De um lado, o discurso se dá como evento: algo acontece quando alguém fala. Esta noção de discurso como evento impõe-se desde que levemos em consideração a passagem de uma linguística da língua ou do código a uma linguística do discurso ou da mensagem. A distinção tem sua origem, como se sabe, em Ferdinand de Saussure1 e em Louis Hjelmslev2. O primeiro distingue a “língua” e a “fala”; o segundo distingue o “esquema” e o “uso”. A teoria do discurso tira todas as consequências epistemológicas dessa dualidade. Enquanto a linguística estrutural limita-se a colocar entre parênteses a fala e o uso, a teoria do discurso suspende o parêntese e afirma a existência de duas linguísticas, repousando sobre leis diferentes. Foi o linguista francês Emile Benveniste3 quem mais se aprofundou nessa direção. Para ele, a linguística do discurso e a linguística da língua se constroem sobre unidades diferentes. Se o “signo” (fonológico e léxico) é a unidade de base da língua, a “frase” é a unidade de base do discurso. É a linguística da frase que suporta a dialética do evento e do sentido, de onde parte nossa teoria do texto.
Mas o que entendemos por evento?
Dizer que o discurso é um evento é dizer, antes de tudo, que o discurso é realizado temporalmente e no presente, enquanto que o sistema da língua é virtual e fora do tempo. Neste sentido, podemos falar, com Benveniste, da “instância do discurso” para designar o surgimento do próprio discurso como evento. Ademais, enquanto que a linguagem não possui sujeito, no sentido em que a questão “quem fala?” não é válida nesse nível, o discurso remete a seu locutor, mediante um conjunto complexo de indicadores, tais como os pronomes pessoais. Neste sentido, diremos que a instância do discurso é auto-referencial. O caráter de evento vincula-se, agora, à pessoa daquele que fala. O evento consiste no fato de alguém falar, de alguém se exprimir tomando a palavra. Num terceiro sentido, ainda, o discurso é evento: enquanto que os signos da linguagem só remetem a outros signos, no interior do mesmo sistema, e fazem com que a língua não possua mais mundo, como não possui tempo e subjetividade, o discurso é sempre discurso a respeito de algo: refere-se a um mundo que pretende descrever, exprimir ou representar. O evento, nesse terceiro sentido, é a vinda à linguagem de um mundo mediante o discurso. Enfim, ao passo que a língua não é senão a condição prévia da comunicação, à qual ela fornece seus códigos, é no discurso que todas as mensagens são trocadas. Neste sentido, só o discurso possui, não somente um mundo, mas o outro, outra pessoa, um interlocutor ao qual se dirige. Neste último sentido, o evento é o fenômeno temporal da troca, o estabelecimento do diálogo, que pode travar-se, prolongar-se ou interromper-se.
Todos esses traços, tomados conjuntamente, constituem o discurso em evento. E interessante notar como eles só aparecem no movimento de efetuação da língua em discurso, na atualização de nossa competência linguística em performance.
Todavia, ao enfatizar, assim, o caráter de evento do discurso, só revelamos um dos dois polos do par constitutivo do discurso. Precisamos agora elucidar o segundo polo: o da significação. Porque é da tensão entre esses dois polos que surgem a produção do discurso como obra, a dialética da fala e da escrita, e todos os outros traços do texto que enriquecerão a noção de distanciamento.
Para introduzir essa dialética do evento e do sentido, proponho que se diga que, se todo discurso é efetuado como evento, todo discurso é compreendido como significação.
O que pretendemos compreender não é o evento, na medida em que é fugidio, mas sua significação que permanece. Este ponto exige a máxima clarificação: na realidade, poderia parecer que estamos dando um passo para trás, da linguística do discurso à da língua. Não é nada disso. E na linguística do discurso que o evento e o sentido se articulam um sobre o outro. Esta articulação é o núcleo de todo o problema hermenêutico. Assim como a língua, ao articular-se sobre o discurso, ultrapassa-se como sistema e realiza-se como evento, da mesma forma, ao ingressar no processo da compreensão, o discurso se ultrapassa, enquanto evento, na significação. Essa ultrapassagem do evento na significação é típica do discurso enquanto tal. Revela a intencionalidade mesma da linguagem, a relação, nela, do noema com a noese. Se a linguagem é um meinen, uma visada significante, é precisamente em virtude dessa ultrapassagem do evento na significação.
Por conseguinte, o primeiro distanciamento é o distanciamento do dizer no dito.
