será, então, que podemos tratar o interesse pela emancipação como um interesse distinto? Parece que não se, além disso, levarmos em conta que, tomado positivamente como um motivo próprio, e não mais negativamente a partir das reificações que combate, esse interesse não tem outro conteúdo senão ó ideal da comunicação sem entrave e sem limite. Com efeito, o interesse pela emancipação seria abstrato e exangue se não se inscrevesse no plano mesmo em que se exercem as ciências histórico-hermenêuticas, vale dizer, na ação comunicativa. Mas, se é assim, será que uma crítica das distorções pode separar-se da experiência comunicativa, justamente onde ela começou, onde é real e exemplar? A tarefa da hermenêutica das tradições é a de lembrar à crítica das ideologias que é sobre o fundo da reinterpretação criadora das heranças culturais que o homem pode projetar sua emancipação e antecipar uma comunicação sem entrave e sem limite. Se não possuíssemos nenhuma experiência da comunicação, por mais reduzida e mutilada que seja, poderíamos desejá-la para todos os homens e em todos os níveis de institucionalização do vínculo social? No meu entender, parece-me que uma crítica jamais pode ser primeira e última. Só criticamos distorções em nome de um consenso que não podemos antecipar simplesmente no vazio, à maneira de uma ideia reguladora, a não ser que esta seja exemplificada; um dos lugares da exemplificação do ideal da comunicação é justamente nossa capacidade de vencer a distância cultural na interpretação das obras recebidas do passo. É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação.
3. Chego ao terceiro ponto de desacordo entre hermenêutica das tradições e crítica das ideologias. Diz respeito ao abismo que separaria a simples má-compreensão da distorção patológica ou ideológica. Não quero retornar aos argumentos já expostos há pouco e que tendem a atenuar a diferença entre má-compreensão e distorção. Uma hermenêutica das profundezas ainda é uma hermenêutica, mesmo que a chamemos de meta-hermenêutica. Preferiria insistir num aspecto da teoria das ideologias que nada deve ao paralelismo entre psicanálise e teoria das ideologias. Toda uma parte da obra de Habermas destina-se não à teoria das ideologias tomada abstratamente, mas às ideologias contemporâneas. Ora, quando a teoria das ideologias se desenvolve, assim, concretamente no contexto de uma crítica do tempo presente, revela aspectos exigindo que aproximemos concretamente, e não mais simplesmente de modo teórico, o interesse pela emancipação, do interesse pela comunicação, no contexto das tradições reinterpretadas.-
Segundo Habermas, qual é a ideologia dominante do tempo presente? Sua resposta é semelhante à de Herbert Marcuse e à de Jacques Ellul: é a ideologia científico-tecnológica. Não vou desenvolver aqui os argumentos de Habermas que colocam em jogo toda uma interpretação do capitalismo avançado e das sociedades industriais desenvolvidas. Vou direto ao traço principal que, no meu entender, ressitua imperiosamente a teoria das ideologias no campo hermenêutico. A sociedade industrial moderna, segundo Habermas, substituiu as legitimações tradicionais e as crenças de base utilizadas como justificação do poder por uma ideologia da ciência e da tecnologia. O Estado moderno, com efeito, não é mais um Estado destinado a representar os interesses de uma classe opressora, mas a eliminar as disfunções do sistema industrial. Justificar a mais-valia, dissimulando seu mecanismo, não é mais a primeira função legitimadora da ideologia, como na época do capitalismo liberal descrita por Marx , simplesmente porque a mais-valia não é mais a fonte principal de produtividade, nem sua apropriação é o traço dominante do sistema. O traço dominante do sistema é a produtividade da própria racionalidade, incorporada nos computadores. Aquilo que precisa ser legitimado é, pois, a manutenção e o crescimento do próprio sistema. É para isso que serve o aparelho científico-técnico convertido numa ideologia, vale dizer, numa legitimação das relações de dominação e de desigualdade necessárias ao funcionamento do sistema industrial, mas dissimuladas pelas gratificações do sistema sob todas as formas de gozos. A ideologia moderna difere, pois, sensivelmente da ideologia descrita por Marx , que só vale para o curto período do capitalismo liberal, não tendo, portanto, nenhuma universalidade no tempo. Aliás, também não há ideologia pré-burguesa, e a ideologia burguesa está expressamente vinculada à camuflagem da dominação sob a instituição legal do livre contrato de trabalho.
