Dir-se-á que tal problema já é bem conhecido da hermenêutica mais tradicional: é o problema da apropriação (Aneignung) ou da aplicação (Anwendung) do texto à situação presente do locutor. E é dessa forma que também o compreendo. Gostaria, no entanto, de ressaltar o quanto esse tema fica transformado quando o introduzimos depois dos precedentes.
Em primeiro lugar, a apropriação está dialeticamente ligada ao distanciamento típico da escrita. Esta não é abolida pela apropriação. Pelo contrário, é sua contrapartida. Graças ao distanciamento pela escrita, a apropriação não possui mais nenhum dos caracteres da afinidade afetiva com a intenção de um autor. A apropriação é exatamente o contrário da contemporaneidade e da congenitalidade: é compreensão pela distância, compreensão a distância.
Em seguida, a apropriação está dialeticamente ligada à objetivação típica da obra. Ela passa por todas as objetivações estruturais do texto. Na medida mesma em que não responde ao autor, responde ao sentido. Talvez seja nesse nível que a mediação operada pelo texto deixa-se compreender melhor. Contrariamente à tradição do cogito e à pretensão do sujeito de conhecer-se a si mesmo por intuição imediata, devemos dizer que só nós compreendemos pelo grande atalho dos sinais de humanidade depositados nas obras de cultura. O que saberíamos do amor e do ódio, dos sentimentos éticos e, em geral, de tudo o que chamamos de o si, caso isso não fosse referido à linguagem e articulado pela literatura? O que parece mais contrário à subjetividade, e que a análise estrutural faz aparecer como a textura mesma do texto, é o próprio médium no qual, apenas, podemos nos compreender.
Sobretudo, porém, a apropriação possui por vis-à-vis aquilo que Gadamer chama de “a coisa do texto” e que chamo de “o mundo da obra”. Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto. Não se trata de impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao texto e receber dele um si mais amplo, que seria a proposição de existência respondendo, da maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo. A compreensão torna-se, então, o contrário de uma constituição de que o sujeito teria a chave. A este respeito, seria mais justo dizer que o si é constituído pela “coisa” do texto.
Sem dúvida, precisamos dar um passo à frente: assim como o mundo do texto só é real na medida em que é fictício, da mesma forma devemos dizer que a subjetividade do leitor só advém a ela mesma na medida em que é colocada em suspenso, irrealizada, potencializada, da mesma forma que o mundo manifestado pelo texto. Em outras palavras, se a ficção é uma dimensão fundamental da referência do texto, não possui menos uma dimensão fundamental da subjetividade do leitor. Só me encontro, como, leitor, perdendo-me. A leitura me introduz nas variações imaginativas do ego. A metamorfose do mundo, segundo o jogo, também é a metamorfose lúdica do ego.
Se isso é verdade, também o conceito de “apropriação” exige uma crítica interna, na medida em que permanece dirigido contra a Verfremdung. Com efeito, a metamorfose do ego, de que acabamos de falar, implica um momento de distanciamento até na relação de si a si. A compreensão torna-se, então, tanto desapropriação quanto apropriação. Uma crítica das ilusões do sujeito, à maneira marxista e freudiana, não só pode mas deve ser incorporada à compreensão de si.
A consequência, para a hermenêutica, é importante: não podemos mais opor hermenêutica e crítica das ideologias. A crítica das ideologias é o atalho que a compreensão de si deve necessariamente tomar, caso esta deixe-se formar pela coisa do texto, e não pelos preconceitos do leitor.
Portanto, precisamos transferir para o cerne mesmo da compreensão de si a dialética da objetivação e da compreensão que havíamos percebido antes no nível do texto, de suas estruturas, de seu sentido e de sua referência. Em todos os níveis da análise, o distanciamento é a condição da compreensão.