Mas o que é dito? Para elucidar de modo mais completo esse problema, a hermenêutica deve recorrer não somente à linguística — mesmo compreendida no sentido de linguística do discurso, por oposição à linguística da língua, como fizemos até aqui —, mas também à teoria do Speech-Act, como pode ser encontrada em Austin4 e em Searle5.
O ato de discurso, segundo esses autores, é constituído por uma hierarquia de atos subordinados, distribuídos em três níveis:
-* nível do ato locucionário ou proposicional: ato de dizer;
-* nível do ato (ou da força) ilocucionário: aquilo que fazemos ao dizer;
-* nível do ato perlocucionário: aquilo que fazemos pelo fato de falar.
Se eu digo a alguém para fechar a porta, faço três coisas: a) refiro o predicado de ação (fechar) a dois argumentos (alguém e a porta): é o ato de dizer; b) mas eu digo essa coisa a alguém com a força de uma ordem, e não de uma constatação, de um desejo ou de uma promessa: é o ato ilocucionário; c) enfim, posso provocar certos efeitos, tais como o medo, pelo fato de dar uma ordem a alguém; esses efeitos fazem do discurso uma espécie de estímulo que produz certos resultados: é o ato perlocucionário.
Quais as implicações dessas distinções para nosso problema da exteriorização intencional pela qual o evento se ultrapassa na significação?
O ato locucionário se exterioriza nas frases enquanto proposição. Com efeito, é enquanto tal proposição que a frase pode ser identificada e re-identificada como sendo a mesma frase. Uma frase se apresenta, assim, como uma enunciação (Aus-sage), susceptível de ser transferida a outras, com este ou aquele sentido. O que aqui é identificado, é a própria estrutura predicativa, como deixa entrever o exemplo supracitado. Assim, uma frase de ação deixa-se identificar por seu predicado específico (tal ação) e por seus dois argumentos (o agente e o paciente). Mas o ato ilocucionário também pode ser exteriorizado graças aos paradigmas gramaticais (os modos: indicativo, imperativo etc.) e aos outros procedimentos que “marcam” a força ilocucionária de uma frase e, dessa forma, permitem identificá-la e re-identificá-la. É verdade que, no discurso oral, a força ilocucionária se faz identificar pela mímica e pelos gestos, tanto quanto por traços propriamente linguísticos, e que, no primeiro discurso, são os aspectos menos articulados, os que chamamos de prosódia, que fornecem os indícios mais probantes. Não obstante, as marcas propriamente sintáticas constituem um sistema de inscrição que torna possível, por princípio, a fixação, pela escrita, dessas marcas da força ilocucionária.
Precisamos reconhecer, no entanto, que o ato perlocucionário constitui o aspeto menos inscritível do discurso, e caracteriza, preferencialmente, o discurso oral. Mas a ação perlocucionária é justamente aquilo que, no discurso, é o menos discurso. É o discurso enquanto estímulo. Neste caso, o discurso age, não pela trucagem do reconhecimento, por meu interlocutor, de minha intenção, mas, de certa forma, de um modo energético, por influência direta sobre as emoções e as disposições afetivas do interlocutor. Assim, o ato proposicional, a força ilocucionária e a ação perlocucionária tornam-se aptos, numa ordem decrescente, à exteriorização intencional que torna possível a inscrição pela escrita.
Por isso torna-se necessário entender por significação do ato de discurso, ou por noema do dizer, não somente o correlato da frase, no sentido estrito do ato proposicional, mas também o da força ilocucionária e, mesmo, o da ação perlocucionária, na medida em que esses três aspectos do ato de discurso são codificados e regulados segundo paradigmas; na medida, pois, em que podem ser identificados ou re-identificados como possuindo a mesma significação. Portanto, dou aqui ao termo significação uma acepção bastante ampla, recobrindo todos os aspectos e todos os níveis da exteriorização intencional que torna possível, por sua vez, a exteriorização do discurso na obra e nos escritos.
- F. Saussure, Cours de linguistique générale, Paris, 1973, pp. 30s., 36 s., 112, 227.[↩]
- L. Hjelmslev, Essais linguistiques, Copenhague, 1959.[↩]
- E. Benveniste, Problèmes de linguistique générale, Paris, 1966[↩]
- J. L. Austin, How to do things with words, Oxford, 1962. – Trad. fr.: Quand dire, c’est faire, Paris, 1970[↩]
- J. R. Searle, Speech-act, an essay in the philosophy of language, Cambridge, 1969[↩]