Admitida essa descrição da ideologia moderna, o que isso significa em termos de interesse? Significa que o subsistema da ação instrumental deixou de ser um subsistema, e que suas categorias invadiram a esfera da ação comunicativa. Nisso consiste a famosa "racionalização" de que falava Max Weber: não somente a racionalidade conquista novos domínios da ação instrumental, mas se subordina o domínio da ação comunicativa. Max Weber havia descrito esse fenômeno em termos de "desencantamento" e de "desdivinização". Habermas o descreve como esquecimento e perda da diferença entre o plano da ação instrumental, que também é o do trabalho, e o plano da ação comunicativa, que também é o das normas consentidas, da troca simbólica, das estruturas de personalidade, dos procedimentos de decisão racional. No sistema capitalista moderno, que parece identificar-se, aqui, pura e simplesmente com o sistema industrial, a velha questão grega do "bem viver" fica abolida em proveito do funcionamento de um sistema manipulado. Os problemas de práxis ligados à comunicação - especialmente o desejo de submeter à discussão pública e à decisão democrática a escolha das grandes opções políticas - não desapareceram. Continuam subsistindo, mas de modo recalcado. E é justamente porque sua eliminação não é automática, e porque permanece insatisfeita a necessidade de legitimação, que se torna sempre necessária uma ideologia para legitimar a autoridade que assegura o funcionamento do sistema. Técnica e ciência assumem, hoje em dia, esse papel ideológico.
Dessa forma, a questão que o hermeneuta dirige ao crítico das ideologias contemporâneas é a seguinte: admitamos que a ideologia consista, hoje, na dissimulação da diferença entre a ordem normativa da ação comunicativa e o condicionamento burocrático, por conseguinte, na dissolução da esfera de interação mediatizada pela linguagem nas estruturas da ação instrumental; se isto ocorre, o que devemos fazer para que o interesse pela emancipação não permaneça um desejo piedoso, a não ser que o encarnemos no despertar da ação comunicativa? E sobre o que podemos apoiar concretamente o despertar da ação comunicativa, senão sobre a retomada criadora das heranças culturais?
4. Essa aproximação inelutável entre o despertar da responsabilidade política e a reanimação das fontes tradicionais da ação comunicativa leva-me a dizer uma palavra, para concluir, sobre a quarta e mais formidável diferença entre consciência hermenêutica e consciência crítica. A primeira, dizíamos, está voltada para um entendimento, para um consenso que nos precede e, neste sentido, que está aí; a segunda antecipa o futuro de uma liberação cuja ideia reguladora não é um ser mas um ideal, o ideal da comunicação sem limite e sem entrave.
Com essa antítese aparente, atingimos o mais vivo e talvez o que há de mais vão do debate. Porque, afinal de contas dirá o hermeneuta: de onde vocês falam quando recorrem à Selbstreflexion, senão desse lugar que vocês mesmos denunciaram como sendo um não-lugar, o não-lugar do sujeito transcendental? É do fundo de uma tradição que vocês falam. Talvez essa tradição não seja a mesma que a de Gadamer . Talvez seja justamente a da Aufklärung, enquanto que a de Gadamer seria a do romantismo. Mas ainda é uma tradição, a tradição da emancipação, mais que a tradição da rememoração. A crítica também é uma tradição. Diria mesmo que ela penetra na mais impressionante tradição, a dos atos libertários, a do Êxodo e da Ressurreição. Talvez não houvesse mais interesse pela emancipação, mais antecipação da libertação, se fosse apagada do gênero humano a memória do Êxodo, a memória da Ressurreição.
Se é assim, nada mais enganador que a pretensa antinomia entre uma ontologia do entendimento prévio e uma escatologia da libertação. Encontramos essas falsas antinomias várias vezes no decorrer dos colóquios precedentes: como se fosse necessário escolher entre a reminiscência e a esperança Em termos teológicos, dizemos: a escatologia nada é sem o recitativo dos atos de libertação do passado.
Ao esboçar essa dialética da rememoração das tradições e da antecipação da libertação, de forma alguma pretendo abolir a diferença entre uma hermenêutica e uma crítica das ideologias. Cada uma, repito, possui um lugar privilegiado e, diria mesmo, preferências regionais diferentes: aqui, uma atenção às heranças culturais, talvez polarizada de modo mais decidido na teoria do texto; ali, uma teoria das instituições e dos fenômenos de dominação, polarizada na análise das reificações e das alienações. Na medida em que ambas têm necessidade de sempre se regionalizar para se assegurarem o caráter concreto de suas reivindicações de universalidade, suas diferenças devem ser preservadas contra todo confusionismo. Mas é a tarefa da reflexão filosófica colocar ao abrigo das oposições enganadoras o interesse pela emancipação das heranças culturais recebidas do passado e o interesse pelas projeções futuristas de uma humanidade libertada.
Se esses interesses se separarem radicalmente, a hermenêutica e a crítica ficarão reduzidas a meras… ideologias